Os filhos de Anacleto: 30 anos da menor big band do mundo – Por André Diniz e Diogo Cunha


Os filhos de Anacleto: 30 anos da menor big band do mundo: 30 anos da menor big band do mundo[1]  

 

Por André Diniz e Diogo Cunha[2]

“Grande parte da minha família era ligada a banda de música. Desde novo convivi com essa escola.”

Silvério Pontes

 

“Depois que meu pai me ensinou as primeiras notas, foi na banda de música em Olaria, jovem ainda, que aprendi mesmo a tocar trombone.”  

Zé da Velha

 

Assistir a jogo de futebol no estádio de Moça Bonita é fogo. O repertório é quase sempre o mesmo: calor e charanga do Bangu comandando o furdunço com “Superfantástico”, “Turma da Xuxa”, ”Cachaça não é água”… O escrete banguense (o primeiro a aceitar negros e operários) e a bandinha nasceram da Fábrica de Tecidos Bangu, em 1904. Se na linha média do campo quem comandava o babado era o operário Francisco Carregal, a batuta da banda era do maestro Anacleto de Medeiros.

Anacleto, nascido em Paquetá, dedicou parte considerável do seu tempo à formação das bandas da cidade do Rio de Janeiro, como a Sociedade Recreio Musical Paquetaense, a de Magé, a da Tipografia Nacional (como aprendiz de tipógrafo, fundou por lá o Clube Musical Gutenberg), a da Fábrica de Paracambi e, claro, a mais renomada de todas, a banda do Corpo de Bombeiros, fundada em 1896. Compositor de obras que até hoje compõem o repertório dos chorões, o maestro Anacleto gostava de trabalhar com instrumentistas que dominassem a linguagem. Poderíamos afirmar que ele foi um dos principais incentivadores dos músicos de choro em bandas de música.   

Por falar nelas, enquanto o disco e o rádio ainda eram um sonho distante, as bandas atuavam no campo do lazer, da profissionalização e da divulgação musical, na dobrada do século XIX para o XX.

No Brasil, a banda de música, tal e qual a conhecemos atualmente, é decorrência da chegada de D. João e de sua Corte em 1808. A partir da segunda metade do século XIX, as bandas passaram a ocupar um lugar de destaque na sociedade, participando de festas populares, leilões, rifas, bailes, jogos esportivos, circos, campanhas políticas e promocionais, saudações de personagens, enterros, festas cívicas, procissões e carnaval.

Intimamente ligadas à história da nossa música popular, as bandas tocavam dobrados e marchas; mas, aos poucos, o público levou-as a entremear gêneros mais ao seu gosto, como polcas, valsas, quadrilhas, xotes, maxixes… Junto com os grupos de choro, os pianistas e os violonistas populares, eram as bandas que divulgavam pelo País nosso repertório musical.  

E o que a nossa dupla, Zé da Velha e Silvério Pontes, tem a ver com esse pagode? Tudo! Apesar da diferença entre eles de quase 20 anos[3], ambos começaram o babado de tocar choro em bandas de música.

Zé e Silvério. Foto de Marília Figueiredo.

Zé e Silvério. Foto de Marília Figueiredo.

Botando a boca no trombone

Quando José Alberto Rodrigues Matos, o Zé da Velha, tinha 10 anos, ganhou da mãe uma gaita-harmônica de bocal. Em toda festinha no subúrbio carioca de Olaria, José estava lá metendo a boca na harmônica. Seu pai, Humberto Vieira, era saxofonista e clarinetista amador. Foi Humberto que deu ao filho as primeiras notas de teoria e solfejo. Mas as aulas não duraram muito tempo. Humberto ficava com a régua marcando o compasso. Se Zé errasse uma nota … recebia uma reguada! Sabe como é, santo de casa não faz milagre, e o menino logo desistiu das aulas. 

Mas durante o carnaval de 1956, ao observar a banda estudantil do IAPC(Instituto de Aposentados e Pensionistas do Comércio) de Olaria, a vontade de aprender trombone voltou. Na quarta-feira de cinzas, Zé da Velha pediu ao maestro Alcides Fernandes para entrar na agremiação. No ano seguinte, com a grana que recebeu no baile de carnaval do Éden Clube, em Olaria, Zé comprou seu primeiro trombone de vara.

