Chorando em francês


Dedicadas à pesquisa da música brasileira, a dupla de musicistas francesas Aurélie & Verioca enfatizam o choro em seu repertório

Por Leonor Bianchi

O Brasil é praticamente a segunda casa da multi-instrumentista francesa Verioca (56), que desde os anos de 1980 frequenta nossa terra em busca de inspiração para sua produção musical. Aqui ela conheceu nossos ritmos e se surpreendeu com o que escutou. O choro apareceu em sua vida quando estudou num conservatório tradicional e conheceu a obra do nosso grande maestro e chorão Heitor Villa-Lobos.

Ao seu lado, Verioca tem a presença irradiante da cantora, compositora e também instrumentista Aurélie (42). Se falta ‘tempo de casa’ para equiparar a intimidade que sua amiga de palco Verioca tem no Brasil, não falta a Aurélie intimidade com nossa música e nossa cultura. Em uma semana conversando com ela por email e telefone para compor esta breve entrevista, pude perceber sua clareza de pensamento em nosso idioma e seu amor e respeito pela música brasileira.

Essa relação simbiótica entre uma & outra só poderia resultar um trabalho impecável e original o qual conheceremos um pouquinho, agora, juntos.

No Brasil desde o início de maio, elas encerram dia 3 agora, quinta-feira, sua turnê 2017 por terras brasileiras, na Ilha de Paquetá, lugar de tradição no choro, no Rio de Janeiro, onde em tempos idos nasceu, residiu e faleceu o maestro da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, Anacleto de Medeiros, conhecido como o responsável por levar o choro para o ambiente das bandas. Ano passado, os chorões celebraram os 150 anos do nascimento de Anacleto de Medeiros (Rio de Janeiro13 de julho de 1866 — Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1907), compositor de Os Boêmios’, seu choro mais popular. Hoje elas fazem uma apresentação no Sesi SP, onde também se apresentaram pelo interior, em Piracicaba, Sorocaba, Campinas e São José dos Campos. O duo fez ainda uma única apresentação em Goiânia.

 Verioca (violão) & Aurélie (pandeiro) pelas lentes de Daniel Kersys

Verioca (violão) & Aurélie (pandeiro) pelas lentes de Daniel Kersys

Revista do Choro: Vocês são francesas. Como se conheceram? Algum parentesco? E como se apaixonaram pela música brasileira?

Verioca: Nasci perto de Clermont-Ferrand, no centro da França, e eu moro em Montpellier (no sul da França, perto do mar), há mais de 10 anos. Não tenho nenhuma ligação familiar com o Brasil. Toco música brasileira há 30 anos, então essa música é mais que uma inspiração para mim, ela virou a minha música!

Meu contato com a música brasileira começou quando estudei violão clássico no conservatório. Tinha estudado algumas obras de Villa Lobos, Tom Jobim, e logo depois descobri a pianista e cantora Tânia Maria. Foi como uma revelação. Soube, imediatamente, que era esse tipo de música que eu queria tocar.

Desde então, comecei a estudar e nunca mais parei. Hoje, além do meu violão de 6 e da minha voz, toco percussões (surdo, pandeiro, tam- tam, repinique, alfaia, tamborim etc…), cavaquinho e Violão de 7 cordas.

Como multi-instrumentista, toco em vários grupos de música na França; a maioria dedicados à música brasileira: Madrugada, grupo de samba; Choro Sorrindo, regional de choro; Guaraná Samba, com repertório afro-brasileiro; Onda Maracatu, como o nome diz, toca maracatu. E também desenvolvo projetos com cantoras que interpretam canções francesas, como Marie Busato, e para grupos de infantis, como o Les p’tits loups du jazz.

Aurélie: Nasci em Paris e moro lá desde sempre. Meu avo paterno era da Polônia e minha mãe nasceu na Argélia. Do meu lado também não tem nenhuma ligação com o Brasil na minha família. Quem sabe numa outra vida éramos formigas brasileiras… ou “bem te ví“ talvez?

