A face chorona de Hermeto Pascoal


Leonor Bianchi

Nossa entrevista com Hermeto Pascoal foi intermediada por duas pessoas as quais não podemos deixar de agradecer: Fabio Pascoal, seu filho, percussionista e produtor musical que dispensa apresentações, e Aline Morena, multi-instrumentista, cantora, compositora e uma das maiores pesquisadoras da obra de Hermeto.

Era uma manhã de agosto e estávamos, eu e meu marido e editor da Revista do Choro, Rúben Pereira, na redação, no aprazível vilarejo serrano de Lumiar, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e Hermeto na casa do filho Fabio, no Jabour, na capital do estado.

A conversa-entrevista foi para nós o primeiro encontro com Hermeto, que não nos surpreendeu com sua habilidade ante as novas tecnologias. Diante da webcam, ele nos contou sobre sua vida hoje, seu passado e sua relação com a música e com o choro.

O futuro? Este pertence a Deus, mas como ano que vem Hermeto completa 80 anos, não poderíamos deixar de tocar no assunto, e ficamos sabendo que vem trabalho novo por aí para celebrar a data. Vamos aguardar! Ano que vem tem mais Hermeto na Revista do Choro só por isso! Só?

Simples, humano, gentil, franco e atualizado. Este foi o Hermeto que entrevistamos; um experiente instrumentista consagrado internacionalmente, que já mexeu com os brios de muita gente grande na música por fazer um trabalho autoral original e inovador, completamente fora dos padrões herméticos impostos pelo mercado fonográfico, e por que não dizer, por ignorância?

Tentamos traduzir nesta matéria especial e exclusiva para a Revista do Choro cerca de uma hora e meia de conversa com este gênio da música universal. Esperamos que gostem!

Há quase 80 anos nascia Hermeto em Olho d’Água

Nascido em Alagoas, em Olho d’Água, no então município de Arapiraca, no primeiro dia em que o Sol visitava a constelação de Câncer, em 1936, Hermeto Pascoal é filho de Dona Divina (Vergelina Eulália de Oliveira) e Seu Pascoal (Pascoal José da Costa).

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“Nasci no dia 22 de junho de 1936, em Olho d’Água, numa noite chuvosa. Minha mãe ficou até (vou dizer até um palavrãozinho) ‘puta da vida’ porque ela tinha uma festinha de São João em Lagoa da Canoa, em Alagoas, e eu atrapalhei seus planos… (risos) pedindo pra nascer naquela hora. Aí você vê… Deus já começou assim… a minha luta, por que agora eu vou parar de lutar? Lutar é gostoso. Lutar sempre para o melhor!  Sempre levo as críticas para o lado construtivo… Quando critico alguma coisa é porque eu estou querendo subir mais um degrau e não sozinho, mas com todo mundo”, conta Hermeto, ainda pegando fôlego para a entrevista.

Ainda na infância, de sete para oito anos, Hermeto começou a se relacionar intensamente com a música. Nessa época demonstrou interesse em tocar uma sanfona de 8 baixos do pai. Ao lado do inseparável irmão mais velho, Zé Neto, começava ali sua carreira musical, se assim podemos dizer, pois Hermeto e Zé Neto passaram a se apresentar em cerimônias públicas, casamentos, festejos populares de toda região, ambos revezando-se na sanfona e no pandeiro. Hoje, Hermeto toca flauta, piano, saxofone, trompete, bombardino, escaleta, violão, acordeão e muitos outros instrumentos.

