Sol sobre a lama: Pixinguinha e Vinicius imaginaram ‘um mundo melhor’ com Beth Carvalho


Leonor Bianchi

Alex Viany, um dos expoentes do cinema novo e do ciclo baiano de cinema encomendou a Vinícius de Moraes e Pixinguinha a composição da trilha sonora do seu filme Sol sobre a lama. O longa produzido pela Guapira filmes foi lançado no dia 24 de outubro de 1963, no cine Guarani, em Salvador.

O samba “Mundo Melhor”, interpretado por Beth Carvalho cuja letra segue abaixo foi uma das 16 músicas que integrou a trilha composta pela parceria inédita até então na música popular brasileira.

Mundo Melhor

(Vinicius de Moraes e Pixinguinha)

Você que está me escutando

É mesmo com você que estou falando agora

Você que pensa que é bem

Não pensar em ninguém

E que o amor tem hora

Preste atenção, meu ouvinte

O negócio é o seguinte

A coisa não demora

E se você se retrai

Você vai entrar bem, ora se vai

Conto com você, um mais um é sempre dois

E depois, mesmo, bom mesmo, é amar e cantar junto

Você deve ter muito amor pra oferecer

Então pra que não dar o que é melhor em você?

Venha e me dê sua mão

Porque sou seu irmão na vida e na poesia

Deixa a reserva de lado

Eu não estou interessado em sua guerra fria

Nós ainda havemos de ver

Uma aurora nascer

Um mundo em harmonia

Onde é que está a sua fé

Com amor é melhor, ora se é

Pixinguinha compôs 16 músicas para o filme, fez todos os arranjos e dirigiu a gravação da trilha com grandes músicos da época.

Vinícius de Moraes e Pixinguinha

Vinicius de Moraes e Pixinguinha

 Pixinguinha no cinema

Graças a pesquisas neto do diretor de cinema, Marcelo Vianna e do maestro Caio Cezar, a trilha do longa metragem, nunca lançada em disco, pode ser regravada e contou com a participação de importantes intérpretes da atualidade, que deram novos arranjos as músicas em suas interpretações.

No repertório cinco músicas em parceria com Vinícius: Mundo Melhor, Samba Fúnebre, Lamento e as desconhecidas Seule (com letra em francês) e Iemanjá.

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Em novembro de 2017, foi lançado o CD ‘Série Pixinguinha’, resultado de um criterioso trabalho de pesquisa desenvolvido no acervo particular do artista, com o intuito de apresentar ao público o lado menos conhecido do compositor, instrumentista e, principalmente, do arranjador.

No disco, a música ‘Mundo melhor’ é interpretada pela cantora Elza Soares:

Pixinguinha no Cinema resgata a trilha sonora original do filme Sol Sobre a Lama com participações vocais de Elza Soares, Diogo Nogueira, Jards Macalé, Céu, Mariana de Moraes e Marcelo Vianna. Dentre o time de instrumentistas, também só feras: Andrea Ernest Dias, Dirceu Leite, Carlos Malta, Vittor Santos, Ana de Oliveira, Eliézer Rodrigues, Toni 7 Cordas e Carlos Negreiros.

Repertório: 1. ABERTURA 2. ALVORADA 3. SEULE 4. ÁGUA DE MENINOS 5. BABAU 6. MUNDO MELHOR 7. BARRA FALSA 8. INGÊNUO 9. IEMANJÁ 10. ATAQUE À DRAGA 11. GOZAÇÃO 12. TORTURA DO MAR 13. SAMBA FÚNEBRE 14. SÃO FRANCISCO DE OURO 15. LAMENTO 16. CHEGA MAIS PRA CÁ IAIÁ.

Curta sobre a trilha sonora do longa

O curta-metragem ‘Nós somos um poema’ documentário, dirigido por Beth Formaggini e Sergio Sbragia,  comp da Lume Arte conta  a história da quase desconhecida da parceria de desses gênios da música popular brasileira, Pixinguinha e Vinicius de Moraes, que a convite do diretor de cinema Alex Viany, compôs a trilha sonora do seu filme Sol OLsobre a lama, produzido na Bahia, em 1963.