Ouvi o meu primeiro disco de música brasileira quando tinha 14 anos de idade. Era um disco do Chico Buarque e a gravação ao vivo de Vinicius com Toquinho e Maria Creuza para a música “En la fusa”. Depois comecei a cantar a música de Michel Legrand e standards de jazz. Mas nas partituras do Real Book, queria sempre cantar os temas brasileiros. Apenas anos depois, em 2003, foi que encontrei um professor muito querido, o Eduardo Lopes, que morra na França e faz oficinas de música brasileira, e graças a ele desenvolvi minha paixão pela música brasileira de uma forma muito profunda, longe dos clichês. 

Comecei minha vida profissional trabalhando com cinema. Primeiro com produção e logo depois como roteirista. Queria contar histórias e acho que é exatamente o que eu quero fazer no palco hoje. 

Verioca: Nós nos cruzamos pela primeira vez em 2002 numa oficina de jazz que eu estava dando. Depois a Aurélie me contatou em 2007 para me propor de montarmos juntas um repertório de versões de Guinga e de Aldir Blanc. Eu só podia aceitar pois eu admiro desde sempre o trabalho deles. Preparamos, então, umas vinte músicas, e começamos a viajar com o show.

Aurélie: A Verioca tinha acabado de abrir o show da Tânia Maria, no Olympia de Paris, e eu fiquei muito fã do trabalho dela. Escutei seus dois primeiros cds, sem parar durante um certo tempo, antes de pensar em propor minhas letras. O começo da parceria na composição é mais recente, aconteceu no final de 2009.

Revista do Choro: É interessante vocês falarem nesta distância de clichês. Em seu novo disco, por exemplo, vemos, entre os compositores, os nomes de Joyce Moreno e Egberto Gismonti, entre outros, além do nome dela e de Swami Jr. entre as muitas participações especiais. Gostaria que vocês comentassem um pouco o processo de realização deste disco (criação e seleção de repertório, produção, gravação etc.).

Aurélie: Temos uma relação específica com cada músico que participou do nosso disco. Vamos começar com a Joyce. Ela conhece o trabalho solo da Verioca há mais de 15 anos. A empresária dela na época, a Beth Bessa, que agora é nossa produtora no Rio, tinha oferecido os dois primeiros discos dela. Ela já tinha  gostado muito. Finalmente, nos encontramos no Rio em 2010, durante uma oficina de música brasileira conduzida pelo meu professor Eduardo Lopes. Cantamos ‘Essa mulher’ para ela e ela gostou. A amizade nasceu assim. E quando escrevi essa letra na música instrumental dela “For Hall“, pedi a autorização e ela me deu na hora. Ela fala fluentemente francês e aceitou o convite para participar do disco com a maior simplicidade e alegria. O ano passado, foi uma alegria poder convidá-la para nos acompanhar no Sesc Tijuca, onde tocamos uma das suas últimas músicas, ‘Claude et Maurice’, feita em homenagem a Claude Debussy e Maurice Ravel.

Com Gismonti foi diferente. Quando escrevi a letra do ‘Lôro’ e quando a Verioca chegou a um arranjo interessante, consegui o email dele e pedi a autorização de mostrar essa versão. Ele demorou um pouco para me responder, mas quando respondeu, nos acolheu com uma generosidade incrível. Ele tinha ‘estudado’ o nosso trabalho com muito carinho e nos deu sugestões e opiniões que vão ficar para sempre em nossos corações.

Com Swami Jr. foi um pouco semelhante. A gente tinha um amigo em comum, o Marcelo Preto, que já tinha gravado no nosso primeiro disco. E quando eu fiz a versão de ‘O tempo de um samba’ ele aceitou ouvi-la. Na época não sabia que ele falava francês, pois havia morado em Paris alguns anos. Ele topou para gravar e o resultado ficou lindo!