 “A música está em minha vida desde sempre. Vou contar um pouco pra vocês…

Comecei em Regional porque quando se fala em conjunto regional já está se falando em choro, certo? Só que eu já nasci com o dom da coisa da evolução, da coisa de amanhã não ser igual a ontem. Os dias não são iguais perante os outros, isso é conversa de quem acha que inventou a Bíblia. E não é nada disso! Os minutos, os dias, os segundos são diferentes. Por isso nunca digo o que eu vou fazer amanhã, porque estaria antecipando uma coisa. É a mesma coisa que eu dissesse: ‘olha, amanhã vou ver Deus’, ou… ‘eu conheço Deus’. E eu não conheço, eu sinto Deus. É por isso que eu falo pra todo mundo: se não fosse o meu sentir eu seria pior que um ateu, eu não ia sentir, eu iria colocar o saber na frente e ficar que nem os orgulhosos do mundo, cheios de dinheiro e sem alma”, diz Hermeto Pascoal.

O início da carreira tocando no regional da Rádio Jornal do Commercio de Pernambuco com Romualdo Miranda

Pouca gente sabe, mas Hermeto foi casado com Ilza da Silva, sobrinha de Romualdo Miranda e Luperce Miranda, conhecido e ágil bandolinista, que conquistou a todos com seu repertório chorístico, muito estudado até os dias de hoje.

Romualdo Miranda e os Turunas da Mauriceia com seus irmãos João e Nelson, e Augusto Calheiros

Romualdo Miranda e os Turunas da Mauriceia com seus irmãos João e Nelson, e Augusto Calheiros

Como se fosse destino, o choro, que já estava presente em sua vida musical desde a adolescência quando foi para Pernambuco trabalhar numa das rádios mais importantes do estado, permaneceria o gênero intimamente ligado ao compositor, arranjador e instrumentista Hermeto Pascoal, só que agora, por laços familiares.

Profissionalmente Hermeto considera a Rádio Jornal do Commercio a primeira em que tocou, mas já em 1950 quando saiu de sua cidade natal e foi para Recife tocar com seu irmão, teve seu primeiro emprego na Rádio Tamandaré. Entre esse ano e 1958 quando vai para o Rio de Janeiro, Hermeto trabalhou em três rádios pernambucanas: Tamandaré, Rádio Difusora de Caruaru e Rádio Jornal do Commercio.

Rádio Jornal do Commercio de Pernambuco, 1949

Rádio Jornal do Commercio de Pernambuco, 1949

“Comecei a tocar com meus 15 para 16 anos no regional da Rádio Jornal do Commercio, em Pernambuco, na época com o grande violonista, Romualdo Miranda, irmão do Luperce Miranda. A família deles – nossa senhora -, não tinha pra ninguém! E eu fui casar justamente com a sobrinha do Romualdo, a Ilza, que hoje já está lá no céu. Romualdo era tio dela.

Fui contratado para tocar no regional da rádio, mas mesmo sem saber tocar direito já queria entronchar com o pessoal. Lá no Nordeste quando você fala entronchar quer dizer que está fazendo um acorde moderno, de sétima maior pra cima, nada daqueles acordes que a gente chamava de gavetão, nada disso… E nos regionais os acordes são quase o tempo todo gavetões. Se até hoje é difícil, imagine naquela época! Eu, desde aquele tempo já sabia usar a décima primeira… Não sabia o que era porque não conhecia teoria musical. Só fui aprender teoria musical aos 40 anos de idade. E ainda bem que eu não sabia, pra não me atrapalhar…

O jovem Hermeto e um de seus instrumentos preferidos: o acordeão, a sanfona, o fole

O jovem Hermeto e um de seus instrumentos preferidos: o acordeão, a sanfona, o fole

Eu observava os caras tocarem, escutava atentamente; cada um tocava e mostrava uma coisa, só que eu achava quadrada demais aquela maneira de tocar e perguntava para meu sogro Germano: Por que esse violão?

