No domingo 24 de janeiro de 2016, a Revista do Choro começou a publicar o livro Pensadores do Choro na íntegra para seus assinantes. A cada domingo um novo capítulo vem sendo publicado desde então. Hoje, seguimos com o artigo Tudo Culpa do Choro, do autor Sergio Aires, contemplado pelo prêmio literário promovido pela Revista do Choro e e-ditora] (www.portaldaeditora.com.br) em 2014.
Boa leitura!
Professor de flauta
Por Sergio Aires
Meus estudos sempre foram acompanhados de uma vontade enorme de passá-los adiante. Assim, comecei, ainda cedo, a dar aulas. No início, aproveitava alguns amigos curiosos e tentava explicar como funcionava a flauta e como ler música. Aos poucos, fui ganhando mais segurança e comecei a ter meus primeiros alunos.
Abri este capítulo para falar de uma aluna em especial. Seu nome é Edna e é esposa de um tio que já deixou a vida terrena, cujo nome era Marcos Ayres e irmão de minha avó paterna. Marcos, além de médico, era um poeta nato. Um homem que, se não conhecia os segredos da vida, experimentava respostas com suas rimas simples e profundas.
Minhas aulas eram dadas na sala do apartamento do casal. Ele, o tempo inteiro no computador, escutava calado as instruções que eu dava para sua mulher. Ela, aluna dedicada, vez por outra se queixava de suas dificuldades, mas seguia firme nos estudos da flauta. Esse arrodeio todo é para dizer que, no fim de toda aula, Marcos nos lia uma poesia escrita naquele momento, nos sessenta minutos que duravam a aula.
Aqui segue um exemplo de suas poesias:
Aula de flauta 10
Uma flauta sopra e canta
A outra canta sem soprar
E o professor não se espanta
E continua a cobrar.
Corrige uma posição,
Dá um tempo pro dedinho,
Pede mais convicção
E não solfeja sozinho.
Como se tivesse uma pauta
E precisasse segui-la
Pede que se alongue a flauta
Sem precisar medi-la.
Quer ouvir a música programada
Do jeito que foi composta,
Mas a aceita ainda arrastada
Apenas como uma proposta.
Resolve, de repente, explicar
Que há frases musicais;
Há frases para perguntar
E há resposta nas demais!
É como se fosse uma história
Que o autor resolveu contar
E o aluno tem que ter na memória
Para saber como deve tocar.
Perguntar exige atenção e calma,
Responder exige entendimento
E em ambos existe uma alma
Com alegria e sofrimento.
Não importa qual é o assunto
Que está em discussão,
Mas é preciso que acabe junto
Para não ferir a audição.
A flauta tem que se tornar extensão
De todo o membro superior
E nisso se inclui uma mão
Que a acaricie com amor.
Marcos Ayres, 20 de abril de 2012.
Marcos, além de médico e poeta, também era amante do choro.
Aproveito o momento poético para reproduzir sua poesia sobre o choro:
O Choro
O Choro é como uma prece
Feita pelos instrumentos,
Com a qual o artista agradece,
Através desse doce lamento,
Por tudo que lhe oferece
O Senhor do firmamento.
Choro é viagem pela imaginação,
É passado que se faz presente
Nas cordas de um violão
E de uma flauta gemente
Acompanhadas pela percussão
De um pandeiro competente.
O conjunto se completa
Com o bandolim e o cavaquinho
Rimando como se fosse um poeta
Que encontrou o seu caminho,
Mas tem uma alma inquieta
E precisada de carinho.
O choro é a alegria da tristeza
Que sorri e se lamenta,
Mas acredita que a beleza
É o que mais lhe contenta
Porque lhe traz a certeza
De que é certo o que inventa.
Marcos Ayres, 23 de fevereiro de 2013.
Destaco uma frase dessa poesia que define o choro:
“O choro é a alegria da tristeza”. Lembra-me uma frase dita por Sérgio Bittencourt, filho de Jacob do Bandolim, ao descrever como era o espírito dos saraus que seu pai organizava na sua casa, em Jacarepaguá: “O estado de contrição diante de um choro, lá em casa, é muito exigido”.
É natural que um gênero musical altamente influenciado pelos escravos africanos e pelos nossos índios seja carregado de tristeza e plangência: o choro traz o lamento dos parentes que ficaram do outro lado do oceano, ou da perda da própria terra e de familiares para o trabalho forçado e castigado. A riqueza da nossa música traz como matéria-prima o escape da injustiça. É a brutalidade transformada em notas musicais e, mais que isso, na maneira de interpretar as músicas. Sem isso, não é choro. Sem a entrega – a mesma que levou Jacob a um infarto -, não se chega aos corações de quem ouve.
Aliás, assim entendo o estudo da música: anos e anos refinando a técnica para que nosso corpo sirva de instrumento para que o bem seja feito. A palavra entrega é o desapego de si. É ter a humildade de perceber que existe uma força maior que comanda os movimentos e dá fluidez à música. Assim, quanto maior a entrega do músico, maior a sua necessidade de retornar a si ao fim de uma apresentação. Por isso, os aplausos. É como se o público, em agradecimento, chamasse o artista de volta para a realidade.