Interessante notar, que Tanto a Joyce quanto Gismonti e Swami Jr. falam francês muito bem. Isso é só para ilustrar um fato já sabido: o de que essa ‘ponte franco-brasileira’ funciona nos dois sentidos.

Os outros convidados do disco são amigos que escolhemos com muito carinho. Pode parecer esquisito, mas a gente gosta de apresentar músicos brasileiros que não se conhecem. Foi assim que o Luis Filipe de Lima fez um duo com Osman Martins, no Cavaquinho. Os dois nunca tinham se encontraram; o Osman mora na Bélgica, há anos, e o Luis Filipe é radicado no Rio, contudo, a musicalidade deles juntos é impressionante!

Os integrantes do regional mineiro ‘Flor de Abacate’, que toca no ‘Pas à pas’ são nossos amigos desde 2012, quando fizemos nossa primeira turnê em Minas Gerais. Temos uma admiração muito grande pelo trabalho deles tocando juntos e individualmente também. O irmão do Dudu e Ramon Braga até gravou uma música nossa no primeiro disco ‘Reconciliação’, dele.

Mas também tem participações de músicos daqui. O Médéric Bourgue, no Cello, é um dos raros músicos daqui que conhece bem a música brasileira e a suas síncopes tão particulares. Ele também toca bateria, mas tem um som lindo no Cello. A Cléa Thomasset é uma amiga de longa data, que tem uma relação muito forte com o Brasil e dedica sua música ao chorinho. A Clea até entrou na letra da nossa música ‘Naquele bar’, pois essa música fala das rodas de choro e samba que acontecem sempre em Paris. O Marco Ruviaro é seu amigo. Chorão de primeira, compositor, bandolinista, também toca clarinete muito bem!

O cd foi gravado ao longo de um ano de produção incluindo sua finalização. Gravamos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Paris e Bretanha. Pode parecer muito, mas é o tempo que precisávamos para amadurecer cada música. Deveria dizer cada compasso de cada música. E também a vantagem de não ter gravadora. Como independentes, podemos ter o tempo que precisamos; basta foco!

Vou acrescentar aqui que, como trabalhei com produtora de cinema, sei ‘mexer’ com essa burocracia chata. Não é minha praia, como vocês falam aqui no Brasil, mas temos que fazer para podermos viabilizar nossos sonhos.

Revista do Choro: ‘Pas a pas’ é um disco bilíngue. Mesmo cantando em francês, músicas compostas por vocês, é um disco que soa brasileiríssimo. Quais são os principais canais de fruição da música brasileira para vocês? Discos chegam ao mercado, vocês importam, baixam, ou um pouco de tudo isso?

Verioca: Comecei a me interessar pela música brasileira nos anos de 1980. Nesta época não tinha internet, então eu sempre procurava discos de vinil (tenho mais de 600 Lps de música brasileira e mais de 500 cds), viajava ao Brasil quando podia para caçar as pérolas que podia achar. Também assistia cada vez que possível, os brasileiros que tocavam na França, como por exemplo ‘Les étoiles’, com Rolando Faria e Luiz Antônio, ou Tânia Maria, de São Luis do Maranhão, ou Mônica Passos. Em minhas viagens procurava partituras e voltava para França para estudar.

Aurélie: Hoje é mais fácil. Facebook é uma ferramenta que pode ser muito ruim, mas que é, sem dúvida, uma fonte incrível para descobrir novos talentos. Essa semana, descobri o grupo vocal ‘Ordinarius’, e me encantei! Mas cada vez que viajamos nossa mala volta cheia de discos novos. O que é incrível no Brasil é que, apesar das dificuldades que os músicos bons têm para terem visibilidade na grande mídia, há sempre novos compositores, interpretes e talentos surgindo.