O regional não começou com o violão de sete cordas. Nessa época que eu estou falando, gente, não tinha sete cordas ainda não. O sete cordas é coisa recente, de uns 40 anos pra cá. Então o que acontecia: um violão tinha que ficar só pra fazer os baixos, e o coitado do violonista nem estudava muito direito os acordes, não se ligava tanto. Talvez fosse preguiçoso porque senão não ficaria só fazendo os baixos, imagino… E eu falando com os caras de 60 anos – meu sogro tinha seus 60 anos: faz aqui, faz ali! E eles me diziam que isso era coisa de americano. Qualquer acorde que se fizesse um pouco mais moderno era coisa de americano, isso é um preconceito muito grande”, relembra Hermeto Pascoal como tudo começou…

É muita história… e, abreviando… a vida seguiu, Hermeto casou-se com Ilza da Silva, da tradicional família Miranda, de músicos e chorões… e ao seu lado viveu 46 anos, até ela deixar este plano astral. Com ela, gerou seis filhos – Jorge, Fabio, Flávia, Fátima, Fabiula e Flávio.

Fabio foi o único que seguiu carreira musical, é percursionista e toca na banda de Hermeto.

Tranquilo às vésperas de completar 80 anos, Hermeto Pascoal vive a vida de forma intensa e os dias, como se estivesse nascendo a cada minuto, a cada segundo… que, como ele mesmo enfatizou durante toda a entrevista, ‘o tempo é sempre novo e ao mesmo tempo eterno’.

Saber viver é fundamental. Perto de completar 80 anos, Hermeto esbanja vigor dentro e fora dos palcos

Saber viver é fundamental. Perto de completar 80 anos, Hermeto esbanja vigor dentro e fora dos palcos [Foto de Aloizio Jordão]

Sobre o choro e o regional, ele disse:

“O regional não evoluiu na parte harmônica, que é a mãe da música. A harmonia é que é a mãe da música. Eu digo isso porque estudei. Os acordes são as próprias músicas. Eu até desenhei, não desenho muito bem, mas desenhei algo falando sobre isso.

Por que eu criei essa história, do encontro da harmonia com o tema? Por que assim a gente consegue entender melhor a coisa. Pra mostrar que as notas (de)têm os acordes. O tema e a harmonia casaram e tiveram um filho chamado ritmo…

Desde criança Hermeto tem uma forte relação com a natureza. Foi observando os comportamentos dos animais e os movimentos da natureza que ele construiu inerente a um querer planejado, consciente, uma estética musical e harmônica tão singular e apreciada por quem quer que escute suas músicas.

“Observando a natureza na minha infância, eu via nas árvores um monte de passarinhos, no verão, naquelas árvores secas… símbolo da seca no Nordeste. Via como os passarinhos faziam. Na árvore tinham não sei quantos mil passarinhos e eles não cabiam todos em duas, três árvores. O que eu percebi nesse movimento? Que eles se revezavam para ficarem pousados na árvore. Passavam o dia todo voando e se revezando nos galhos das árvores. Passavam o dia todo assim… Você vê como é a natureza. Isso que estou contando pra vocês eu já observava com oito anos de idade…

E o que aconteceu depois? Depois descobrimos, e estamos descobrindo cada vez mais, que a revolução não é estar na frente das coisas… porque, olha, Deus botou tantas coisas pra gente ver! Só que ele é meio preguiçoso, ele não gosta de falar, ele quer que você pense, que você sinta; você tem que sentir. Por que ele botou o espelho na nossa frente? Apareceu a ideia de fazer um espelho? É pra todo ver que quem quiser estar lá na frente não vai se espelhar em nada, vai voando correndo para o vazio. São deduções que eu faço observando a natureza, a música através da natureza, da vida.

Então o que acontece? O chorinho, por exemplo. O que é o chorinho? Criaram esse nome ‘chorinho’ no sentido, claro, de ser uma música alegre, numa intenção maravilhosa. Só que o chorinho é o que eu estou falando…”, diz Hermeto, deixando a frase incompleta, mas considerando que a estética do choro é hermética e que os instrumentistas que tocam o gênero não buscam ousar, trazer elementos novos, modernos para o choro”, diz.

