Por
Kixi Dalzotto [produção],
Lelei Teixeira – [jornalista] e
José Walter de Castro Alves [jornalista]
Um projeto inédito resgata a obra de Octávio Dutra (1884-1937), violonista, compositor, arranjador e maestro porto-alegrense que viveu na primeira metade do século 20, preservando o seu legado: a edição do livro Espia só… A trajetória musical de Octávio Dutra e do songbook Espia só… As músicas de Octávio Dutra, escritos e organizados pelo violonista e pesquisador gaúcho Márcio de Souza, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que fez Doutorado em História Cultural, na PUCRS, com base em pesquisa sobre a trajetória de Dutra. Editadas pela Laser Press Comunicação (2016), com a coordenação editorial de Omar de Barros Filho (Matico) e produção da Guarujá Produções, sob a coordenação executiva de Carlos Peralta, as obras foram lançadas no dia 19 de abril, às 19h, em Porto Alegre (RS), no Centro Histórico-Cultural Santa Casa.
Além de sessão de autógrafos, o evento, aberto ao público, teve a participação do crítico de música Juarez Fonseca que, com o produtor Carlos Peralta, conversaram com Márcio de Souza sobre a obra e a herança musical de Octávio Dutra. O lançamento no “mês do choro” teve o objetivo de integrar Espia só… à data de 23 de abril, em que se comemora o aniversário de Pixinguinha, instrumentista e compositor carioca que, admirado pelo trabalho de Dutra, pediu autorização para gravar algumas das canções do artista gaúcho.
Denominado Descobrindo o Acervo Musical de Octávio Dutra, o projeto foi selecionado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2013-1014, principal plataforma de fomento do instituto para a produção artística e cultural brasileira. “Trabalhar sob a avaliação permanente do Itaú Cultural foi uma grande satisfação”, ressalta Matico. “O fato de terem nos dado ampla liberdade para trabalhar, e um amplo espaço de criação, garantiu um produto de acordo com a ideia e bem finalizado.” O projeto conta com a parceria da UFPel, que contribuiu com o apoio estrutural e tecnológico para a digitalização e catalogação do acervo.
Em 117 páginas ilustradas por fotos do compositor, trechos de partituras, imagens históricas da cidade, artistas e grupos musicais, Espia só… A trajetória musical de Octávio Dutra é uma biografia do mestre que registrou temática e sonoramente a cultura e os costumes de sua época. O songbook, em edição bilíngue português/inglês, traz um texto sobre o “mediador do antigo e do novo, do erudito com o popular, do tradicional com o moderno” e apresenta 15 composições, comentadas, com as respectivas partituras, e um CD com as músicas de Dutra.
A ideia de registrar em livro os caminhos musicais de Octávio Dutra surgiu em 2009, quando Carlos Peralta iniciou a produção do documentário Espia só (título de uma das canções de Dutra), dirigido por Saturnino Rocha. Além de entrevistas com músicos, pesquisadores, familiares e amigos, o filme apresenta, na íntegra, algumas das mais de 500 composições – entre choros, sambas e valsas – criadas pelo artista, com interpretação do grupo Arthur de Faria & seu Conjunto. “O filme iluminou a produção dos livros”, salienta Matico.
“Com a descoberta do rico acervo de Octávio Dutra, guardado pela família desde sua morte, em 1937, pesquisamos, catalogamos todo o material, fizemos o projeto e partimos para a produção dos livros – um sobre a vida e a trajetória musical e outro com as músicas”, recorda Peralta.
O livro, pelo valor de R$ 69,90, e o songbook, por R$ 49,90, já estão nas livrarias Palavraria, Sapere Aude, Londres, Traça, Bamboletras, E o Vídeo Levou, em Porto Alegre, e na CESMA, de Santa Maria (RS).
Mediador da música
“Octávio Dutra foi um mediador da música em sua época”, enfatiza Márcio de Souza. Conforme o contexto musical de Porto Alegre, uma cidade afastada dos grandes centros, Dutra teve que atuar em diversas áreas e assumir muitas funções dentro do seu ofício. “Ele vivenciou a tradição e a modernidade dentro da música brasileira”, diz o autor. “Sem optar por regionalismos radicais, esteve sempre em sintonia com a música do seu tempo, compondo temas direcionados para o contexto artístico, social, político e comercial da sociedade em que viveu.”