Revista do Choro: Imagino que se a Verioca viajava assim com frequência para captar vinis e partituras aqui no Brasil, ela deve ter sido uma das grandes responsáveis pela difusão da música brasileira em Paris nos últimos 30 anos. Isso é fato? Ainda que esta difusão tenha se dado em determinado nicho, ou gueto, digamos assim, certamente ela influenciou instrumentistas franceses de pelo menos duas gerações…

Verioca: E difícil falar para os outros, mas com certeza, desde que eu me interessei na música brasileira, eu sempre procurei ensinar o que eu sabia para quem estava a fim de aprender. Isso me deixa muito feliz sempre. Pois a música brasileira me proporcionou tanto prazer, tanta alegria que, cada vez que eu posso espalhar um pouco dessas riquezas, eu espalho!

Agora, têm muitas outras pessoas na França que se encantaram pela música brasileira e que fizeram a mesma coisa, pois quem se apaixona pela música brasileira, se apaixona de verdade, e não pode ser pela metade!

Revista do Choro: Nesta turnê que estão fazendo no Brasil, vocês estão apresentando seus CDs. Como foi esta temporada e o que o público verá na último espetáculo da dupla, em Paquetá, local que tem tradição de choro?

Aurélie: Nesta turnê a gente misturou o repertório dos nossos dois discos autorais. Desta vez, também entrou no repertório uma música instrumental da Verioca (gravada no primeiro disco dela) chamada ‘Choro sorrindo’, e duas versões bilíngues para ‘Águas de março’ (Tom Jobim/ Vinicius de Moraes/ Georges Moustaki) e ‘Odeon’ (Ernesto Nazareth. Vinicius de Moraes/ Georges Moustaki). Além disso, fazemos questão de interpretar ‘Baião de Lacan’ (Guinga/ Aldir Blanc) e ‘Outro cais’ (Eduardo Gudin/ José Carlos Costa Netto / Aurélie Tyszblat). Mas nesta turnê de 10 shows, fizemos um espetáculo na Casa do Choro dedicado ao choro cantado e pretendemos incluir um pouco desse repertório no show de Paquetá. Paquetá é um lugar muito especial, repleto de músicos e pessoas maravilhosas. Queremos encerar essa turnê com um show mais misturado ainda.

Revista do Choro: Quando retornam a Brasil?

Aurélie: Desde 2012 fazemos uma turnê por ano aqui no Brasil, e até hoje sempre aconteceram em maio. Mas este ano, estamos pensando em voltar mais uma vez. Vai depender das oportunidades, mas pode ser que voltemos em outubro ou novembro.

Revista do Choro: Quais os projetos para o próximo semestre deste ano?

Aurélie: Vamos começar a escrever o próximo disco e fazer os ensaios. Vai ser um disco na continuidade do nosso trabalho autoral, sempre misturando os ritmos e os idiomas. E para esse terceiro disco, vamos chamar um parceiro; Cyril Hernandez, que é um artista muito ligado ao Brasil também, e que faz um trabalho muito legal com percussões contemporâneas e sons do cotidiano. Vai ser uma proposta mais cinematográfica. Mas é um segredo ainda, pois estamos começando essa parceria…

Revista do Choro: Qual relação vocês têm como o Club do Choro de Paris?

Aurélie: Temos uma relação boa! O Clube de Choro nos convidou em 2013 para um show no Festival International do Choro de Paris, que acontece uma vez por ano, em março. A Maria Inês Guimarães faz um trabalho muito importante para formar novos músicos junto com os professores. É um lugar fundamental junto com os demais clubes do choro que existem na França, em Bordeaux, Toulouse, Strasbourg, Rennes e os músicos que fazem um trabalho de divulgação e de formação de público fundamental. Estou pensando no duo Luzi Nascimento, Karine Huet, Cléa Thomasset, Yesser Oliveira, Olivier Lob, Jeff Calmard, Thierry Moncheny e muitos outros…

 

imprensabr
Author: imprensabr