O ciclo baiano de cinema e o filme ‘Sol sobre a lama’

Película rara de uma das cenas do filme onde aparece Glauce Rocha, irmã do cineasta Glauber Rocha, em uma de suas atuações no cinema

Película rara de uma das cenas do filme com a atriz Glauce Glauce Rocha (de frente para a câmera)

Sol sobre a Lama (1963), de Alex Viany (1918-1992), tem o mesmo pano de fundo de A Grande Feira (1961), de Roberto Pires (1934-2001). Uma comunidade pobre de Salvador organiza resistência contra a destruição da Feira Água de Meninos, lugar de vida e trabalho daquela população, formada por feirantes, pescadores, malandros, prostitutas, bicheiros e crianças.

Diante do fechamento do cais, a comunidade é forçada a optar por dois caminhos. Para Vadu (Roberto Ferreira), antigo dono de um armazém, a única forma eficaz de deter a destruição da região é sabotar a draga. Valente [Geraldo del Rey (1930-1993)], outro líder da comunidade, propõe o diálogo com políticos locais e manifestação na imprensa. A proposta de Vadu vence, mas a traição de Babau [Carlos Petrovich (1936-2005)] frustra o plano: a denúncia previne a polícia para proteger a embarcação e dispersar os revoltados. Valente também não tem êxito com os políticos, mas matérias na imprensa – pagas com dinheiro arrecadado na comunidade – conseguem conter momentaneamente a destruição promovida pela draga. O progressista Valente afirma a síntese entre suas ideias e as de Vadu, o que resulta na conscientização geral para enfrentar o futuro de injustiças sociais.

O projeto de Viany é nítido: extrai de um problema real – o aterramento da angra de Água de Meninos – assunto de seu drama – a organização popular. Cineasta e militante do Partido Comunista, o diretor defende a organização das classes populares e denuncia a opressão capitalista. A concepção unívoca de classes populares, marcadas apenas pela violência é desfeita com a pluralidade dos personagens retratados no filme. Teresinha [Dilma Cunha (1941)] é a menina prostituída; Moreno [Othon Bastos (1933)] é o caminhoneiro mulherengo; Pureza [Glauce Rocha (1930-1971)] é a militante apaixonada por seu líder; Costeleta [Milton Gaúcho (1916-2005)] é o bicheiro sem escrúpulos e Bom Rojão [Antônio Pitanga (1939)] é o malandro boa-praça.

Nas sequências iniciais, o filme destaca a opção realista e a recusa de representação simplificadora. Um narrador descreve o tema do filme, enquanto são exibidos aspectos da vida em Água dos Meninos. Um plano geral mostra a feira e seus barracos. Um homem colhe cocos, uma canoa aporta, outro homem distribui gaiolas a crianças e um terceiro faz sinalização para pescadores em canoa. A fumaça negra de uma embarcação irrompe na tela, em contraste com as imagens telúricas anteriores. A vela de um saveiro é recolhida. Pescadores observam o horizonte, enquanto a chaminé cospe fumaça. Outra vela é içada e inicia-se uma conversa entre os homens do mar. Um jato de água suja sai do cano da draga e Mestre Manoel (Lídio Silva) anuncia mudanças. Um corte brusco leva ao interior da favela de Água de Meninos, onde uma mulher é perseguida e esfaqueada, enquanto uma canção francesa e romântica contrasta com a violência da cena. O volume da canção aumenta até o som ser distorcido, e a imagem transfigura-se em negativo.

A sequência apresenta dois registros de representação da realidade: por um lado, as imagens dos saveiristas contrasta de maneira abrupta com a draga que representa o progresso, referência ao cinema soviético e à montagem dialética proposta pelo cineasta russo Sergey Eisenstein (1898-1948)1. Por outro lado, a decupagem do assassinato segue os princípios do cinema comercial, com continuidade espacial e montagem alternada. Mais diversificada, a primeira sequência alude ao confronto entre comunidade e sociedade, atraso e progresso, religião e racionalidade.