O trombone saiu das bandas de música para as rodas de choro e depois para as gafieiras. Já um craque no instrumento, ajudando a consolidar uma tradição secular do trombone no Brasil, Zé descreveu assim a relação com a sua ferramenta de trabalho: “O trombone é um instrumento de cálculo. A escala dele é como a do violino, a marcação é sutil e bem complexa. O trombone se resume ao bocal, ele é a alma do instrumento”[4]

Maxixe de família

Sentado na bancada dos trompetes, Silvério Pontes ouvia seu pai Helinho tocar na banda V de novembro, em Lage de Muriaé. Mas era o tio de Silvério, Seu Lalá, o general da banda composta por músicos veteranos da cidade.

 Pensando em reformar a tropa, o Dr. Itagiba resolveu criar uma escolinha para os filhos dos músicos irem aos poucos substituindo o plantel da banda. Tio Lalá, como morava longe da sede da banda e não podia comparecer com frequência aos ensaios, deu contra a renovação proposta pelo dentista-músico. Aí o caldo entornou de vez. Sem alternativa e desejoso de levar seu projeto à frente, Itagiba saiu da banda V de Novembro e criou a Lira da Esperança.   

A nova banda marcou o primeiro aprendizado formal de Silvério e seus cachês simbólicos. Assim como Zé da Velha, Silvério juntou seu dinheirinho trabalhando no carnaval e conseguiu comprar seu primeiro trompete: “Eu me lembro como se fosse hoje. Quando o instrumento chegou e eu abri, foi emocionante. Imagina, eu, um menino pobre de roça, olhando aquele instrumento lindo, novinho, na caixa, da marca Vivaldo”[5].   

Velhas Pontes[6]

Depois dos ensaios da banda V de Novembro, Hélio levava o filho para chupar um picolé no bar próximo ao quartel-general da banda. Os marmanjos bebiam cervejas, comiam tira-gostos da melhor qualidade e ouviam numa rádio-vitrola de madeira as bolachas de Paulo Moura, Pixinguinha, Abel Ferreira, Severino Araújo e outros nomes sempre lembrados, sobretudo, quando fazemos uma lista dos músicos que caíram no esquecimento.        

Numa domingueira, o menino foi apresentado ao futuro parceiro:  

– Escuta como é bom! Escuta, meu filho. Esse é um grupo de choro que toca lá no Rio. Olha esse trombonista, como ele toca bonito no contraponto. É o Zé da Velha – disse Seu Hélio.

Silvério e Zé da Velha[7] foram formalmente apresentados em 1986, no Bar Boca da Noite, no centro do Rio, pelo músico e boa-praça Claudio Camunguelo. Nesses 30 anos de parceria, lançaram seis discos autorais, com mais de oitenta músicas gravadas. Um dos admiradores da dupla, o tarimbado maestro e cavaquinista Henrique Cazes, resume com sensibilidade a receita do sucesso de Zé e Silvério:

Na primeira vez que ouvi a dupla, entendi na hora que a receita se completava e que ali se iniciava uma trajetória que só tinha tido similar nos duetos de Pixinguinha com o Benedito Lacerda dos anos 1940.

Vários aspectos musicais fazem com que Zé da Velha & Silvério Pontes deem tão certo juntos. A começar pela atitude interpretativa, voltada para o compartilhamento ou, como diz o Zé, “tocar que nem garçom, servindo o outro”. Outro ponto comum é a fluência constante, nunca sacrificada por andamentos ligeiros ou demonstrações inócuas de virtuosismo, tão comuns aos jovens chorões do século XXI. A natural afinidade entre os timbres dos metais, por vezes enobrecida pelo som morno do flugelhorn, ajuda ainda mais na identidade sonora inconfundível da dupla. Mas o ponto que mais me instigou desde o início foi: como é possível dois músicos improvisarem simultaneamente sem se esbarrarem, cada um se movimentando livremente e ao mesmo tempo evidenciando o que o outro está tocando? Tudo isso sem partituras escritas, sem arranjos formais.[8]