Lembrando de um episódio vivido nos Estados Unidos quando, no final da década de 1960, foi para ao país gravar com Airto Moreira e Flora Purim, Hermeto relata:

“Uma vez nos EUA, fui a uma universidade e encontrei Eve Jonnes, através do Airto Moreira. Aí eu perguntei o que ele estava fazendo lá, se iria dar uma palestra, fazer um workshop… Nada! Sabe o que me disseram? Que ele estava fazendo uma campanha para não deixar o jazz morrer. E olha que eu tinha ido para os Estados Unidos com um pouco de orgulho, um orgulho sadio, mas um orgulho assim meio assustador que era o meu orgulho de mostrar que o Brasil podia ser subdesenvolvido politicamente, como continua, mas com a música não; eles iam ter que rebolar com essa música que eu chamo de universal.

Hermeto nos EUA: George Duke, Ndugu, Alphonso Johnson, Flora Purim, David Amaro, Hermeto Pascoal e Airto, California, durante as gravações de Open Your Eyes You Can Fly, álbum de 1976, de Flora Purim

Hermeto nos EUA: George Duke, Ndugu, Alphonso Johnson, Flora Purim, David Amaro, Hermeto Pascoal e Airto, California, durante as gravações de Open Your Eyes You Can Fly, álbum de 1976, de Flora Purim

Os pessimistas pensavam que o jazz havia acabado. Mas não! Era justamente para não deixar morrer que ele estava ali. E olha que ele já sofria preconceitos por causa da idade!

A maioria das pessoas da minha geração tem preconceito com as coisas que faço. O preconceito é justamente essa coisa de “se o chorinho não for parecido com o que fulano de tal toca, com isso, isso e isso, não é chorinho”. Que isso? E já acho que todo mundo tem que tocar diferente, com a sua personalidade, pois é aí que vem a história! Então, o preconceito que se fala é esse. Quando eu queria tocar diferente, lá com meus 15 anos, já era observado, chamado atenção. E foi bom porque esses episódios me despertaram para eu encarar o meu jeito de tocar, encarar as pessoas, e sair do lugar”, conta Hermeto.

Um Tom Jobim cansado de ouvir Garota de Ipanema

Como exemplo do que estava querendo dizer quando defendeu que a mesmice atrapalha, atravanca e inibe qualquer possibilidade criativa de evolução na música e em qualquer coisa na vida, Hermeto recordou um fato que viveu com o compositor de uma das músicas mais ouvidas no mundo: Tom Jobim e sua Garota de Ipanema.

“Isso eu nunca contei a ninguém! Eu estava nos EUA, num elevador com Tom Jobim, quando fui gravar uma faixa em um dos seus discos, num daqueles estúdios americanos super modernos, quando isso aconteceu. Ah, Tom… um gênio eterno…

Eu ia tocar flauta, flauta transversa, lembro-me agora. A música era ‘Quebra Pedra’… e eu improvisei… Ele até brincou, dizendo: ‘Você é o único que vai improvisar oito minutos no meu disco’. Aí eu perguntei: Mas nem os americanos improvisarão? E ele disse: Não, só você!

Quando estávamos subindo os andares do edifício do estúdio pelo elevador, eu e o Tom com aquele chapéu branco dele, e a porta do elevador se fechou e o elevador começou a subir, na mesma hora começou a tocar dentro do elevador a música dele, Garota de Ipanema. Eu pensei que ele fosse sorrir e ficar muito feliz, mas ele tirou o chapéu com uma expressão entristecida e disse: Hermeto, eu estou cansado dessa música. Falou com ênfase! Eu olhei pra ele sem entender nada. Ainda bem que o elevador é pequeno e tudo é pertinho e eu pude olhar para ele e ver que era sério mesmo. Sei lá, o cara podia estar de ironia comigo, de brincadeira. E não, ele disse seriamente: Eu queria fazer um som igual aquele conjunto de vocês, o Quarteto Novo… Aí eu falei: Mas Tom, você mora nos Estados Unidos… tem que segurar a onda, seguir outra estética e tal…

