Os compositores nos roubaram Benedicto Lacerda: Relendo as crônicas de Pérsio de Morais


Leonor Bianchi

O maior empreendimento editorial brasileiro voltado para o segmento musical – a Revista da Música Popular -, fundada por Lúcio Rangel e Pérsio de Morais durou apenas dois anos; 1954 a 56. Contudo, neste pouco tempo em que circulou foi o panorama do que aconteceu no início dos anos de 1950 na música popular brasileira, apontando para o que viria a ser as década de 60, 70 até os dias atuais. As Crônicas de Lúcio Rangel e Pérsio, fundadores da revista, são verdadeiras pérolas, pois eles conviveram com a nata da música que era feita no Brasil naquele tempo; áureos tempos do rádio brasileiro. Ou seja, além de uma riquíssima aula sobre música popular brasileira, a revista nos dá acesso às memórias dessas personagens. E é sobre a memória de Pérsio de Morais relatada em uma das crônicas que ele escreveu para a revista, que eu escrevo agora.

Na crônica, Pérsio defende a necessidade de Benedicto Lacerda continuar compondo e tocando flauta e não atuar somente nos bastidores da música, como presidente da SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música). Ele volta até sua infância e juventude, no interior, quando começou a aprender violão e conheceu a valsa ‘Boneca’, de Benedicto Lacerda, como ele mesmo disse; muito antes de conhecer o próprio Benedicto, e do dia em que conheceu Benedicto, numa festa na casa de Pixinguinha.

Bené~2“Conhecei “Boneca” muito antes de conhecer Benedicto Lacerda. Estava com meus 15 anos e nessa idade, no interior, quase todo rapaz aprende violão. Padeiro, então, não tem outro jeito; para esperar a massa fermentar sem dormir, só tocando violão mesmo.

Pois foi nessa época que conheci ‘Boneca’ a doce valsa de Benedicto Lacerda.

Todas as noites, no largo da igreja, quase deserto, a valsinha ecoava nas nossas vozes, acompanhada pelo tim tim tim tom primário do único violão do grupo. A vizinhança e os santos ficavam sabendo a história da boneca que o poeta vira “numa vitrine de cristal sobre um soberbo pedestal. Aliás, devem ter decorado a história todinha, pois ela era cantada todas as noites, sem esmorecimento. Com toda a sua beleza ingênua e todos os seus numerosos adjetivos. Os adjetivos eram indispensáveis para as valsas e para a época. 

Quase ao mesmo tempo, apareceu a paródia feita por Noel Rosa para a música ‘Boneca’. Falava de um dono de armazém de Cascadura, que vendia por mil e cem, duzentos réis de rapadura e que enriqueceu botando água no vinho do barril (Viva o Brasil).

Tal era o meu respeito pela ‘Boneca’, que achei uma profanação a paródia. Depois fui aceitando porque ela era de fato muito espirituosa, mas só a cantava de dia, entre os colegas, no recreio do colégio, ou em outras rodas menos respeitosa. À noite, não, tinha de ser a ‘Boneca’ imaculada, para o desespero dos vizinhos da igreja.

Deixa estar que Benedicto Lacerda tem proporcionado bons momentos aos seresteiros, principalmente, aos do interior! Muitas e boas composições já nos deu Benedicto. Sim, ‘Boneca’ não é a sua única composição. Compôs muito mais. Por exemplo: Número um, Meu coração a teus pés, Aliança partida, Isis, Lêda (valsas), Dinorá, Um a zero, Vaidosa (choros), Professora, Normalista, Amigo leal, Amigo infiel (sambas), Jardineira, Eva querida, Macaco olha o teu rabo, Despedida de Mangueira, Lero-lero, Acho-te uma graça’ (carnaval).