Poucas duplas de instrumentistas atingiram a longevidade e a produtividade da “Menor Big Band do Mundo”. Essa glamorosa trajetória de Zé da Velha e Silvério Pontes gerou, para brincar com o título deste texto, até os netos de Anacleto: “Acredito que o espaço para o choro naquele tempo, desde que comecei, era mais restrito que hoje. Atualmente, ele está sendo abraçado por muito mais gente, pessoas de todas as idades, principalmente os jovens. Tem até dois irmãos lá de Cordeiro, interior do Rio de Janeiro, o Everson, trombonista, e o Aquiles, trompetista, que já foram apelidados de Zé da Nova e Silvério Pinguela… Quer melhor homenagem que essa?”, pontuou Zé da Velha.[9]

Os filhos e netos de Anacleto ainda tocam o repertório do “maestro das bandas do Rio de Janeiro”. 2003, palco montado. Mais de 2 mil pessoas na praça. Zé e Silvério a postos. Silvério, brincalhão como sempre, pega o microfone e diz: “Vamos tocar uma música de um compositor de banda do Rio de Janeiro que nasceu em Paquetá. Um mestre do choro, nascido no século passado: Anacleto de Medeiros. Em homenagem a todos aqui que não bebem – Zé da Velha -, vamos atacar de “O Boêmio”.[10]

Começa o show e passa a régua!

[1] Parte deste texto foi retirado do livro Zé da Velha e Silvério Pontes, 30 anos da menor big band do mundo, escrito pelos autores e programado para lançamento em junho, pela Editora Íma. 

[2] ANDRÉ DINIZ é historiador e autor dos livros O Rio musical de Anacleto de Medeiros e Joaquim Callado, o pai do choro, ambos lançados pela Editora Zahar. 

DIOGO CUNHA é pesquisador do Observatório de Favelas e coautor, com André Diniz, dos livros Nelson Sargento: o samba da mais alta patente (Olho no Tempo), Na passarela do samba (Casa da Palavra) e a República cantada: a história do Brasil através da música (Jorge Zahar).

[3] Zé da Velha (SE, 1941) e Silvério Pontes (RJ, 1960).

[4] Entrevista aos autores, dia 4 de novembro de 2015.

[5] Entrevista aos autores, dia 4 de novembro de 2015.

[6] Discografia: Só Gafieira • Kuarup (1995),Tudo dança • Rob Digital (1998), Ele e eu • Kuarup (2000), Samba instrumental • Niterói Discos (2003), Só Pixinguinha • Biscoito Fino (2006) e Ouro e Prata • Des Arts (2012).

[7] O apelido Zé da Velha tem duas origens: a primeira estaria relacionada ao nosso músico tocar, ainda muito novo, com o pessoal da Velha Guarda – Pixinguinha, Bide, João da Baiana. Seria o Zé da Velha Guarda. A segunda, deixemos o próprio Zé comentar: “Quando eu parava de tocar (com o pessoal da Velha Guarda), uma senhora sentada na mesa em frente ao palco do Bola Preta pegava o copo de cerveja e oferecia um brinde. O João da Baiana observou o fato e falou: ‘Sei não, meu sobrinho, mas essa velha está querendo alguma coisa com você’. Quando a velha não ia, o povo da Velha Guarda dizia: ‘A velha do Zé não veio hoje’”. Depois disso, Zé perdeu a Guarda e virou Zé da Velha! (entrevista aos autores, dia 4 de novembro de 2015) .

[8] Texto fornecido aos autores, carinhosamente, pelo maestro Henrique Cazes.

[9] Entrevista de Zé da Velha ao jornal A Nova Democracia. Ano XII, nº 125, 1ª quinzena de fevereiro de 2014.

[10] Entrevista aos autores, 4 de novembro de 2015.

Fotos: Zé e Silvério, por Marília Figueiredo.

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Author: imprensabr