Eu sempre fui doido pra falar isso para a imprensa, contar que era ele, o Tom, o cara, o grande maestro Tom Jobim quem estava falando, que estava dizendo que não aguentava mais a mesmice, mas não tinha um nome no meio musical ainda e nunca comentei nada sobre isso. O que fica dessa história é que o Tom estava fazendo coisas que ele não queria fazer e é isso que eu quero dizer aqui. Muitas vezes as pessoas se veem diante de situações em que são obrigadas a agirem de determinada forma”, observa Hermeto.

Hermeto e o Regional de Pernambuco do Pandeiro

“Pernambuco do Pandeiro esteve na rádio onde eu tocava, em Recife, e disse para eu procurá-lo quando estivesse no Rio de Janeiro. Mas só uns 15 anos depois é que eu fui para o Rio. Quando cheguei, fui direto para a Rádio Mauá. Estava saindo um acordeonista maravilhoso com o apelido de Gaúcho do Acordeão e eu iria ficar no lugar dele. E deu certo essa coisa de eu vir pro Rio tocar. O Regional de Pernambuco do Pandeiro foi o primeiro e único regional em que toquei no Rio de Janeiro, depois não toquei mais em regional, fui mudando os estilos, mudando tudo, sem me afastar do choro e de nenhum estilo de música.

Fui vendo que o Brasil, por ser o país mais colonizado do planeta não poderia ter uma música só, um gênero apenas. É como o pintor que afirma que só pinta com uma cor. É muita forçação de barra querer dizer que o trem anda do mesmo jeito no trilho, então por que a gente tem que andar, ficar sempre igual, fazer sempre as mesmas coisas, e sempre do mesmo jeito?”, defende o gênio da música instrumental.

O disco Batucando no Morro – Pernambuco do Pandeiro e seu regional, de 1958, é gravado integralmente com o acordeon de Hermeto Pascoal.

Hermeto no Choro

Sempre inventando novas formas de fazer o que todo mundo repete e imita, Hermeto compôs um choro maravilhoso, que foi uma febre entre os chorões durante algumas décadas. Seu choro ‘Chorinho pra Ele’ é considerado uma obra-prima e até hoje, desde que foi gravado, em 1977, é referência para exemplificar exatamente a fala do bruxo de que é possível sim compor choros com sotaques modernos, vigorosos.

“A música tem participação da lenda do contrabaixo acústico Ron Carter. A composição está dividida em três partes, denominadas como Intro, A e B. A forma da música é Intro, A, Intro, A, Intro, B, A, Intro, B, A e Intro, sendo que as últimas partes A e Intro são tocadas no dobro do tempo original, para encerrar a peça. Chorinho pra Ele tem uma fórmula de compasso 2/4, característica de vários ritmos brasileiros. A divisão rítmica é colcheia pontuada com semicolcheia, também muito encontrada. Na Intro, foram utilizadas as fundamentais de cada acorde nas repetições que ocorrem nos compassos 1 a 4, 21 a 24 e 41 a 44. Entre os compassos 70 e 73, o baixista explora notas abafadas e aproximações cromáticas para a tônica do próximo acorde. Quando o andamento da música dobra, Carter utiliza a tônica de cada acorde para construir a frase”, diz uma nota sobre a música publicada na Revista Bass Player 4/, janeiro de 2012.