Precursor do chorinho em Porto Alegre, Octávio Dutra introduziu o bandolim na música popular gaúcha e fez com que o violão – instrumento “boêmio” – tivesse maior aceitação na sociedade porto-alegrense. Autodidata, procurou formação acadêmica, em 1909, estudando com o professor Murilo Furtado no Conservatório de Música do Rio Grande, até 1911. Pétalas e Pérolas, seus primeiros álbuns musicais, foram publicados em 1910. Depois de sua morte, por iniciativa da esposa, Diamantina, foi publicada nova série de músicas impressas em editoras de São Paulo. Predominavam as valsas e os choros, composições que se tornaram conhecidas nacionalmente pela flauta de Dante Santoro e pelo bandolim de Pery Cunha.
Dutra compôs valsa, polca, choro, samba, modinhas e reclames para o rádio. Destaca-se a valsa Celina, sucesso da década de 1910, que alcançou a venda de 40 mil cópias – número que hoje equivaleria a meio milhão de cópias. O maestro, que acrescentava à música erudita instrumentos populares, como o violão e o cavaquinho, nos anos 1920 adaptou a síntese da ópera O Guarani, de Carlos Gomes (1836-1896) para uma orquestra popular, modificando o ritmo da frase inicial do principal motivo da Abertura, com rítmica sincopada relacionada ao samba.
O grupo Terror dos Facões, criado por Dutra, atuou entre 1913 e 1919, com virtuosismo e um toque de humor, com um repertório de gêneros híbridos, como polca-tango, polca-choro, polca-marcha, tango brasileiro ou simplesmente choro. Apresentava-se tanto na periferia, junto a camadas populares, como também nos espaços mais elitizados da cidade, como o Clube dos Caçadores e o Theatro São Pedro. Nas primeiras décadas do século 20, surgia na capital gaúcha uma incipiente indústria de discos e gramofones, com o foco na música popular. O Terror dos Facões foi convidado e gravou os seus primeiros discos, na Casa A Elétrica – gravadora pioneira – e na Casa Edison.
Dutra criou também a Guarda Velha, uma orquestra mista, que reunia instrumentos de sopro, madeira e metal, combinando violino, violoncelo, baixo, saxofone, trompete e clarinete aos sons da flauta, do violão e do cavaquinho.
Professor de violão, cavaquinho, bandolim e canto, Octávio Dutra compôs em homenagem a acontecimentos históricos, como a Valsa Republicana, em 1911, e para a Revolução de 30 – nada menos do que duas valsas, uma serenata, uma marcha-hino e uma marcha-carnavalesca. Dutra reverenciou figuras públicas, como Getúlio Vargas, com a serenata Colombina, de 1928, e Osvaldo Aranha, através da marcha-hino Vencemos. Compôs para o Teatro de Revista e para o cinema mudo. Criou jingles para lojas, para marcas de cerveja e de cigarros, para a confeitaria Casa dos Beijos (na Rua dos Andradas), para o cabaré Brazil Club, para o Restaurante Naval do Mercado Público. Entre o fim dos anos 1910 e o início de 1920, compôs músicas carnavalescas e ensaiou blocos e cordões de Porto Alegre, comoOs Tigres, Os Batutas e o Passa fome e anda gordo. Com o advento do rádio, assumiu a direção artística da Rádio Sociedade Gaúcha e, nos anos 1930, foi regente do regional da Rádio Gaúcha.
Sob a influência da família, ligada à tradição dos saraus e serenatas, o maestro participou ativamente da cultura noturna da cidade, com oBando do Octávio. Em sua casa, promovia saraus, reunindo músicos locais, do país e do exterior, como o violonista paraguaio Agustín Barrios, um dos grandes concertistas internacionais, seu amigo; o guitarrista argentino Juan Rodriguez, o flautista Dante Santoro (discípulo e divulgador da obra musical de Dutra) e Aníbal Augusto Sardinha – Garoto. Lupicínio Rodrigues, que o chamava de “rei da valsa”, fez a letra para uma valsa de sua autoria, Nilva.
Vivendo exclusivamente da música, Octávio Dutra, certo dia, sofreu uma paralisia na mão esquerda. “Ele estava numa situação quase de miséria, sem poder trabalhar, doente, tanto é que ele morreu e não deixou nada”, relembra a sua sobrinha-neta Sonia Paes Porto. A morte do talento que mesclou a ambiência do centro com a periferia dos bairros, que promoveu a mistura de gêneros, timbres e instrumentos, ocorreu em junho de 1937, aos 52 anos de idade. Foi noticiada nas rádios e nos jornais de Porto Alegre, gerando depoimentos de colegas do círculo artístico, familiares e amigos, como o poeta Ovídio Chaves e o ator Pery Borges.