Videira: Um flautista do choro que quase passou despercebido 1


Leonor Bianchi

Não fosse a ‘pena’ memorialista de Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, o flautista chorão Videira (presumivelmente nascido em 1860, no Rio de Janeiro, e desencarnado por volta de 1895), passaria sem ser notado nas páginas da história do choro.

Foi em seu livro ‘O Choro: Reminiscências de chorões antigos’, que Animal resumiu suas impressões sobre o temível flautista com quem vivenciou uma experiência rica e cheia de generosidade.

Ao ser chamado para tocar em um batizado, Animal levou seu amigo, o instrumentista Dinga. Chegando à casa do dono da festa, Animal soubera que acompanharia com seu cavaquinho o flautista Videira. Temendo o grande instrumentista por já saber de sua fama exigente com a música e com a interpretação das mesmas, tentou, de supetão, sair de fininho para não passar vergonha ao lado do respeitado músico que animaria a noite e a festa.

Surpreendido exatamente na hora em que tentava ‘dar o fora’, ele e seu amigo Dinga deram de cara com Videira adentrando a casa onde seria a festa. Diante do temido flautista, Animal ainda tentou se esquivar, dizendo que apenas estava ali para cantar modinhas e que não sabia tocar direito, deixando a desejar àquele que seria o protagonista da música na ocasião.

Videira, contrariando suas expectativas, convidou-os para irem conversar na cozinha, onde serviu aos novos amigos um belo copo de vinho do porto. Depois da primeira talagada, Videira assumiu a figura generosa dos que sabem e querem compartilhar seu conhecimento dizendo que não deviam ter medo de acompanhá-lo, pois ele que os acompanharia.

Este episódio marcou a vida musical de Alexandre Gonçalves Pinto, que a registrou em seu livro. Hoje, muito pouco ou quase nada se sabe e se fala a respeito deste flautista chorão, Videira, merecendo sua biografia maior apreciação por parte de estudiosos e pesquisadores da história do choro.

A seguir, transcrevo integralmente o trecho do livro onde o Animal fala sobre seu encontro com o chorão Videira. Respeitei a forma como foi escrito o texto em meados do século passado por um carteiro semi-alfabetizado, mas que foi o primeiro a relatar as biografias de muitos chorões daquele tempo e do final do século XIX.

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“Videira, flautista e chorão de respeito, também já descansado desta vida aos seus 35 anos mais ou menos. É verdade que tocava de ouvido, mas sabia dizer na sua flauta o que diziam os outros, sabendo música. Era muito respeitado pelos acompanhadores, e tinha um defeito, se qualquer dos instrumentos desse uma nota fora da música, em qualquer passagem parava a flauta, o que era uma decepção para os convidados, e então, logo perguntava ao que errou. “O senhor sabe tocar?”. O que respondia o interpelado:  “- Toco pouco e a minha prática é quase nenhuma, e depois, o senhor toca com muita dificuldade, o que muito nos atrapalha”.

Com esta franqueza, Videira ficava radiante e então ia logo dizendo: “- Agora vou tocar para o senhor não cair”. E perguntando, então: Quais os tons que o senhor confere no seu instrumento? O que respondia: “- Dó maior, Sol maior, Mi menor, e só”. Respondeu Videira: “- Pois bem, então vamos tocar só nestes tons”. E assim fazia, saindo-se os fracos tocadores bem e Videira, contentíssimo demonstrando assim a sua maestria, apesar de tocar de ouvido; e mesmo para não acabar com o baile.

Vou contar um fato que deu-se comigo e um grande amigo, também como eu farrista, que era conhecido por apelido Dinga, de saudosa memória. Dinga convidou-me para tocarmos em um aniversário e batizado, lá pelas ruas de S. Diogo, hoje General Pedra. Quando lá chegamos, o flauta ainda não tinha chegado. Indagando ao dono da casa quem era o flauta, que tinha de tocar, me respondeu que era um amigo seu por nome Videira. Oh, decepção! Um suor frio desceu-me por todo o corpo, parecia que iria ter uma síncope, pois sabia por informações o ranzinza que ele era! Pois sabia da decepção que iria passar e meu companheiro, pois os tons que sabia naquela ocasião eram muito poucos, pois o que sabia era de principiante, que só servia para distrair e não era para acompanhar.