O contrabaixista estadunidense Ron Carter participou da gravação da música  Chorinho pra Ele, de Hermeto Pascoal, no clássico LP Slaves Mass, do chorão Hermeto

O contrabaixista estadunidense Ron Carter participou da gravação da música Chorinho pra Ele, de Hermeto Pascoal, no clássico LP Slaves Mass, do chorão Hermeto

A faixa integra um disco clássico da discografia brasileira e universal: Slaves Mass, de 1977. Gravado nos Estados Unidos, o disco deu a Hermeto projeção internacional. Durante nossa entrevista ele contou o processo criativo de composição da música Chorinho Pra Ele:

Slaves Mass, o disco que projetou Hermeto  Pascoal definitivamente na cena internacional tem um choro em uma das faixas: Chorinho pra Ele. Aqui vemos a arte da capa original do disco (1977) com versão em japonês, à venda nos formatos mp3, cd e vinil, numa rede gigantesca de e-commerce

Slaves Mass, o disco que projetou Hermeto Pascoal definitivamente na cena internacional tem um choro em uma das faixas: Chorinho pra Ele. Aqui vemos a arte da capa original do disco (1977) com versão em japonês, à venda nos formatos mp3, cd e vinil, numa rede gigantesca de e-commerce

“Bela pergunta, porque me dá a chance de dizer que quando eu faço música, quando eu componho música eu vivo o momento que estou compondo a música e deixo pros outros curtirem. E como é que eu faço: escuto os grandes músicos, técnicos, teóricos, que pegam o instrumento e  impressionam, pegam o instrumento e fazem aquilo que eu falo, correm muito e depois tem que voltar.

Que adianta você tocar muito, fazer o negócio com muita velocidade e não tocar bonito uma melodia cheia de acordes lindos ou com poucos acordes…? Por que quem toca sempre rápido… Por exemplo, o maior bandolinista de todos os tempos: Jacob. Por que? Porque Jacob mostrou isso. Ele tinha técnica. Se ele quisesse fazer o que Luperce Miranda fazia, ele podia fazer.

Quando eu vejo um desses músicos técnicos, que mostram muito a técnica, vejo um pouco de pressa, um pouco, não, muita pressa, é um impressionismo… que se fosse dosado… Como é dosar? Aí vem o ‘Chorinho pra ele’. Como é que é o Chorinho Pra Ele? Eu fiz assim… (canta) tá tá rara.. A minha música pode ser tocada em qualquer andamento, por isso é que eu não boto nas partituras como é que tem que se tocar; eu deixo pra cada um tocar como quiser. E o Chorinho Pra ele foi para mostrar pra eles que quando eu tô voltando, quando eu vejo que estou voltando, eu quebro tudo! Então não custa nada dosar. Mas não foi muita gente que tocou, não! Muita gente não conseguiu foi tocar o Chorinho Pra Ele.

Vivi um episódio interessante com o Egberto Gismonti que envolve essa música; o Chorinho pra Ele. Acho que é a primeira vez que vou contar… vocês me inspiram… Isso foi na época em que eu morava aqui no Rio ainda, não tinha me mudado para São Paulo. E veio ele. Veio no Volks dele… me lembro. Não somos amigos de estar um na casa do outro e nunca temos tempo… coisas do dia-dia. E ele chegou, começamos a conversar… e ele disse: Hermeto, eu vim por uma coisa, cara, eu vim aqui porque eu escutei você tocar o Chorinho pra Ele e não acreditei que você gravou sem aumentar o andamento na máquina. Ao mesmo tempo eu gostei e não gostei da afirmativa dele, mas eu sei dividir as duas coisas e do que mais gostei foi da sinceridade dele… Inteligente, como sei que ele é, ele entende. Ele é um cara superinteligente. Foi um dos primeiros a entender de sintetizador quando isso começou. Fiquei perplexo, mas como estava em forma e diante da oportunidade, toquei o Chorinho pra Ele para o Egberto, que viu e ouvir atento a cada detalhe. Ele, assim de repente, veio na minha casa e me pediu para tocar Chorinho pra Ele? Foi aí que eu toquei muito mais rápido ainda! E olha que ele nem tinha falado ainda que estava duvidando que eu tocasse naquele andamento tão rápido! Mas minha intuição me disse para tocar muito mais rápido, o que o deixou mais espantado do que já estava quando chegou a minha casa.