Sol sobre a Lama explora questões objetivas e discute a condição socioeconômica da população carente. A recusa do cinema comercial é enfática, mas a proposta realista do filme reduz alguns aspectos formais da narrativa: a representação das classes abastadas, por exemplo, redunda em lugares-comuns, como o rico corrupto e a madame frívola. Um exemplo da concepção política que ampara o filme é Mestre Manoel, líder dos saveiristas. Conselheiro dos homens do mar, ele lança o grito contra a crueldade do progresso: “Vai haver castigo. Só minha mãe, a rainha das água [sic], pode fechar os caminhos do mar”. Ele também entrega ao mar o destino do traidor Babau. Esse líder, no entanto, não possui um projeto emancipador: cabe a ele apenas a profecia a ser cumprida por outrem. A religiosidade popular não se configura como alienação, mas também não fornece elementos para a ação coletiva renovadora. A narração prioriza o discurso da comunidade em aglutinação política e trata com simpatia aspectos indiretos à transformação.

Antes de ser exibido comercialmente, a edição do filme provoca desentendimento entre diretor e produtor: João Palma Neto submete a película à remontagem e Viany ameaça retirar seu nome dos créditos. A disputa torna-se pública2. A crítica intervém no debate: Benedito Junqueira Duarte (1910-1995), de O Estado de S. Paulo, acusa Alex Viany de “aventureiro” e “falso cineasta”. O carioca Henrique Pongetti (1898-1979), de O Globo, considera que, apesar da remontagem, o filme possui qualidades. Para superar a disputa, o crítico baiano Walter da Silveira (1915-1970) analisa o filme em três artigos para o Jornal de Notícias: descreve os percalços da produção, reconhece a cultura cinematográfica de Viany, mas conclui que o filme não alcança profundidade3. Em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha (1939-1981) destaca a contribuição do filme para o adensamento do realismo que antecede o cinema novo. Jean-Claude Bernardet (1936) destaca o idealismo do enredo, que individualiza ações sem tratar em profundidade suas motivações. Porém, aponta o filme como caso exemplar do pensamento social mistificador do povo e de sua capacidade de emancipação.

Depois de Sol sobre a Lama, Alex Viany retoma a carreira de crítico e historiador de cinema e só volta a filmar em 1978, quando realiza A Noiva da Cidade, antigo argumento de Humberto Mauro (1897-1983).

Notas

1 Muitos críticos indicam as influências de Alex Viany apresentadas no filme, do neorrealismo ao cinema soviético, passando pelo cinema japonês, especialmente O Túmulo de Sol (1960), do diretor japonês Nagisa Oshima (1932-2013).

2 Uma liminar judicial encerra a questão: Viany sai vitorioso e sua montagem é reconhecida como original e imutável. O filme exibido comercialmente, entretanto, mantém a remontagem realizada pelo produtor.

3  SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa. Jornal de Notícias, Salvador, 2 abr. 1963.

Ficha Técnica da obra Sol sobre a Lama:

Data de lançamento

1963

Autores

Alex Viany

Fontes de pesquisa (12)

ALBERTO, Luiz. Farsa e filme. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 5 dez. 1964.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Alex Viany renega totalmente filme. Última Hora, Rio de Janeiro, 11 set. 1964.

DUARTE, Benedito Junqueira. Muita lama e pouco sol. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 jan. 1965.

PALMA NETO, João. Sem o capricho de Alex Viany. [documento sem referência, depositado na Cinemateca Brasileira (P.196/41)].

PONGETTI, Henrique. Sol sobre a lama. O Globo, Rio de Janeiro, 14 dez. 1964.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

SENNA, Orlando. Sol sobre a lama. Jornal da Bahia, Salvador, 2 nov. 1963.

SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (Fim). Jornal de Notícias, Salvador, 17 nov. 1963.

SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (I). Jornal de Notícias, Salvador, 2 abr. 1963.

SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (II). Jornal de Notícias, Salvador, 10 nov. 1963.

VIANY, Alex. Sol sobre a lama: esclarecimentos de Alex Viany.

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Author: imprensabr