Pois bem; com o medo de tocar com Videira, eu e Dinga arranjamos um qualquer pretexto para darmos o fora. Quando estávamos quase para retirar-nos, com medo que Videira entrasse, surgiu Videira com a sua maviosa flauta embaixo do braço, e que muito sorridente nos cumprimentou, satisfeito talvez, pensando que fossemos excelentes tocadores. E dizendo o dono da casa que íamos nos retirar, veio Videira ao nosso encontro dizendo: “- Eu peço aos senhores que não se retirem, pois desta forma ficará a festa toda estragada”. Então eu, muito medroso e nervoso lhe disse que fomos ali só para cantar modinhas, dentro dos tons que conhecíamos e não para acompanharmos flauta, pois faltava-nos a prática. Videira, dando uma gostosa gargalhada, abraçou-me e dizendo-me: “- Menino, não tenha medo do pouco que você toca, pois eu tocarei tudo dentro das notas que você conhece”. E assim dizendo, pegou-me pela mão, e a do Dinga, e disse: “- Vamos lá dentro tomar uma boa talagada”. Nós, que também gostávamos, acompanhamos com grande prazer. Ao chegar à sala de jantar, encontramos uma bela mesa, cheia de assados, e as competentes garrafas de vinhos tintos, porto, cervejas e etc.

Lá chegando, Videira mandou abrir uma garrafa de vinho do porto, que naquele tempo era bom e barato e enchendo os nossos copos, que era dos grandes, nos entregou, que foi sorvido quase de uma só vez. Videira, quando sorveu o último gole, deu um grande estalo com a língua e dizendo-nos: “- Que boa talagada, pois desta existem poucas”. E assim, dentro dos tons que sabíamos, tocamos a noite inteira. De vez em quando, Videira mandava vir mais outras talagadas, palavra muito em uso por ele.   

O dono da casa, logo que Videira pedia, nem suspirava, trazia logo sem pestanejar, outra garrafa, e enchia os copos, e zás bebíamos. Videira era íntimo da família. Lá pelas tantas da madrugada, depois de muitos choros tocar, pusemos a tocar modinhas, depois de um belo chocolate, feito a capricho, o que foi uma delícia para nós. E assim soltamos os pulmões muito em voga naqueles tempos.

“Pálida madona. Eu sei que teus olhares são só dele; virgem de louros cabelos, um dia louco, o que vale o fulgor de oropé” e muitas em que o escritor destas páginas era um batuta, pois possuía uma bela voz que encantava aos ouvintes e sendo sempre muito aplaudido. Finda a festa, ao romper da manhã, despedimo-nos do dono da casa, e sua família e mais convidados, que ficaram muito gratos pela maneira alegre e ordem que reinou até o findar da mesma. E assim eu, o Dinga e Videira fomos até o largo do Rócio Pequeno, hoje Praça 11 de Junho. Depois de muito comentarmos sobre a festa, despedimo-nos com bastante pesar, pela boa camaradagem que reinou. Então Videira ofereceu-nos a sua casa, que era em uma pequena avenida na Rua dos Inválidos, onde lá entregou sua alma a Deus, de uma intervenção cirúrgica. Pois bem, daquele dia em diante, comecei a procurar Videira, não só em sua casa, como em uma charutaria na Rua do Ouvidor, onde ele trabalhava como cigarreiro. Andando sempre com ele, principiei a tocar violão e cavaquinho, pois ele os conhecia regularmente, e tornando-me desta forma um violão e cavaquinho respeitado na roda dos tocadores batutas, e assim acompanhei muitas quadrilhas como fosse: Minha dor, Ermelinda, Lucinda, Saudades do Engenho Velho, da Cidade Nova, e muitas outras como polcas, valsas, xotis, mazurcas, etc., tornando-me assim um bamba nos dois instrumentos de cordas de que fiz uso por muitos anos.

Hoje, ao peso da idade, já cansado, obrigado sou a retirar-me para a vida privada, tendo dependurado nas paredes cheio de pó, e no esquecimento, o meu violão e o meu cavaquinho, tão querido outrora, por terem sido os meus instrumentos, que tanta fama empolgou na minha mocidade. E dentro do meu cérebro, as reminiscências descritas neste livro, pobre de literatura, porém, rico de recordações.

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Author: imprensabr


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One thought on “Videira: Um flautista do choro que quase passou despercebido

  • Nilcea Regitano Zamith Vilela

    gosto muito da Revista do Choro. Agradeço as informações recebidas.