E vem cá? Vocês querem falar de choro? E um ‘Bebê’?… E outras lindas melodias? Eu só vou fazer músicas assim? Para correr? Tem que ver o lado melódico! Os músicos tem que ter mais paciência. Ver mais as melodias.

Eu vejo na TV um menino tocando flauta bem pacas e eu vejo o rosto dele com cara de velho, imitando aquele que ele escutou para aprender o disco. Gente, eu faço tudo na minha vida pensando nas crianças!!! Nas crianças!… Aquilo que eu fiz já tem que estar moderno, na evolução…   Por que eles usam tênis e não tamancos? Por que com a música teria que ser diferente? A coitada da música tem que ficar parada? Não! A gente tem que dar um ‘toque’ nas coisas. Não existe nada diferente. As coisas são semelhantes.

Você vê que eu não uso um gênero musical pré-definido para falar da música que faço. Paulo Moura achava que eu era o cara que tinha que mudar o jeito de tocar, mas ele próprio tinha lá suas barreiras. Nós não tínhamos muito contato; ele morava no Centro, eu morava aqui. Só que é aquilo: ele nunca tocou de forma quadrada o instrumento. O maestro Copinha nunca tocou quadrado. Quem tem a sua personalidade não é quadrado! É quadrado quem imita fazendo uma coisa que era para ter sua personalidade e não tem”, enfatiza Hermeto.

Em sua carreira, o músico compôs, interpretou, arranjou, inventou instrumentos. Na listinha que não é pequena, coleciona várias turnês internacionais e nacionais, dezenas de homenagens, prêmios, mais de 24 discos gravados e milhares de cópias vendidas ao redor do mundo.

Seu repertório de choro não é extenso, mas também não é pequeno. Podemos dizer que de certa maneira a obra de Hermeto dialoga naturalmente com o choro. Dentre suas composições que mais teriam essa característica, destacamos as feitas para o LP Eu e Eles (1999), onde Hermeto toca todos os instrumentos; os choros Reboliço; Vocês me deixam ali e seguem no carro, este feito especialmente para o conjunto Galo Preto, em 1981; Salve Copinha, uma homenagem póstuma e apaixonada ao maestro e flautista Nicolino Cópia; Chorinho Nervoso; Intocável; Batucando nas Matas; Chorinho Pra Ele, e 23 de dezembro. Isso para citar alguns de seus choros mais conhecidos, pois sua obra é permeada de choros.

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Arte da capa do clássico LP Eu e Eles, de 1999

“Quando Fábio me contou sobre a entrevista e que era para falar de chorinho fiquei muito contente! Gosto muito de falar sobre choro! Chorinho é coisa de minha infância, é coisa boa. E o chorinho me acompanha em tudo. Gosto muito de chorinho, é coisa muito minha…”, revela Hermeto sua face o chorona.

Para onde caminha a música brasileira e o choro

Indagado sobre como vê e sente hoje a música brasileira, Hermeto considera que está já se universalizou:

“O vento levou a música brasileira para universalizá-la. Tentaram fazer da nossa música o que fizeram com a indústria cultural, mas a música é como o céu, as estrelas, como o mar, como as cores… e não conseguiram. Num país tão colonizado como o Brasil, talvez o mais colonizado do mundo, afirmar que aqui só se faz e só se toca um tipo de música é besteira. A música brasileira é múltipla. Eu chego lá em Portugal e tá o cara tocando uma viola caipira bonita, as meninas tocando cavaquinho, chorinho na Argentina, só que lá eles não dão o nome de chorinho, chama de outra coisa. E é assim que funciona… O país que tem mais influências de todos os países somos nós. O Brasil é o país com mais influências de todos os cantos do mundo. Nossa música é essencialmente universal”, considera Hermeto.

