Artigo de Carlos Rangel
Travessa do ouvidor, 11 horas de sexta-feira. O cidadão Alfredo Rocha Vianna, a caminho dos 71 anos, já tomou lugar à mesa e prepara-se para viver um dia qualquer em sua vida. A cena se repete há mais de vinte anos e sempre começa com uma viagem de ônibus até o centro. O bar, que fica quase na esquina com Sete de Setembro, ainda está vazio e o empregado não entregou a placa de bronze colocada à parede – uma homenagem a Pixinguinha.
Vem a primeira dose de uísque para aquecer o coração e ouve-se ‘Carinhoso’, cuja suavidade e encanto faz Alfredo, funcionário público aposentado reencontrar o Pixinguinha. A música agora no toca-fita é ‘Ainda me recordo’ e logo são convocados para a mesa Benedicto Lacerda, Donga, João da Baiana e João de Barro. São Jorge também se fez presente porque foi num dia do mês de abril que nasceu Pixinguinha – um carioca que tem a receita de viver.
Onde está o segredo
Antes de tudo, é preciso buscar viver sem grandes amofinações na cabeça. Depois, gostar de um bate-papo com os amigos e saber que a mulher está em casa esperando pela gente com um quitute diferente. Uma bacalhoada, por exemplo, diz Pixinguinha, que não gosta de comer fora e arriscar-se, às vezes, a tomar o lugar de dona Albertina na cozinha. Êle garante conhecer a fórmula do pirão perfeito: ‘metade fubá metade mandioca. Quanto ao angu é bom não carregar no azeite de dendê, que é só pra colorir o prato com muito tomate passado no liquidificador. Na receita de viver há ainda o capítulo das bebidas, recomendando o uísque no lugar das cachacinhas, para quem já passou da casa dos 70. “O resto é deixar-se embalar pela música que vem do céu”.
Toque de saudade
Pixinguinha está vencendo sua primeira meia hora passada no bar Gouveia e já há duas ou três pessoas sentadas em torno de sua mesa. Figuras importantes da República já vieram cumprimentá-lo com reverência, assim como também, uma mulata do renascença. Todos querem ouvi-lo falar e aproximam-se sem pensar que estão diante de uma celebridade. A amizade se faz com uma rapidez espantosa porque para todos Pixinguinha tem sempre uma palavra amistosa, dois dedos de prosa macia. E depois há no que diz um gosto de saboreancias vividas demoradamente.
Com gestos largos conta uma anedota picante ou faz uma citação bíblica: Quem nasceu para não servir, não serve para viver”. Lembra Rui Barbosa, que vinha vê-lo tocar flauta, ou narra uma aventura ocorrida em 1922, na Europa, onde esteve em excursão com “Os Batutas”. Sôbre os companheiros da velha guarda que se foram, não é bom falar agora. O coração de Pixinguinha já deu sinal uma vez – faz quatro anos – e há também a história daquele enfarte do qual ele jura não ter-se dado conta. É pensando nisso que nesta sexta-feira só tomou três doses de uísque e olha que já passa de meio dia.
Uma pequena nuvem
O bar está um pouco barulhento por causa dos marujos que surgiram ninguém sabe de onde, mas Pixinguinha diverte-se com o seu tamborilar das gotas de água que caem do aparelho de ar-refrigerado, sobre a sua mesa. Mesmo assim recusa-se a abandonar o lugar cativo e não esboça qualquer protesto. Com seu jeito manso, olha para o defeito na instalação do bar e empurra a cadeira para traz em silêncio. Está, de repente, triste como um menino. Só agora vem se habituando ao novo apartamento em Jacarepaguá, na Praça Seca, para onde se mudou há dois meses, depois de ter vivo quase 30 anos em Ramos. Há também outro problema: há dias que vem de ônibus, contando as 55 paradas do veículo, até o Largo São Francisco, e não consegue musicar a letra de autoria de Hermínio Bello de Carvalho e Vinícius de Moraes, lá na Itália ficou também de arrumar letra para o choro “Ingênuo”. É esta a canção favorita de Pixinguinha, mais do que ‘Carinhoso’ ou qualquer outra. Tem cerca de 19 anos e até hoje desafia o tempo com sucesso, mas sem versos.
Outra recordação
Pixinguinha não sabe porque escolheu a Travessa do Ouvidor para refúgio. Recorda o bom Gouveia e o armazém que ali existiu com um balcão movimentado e conversa interminável antes de voltar para casa. Só depois deram o nome de uisqueria. Mesmo sem nada o que fazer no centro da cidade, ele não deixa de comparecer diariamente, exceto aos domingos.já não traz a flauta nem o saxofone porque vem apenas para bebericar e “trocar idéias” com os amigos. Uma coisa que o carioca está desaprendendo – frisa Pixinguinha após lembrar de outro bar que existiu nas imediações. No andar de cima era o escritório da RCA Victor, de quem ele foi por muito tempo contratado. Foi ali que conheceu Jacob e seu bandolim, além do chefe de orquestra Napoleão e seu Pistão. O grupo não era só formado por músicos, como não o é até hoje. Havia também embaixadores, dois ou três generais e até um conde. Hoje, ainda surgem de vez em quando, para pedir-lhe a benção, no mesmo lugar, Chico Buarque, Tom Jobim e Elisete Cardoso.
Hora de voltar pra casa
Às 13h – Carijó -, amigo fiel e secretário – lembra que está se fazendo tarde. O estômago começa a reclamar, mas mesmo assim Pixinguinha arrisca mais um uísque para aproveitar o gelo no fundo do copo. A mulher está em casa esperando com o almoço – hoje será bife à role, que Pixinguinha, na linguagem doméstica chama de “já pensando na comida e espiando a cama para uma madorna”.
O seu dia encontra-se longe de terminar, mas já começou bem para quem está às vésperas de mais um aniversário. Com um aceno delicado deixa o bar despedindo-se de um e de outro. À porta e já na rua, conversa com mais dois amigos que acabam de chegar. Um motorista de taxi o reconhece e faz questão de levá-lo para casa. Às 14h há uma atmosfera áspera e sufocante na Travessa do Ouvidor, sem a presença de Pixinguinha.
Este conteúdo integra o livro Pixinguinha 120 anos pelo olhar da imprensa brasileira.
Pesquisa: Leonor Pelliccione Bianchi, editora da Revista do Choro.