O ensino de música no Brasil

Não tínhamos como durante nossa entrevista com Hermeto, não perguntar sobre seu interesse em dar aulas, passar seus conhecimentos, ter uma escola música com seu nome e seu legado. Consciente de que o ensino de música no Brasil deveria receber mais atenção dentro das escolas públicas, Hermeto considera que a responsabilidade é, em muitas vezes, dos próprios professores de música, já que, servidores com estabilidade, estes têm receio de implantar novos modelos de ensino e aprendizagem.

“Fui chamado pelo governador do Paraná, Requião, para pensar uma metodologia para as aulas de música nas escolas de lá. Olha, vocês tinham que ver a cara dos colegas professores quando eu comecei a falar o que eu precisava para colocar em prática minha metodologia. Porque para ser músico tem que ser bom, tem que ter aptidão. Quem atrapalha mais são nossos colegas. O povo não quer saber, o povo quer sentir. Nossos colegas é que travam tudo. Muito por conta da estabilidade que um emprego público pode trazer”, revela o Mestre Hermeto Pascoal.

Tá tudo liberado!

Em 2016, Hermeto Pascoal completa 80 anos. Com uma carreira e obra em constante ascendência, o bruxo dos sons chega ao auge da maturidade nos ensinando o que é universalidade musical e o sentido da verdadeira generosidade.

“Da vontade de que as pessoas toquem minha música é que nasceu a liberação de minhas composições. Incomodou as editoras, sim, incomodou, mas eu liberei, mesmo, todas as minhas composições. Quem quiser gravar qualquer música minha é só entrar em contato com o Fábio, que eu assino e a pessoa não paga nada”, diz o altruísta Mestre Hermeto.

Hermeto Pascoal 80 anos

Ano que vem Hermeto completa 80 primaveras. A data será marcada com celebrações à altura da obra do grande instrumentista, que adiantou o seguinte: podemos esperar coisa boa, porque vem CD novo por aí!

“A Lona Cultural Hermeto Pascoal (RJ), receberá uma exposição com diversos trabalhos do Hermeto: pinturas, guardanapos com músicas, desenhos… Na ocasião lançaremos um DVD com a participação de antigos integrantes da banda do Hermeto”, adianta seu produtor, Fabio Pascoal.

Ele nos conta que há também uma biografia de Hermeto sendo preparada e muitos shows, novas composições e novos arranjos a caminho.

Nossa entrevista terminou com Hermeto e Fabio Pascoal fazendo um som. Hermeto colocou uma colher na boca e Fábio, com outra, batucou a melodia ‘Parabéns pra você’ na colher que estava na boca do pai. Emocionante para nós: fãs e admiradores eternos da obra deste gênio que é Hermeto Pascoal.

Assista e Ouça!

Intocável – Por Jovino Santos Neto

Boukas on Pascoal 2: Hermeto Pascoal and Choro

Hermeto Pascoal e Grupo – Salve Copinha

Hermeto – Só não toca quem não quer – Reboliço

Arranjo para Rosa de Pixinguinha – Piano Solo

Chorinho Pra Ele – Slaves Mass

Doc. Hermeto, Campeão – Thomaz Farkas (1981)

Disco Eu e eles – Rádio Mec – Parte 1

Parte 2

Parte 3

23 de dezembro – Itiberê Família

Batucando nas Matas – Hércules Gomes

Pernambuco do Pandeiro e seu regional com Hermeto no acordeom e mais: Pernambuco no Pandeiro, Escurinho na Flauta, Nilton e Jorge,violões, Ubiratan, cavaquinho, Bucy Moreira e Arnõ Carnegal, surdo, Raul Marques, agogô, Boca de ouro, cuíca e Tufy, afoxé.

Um chorinho pra você (Severino Araújo)

Um chorinho na aldeia (Severino Araújo)

De perna bamba (Guio de Moraes)

Eu quero é sossego (K-ximbinho)

 

Quebrando Tudo (Rodrigo Hinrichsen, 2004)

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Author: imprensabr