Mas, como disse no princípio, conheci Benedicto muito tempo depois de conhecer ‘Boneca’. E no lugar melhor do mundo: na casa de Pixinguinha. De forma espetacular e inesquecível, conforme vou contar. Estávamos todos no quintal, sentados e encostados por todos os cantos, rodeando o grupo de músicos. Num duelo feroz, Pixinguinha no saxofone e seu aluno (também aluno de Benedicto) Patapinho, na flauta, tocavam o choro do Pixinga ‘André de sapato novo’. É um choro cheio de imprevistos, de paradas bruscas, de reinícios, de breques. Quando Pixinguinha pegou um breque, não queria mais largá-lo, não dando chance ao Patatinho de entrar com a flauta. Bem que ele tentava, mas nada. Nós estávamos com a respiração presa, acompanhando o drama da flauta. Perto de mim, um velho conhecedor da música popular comentou: Para sair dessa, só o Benedicto.

Pois foi aí que aconteceu um milagre. Saído não sei de onde, apareceu no meio da roda, num salto macio Benedicto Lacerda, e arrancou a flauta das mãos de Patapinho, que ficou também espantado. Aí não adiantou Pixinguinha complicar o breque. A flauta entrou na hora exata, obrigando o saxofone a continuar o choro.

Não aguentamos e estouramos em palmas e vivas. Daí em diante o espetáculo se tornou mais precioso. Estávamos ouvindo os melhores instrumentistas do Brasil. Aliás, todo mundo sabe que Benedicto Lacerda além de compositor é o maior flautista que existe. Antigamente, a gente tinha dúvida, pois Pixinguinha também tocava flauta. Depois, para acabar com essa dúvida danada, Pixinguinha largou a flauta pelo saxofone passaram os dois a constituir a maior dupla de instrumentistas.

Isto não é uma biografia de Benedicto Lacerda nos moldes clássicos. Uma biografia exige uma série de dados secos e precisos, que eu não tenho. Por isso, prefiro alinhar algumas impressões a respeito do extraordinário flautista e compositor. Digo isto porque o admiro e me lembrei dele hoje. Mas como quero agradar e sei que ele é maluco por sua terra natal, informo que ele nasceu no estado do Rio, em Macaé, conhecida carinhosamente como a Princesinha do Atlântico. Ele se refere a Macaé com entusiasmo: “Aquilo ainda vai ser a Punta del Leste do Brasil”.

Sim, isto não é uma biografia a sério. Mas já que comecei a informar não custa dizer mais algumas coisas que sei. Inclusive porque pode servir para alguém mais tarde que queira escrever algo mais completo sobre o maior amigo de Pixinguinha.

Vamos lá!

Em 1933, A Noite, que naquela época era um jornal de grandes iniciativas, instituiu um concurso de músicas tendo como prêmio uma flauta de prata. O Vencedor foi o nosso Benedicto com a música junina ‘Briguei com o São João’. A flauta ainda hoje existe.

Benedicto tinha um conjunto que entusiasmava todas a cidade com sua execução e seu malabarismo, mas não tinha nome; era o conjunto Benedicto. Coube ao imortal Sinhô batizá-lo num dia quando o conjunto executava ‘No Salgueiro’. Sinhô lascou o nome: ‘Gente do Morro’ e Gente do Morro ficou enquanto existiu e com esse nome gravou inúmeros discos.

Além de executante completo Benedicto Lacerda é professor formado de música. Tem numerosos bons alunos com os quais têm feito por onde perpetuar o prestígio da flauta. Lembro-me de dois: um é Patapinho, que além de tocar muito bem herdou do mestre uns requebros malandros de corpo. O outro é Altamiro Carrilho. Este fala por si. Basta ver o sucesso de sua recente gravação do velho ‘Jura’, de Sinhô, que está uma beleza. Recordo também sua gravação anterior, ‘Samba de Morro’, muito boa.

Agora uma informação indispensável para os biógrafos de Benedicto. Sua última gravação: ‘Acho-te uma graça’. Essa informação, entretanto, só tem valor hoje. Amanhã ele volta a gravar, que eu sei e essa gravação passará a ser a penúltima.

Mas por falar em última gravação, será que ele parou de produzir? Que nada, seu! Perguntei a ele um dia desses. Tem composto com a mesma força de antigamente, mas vai guardando. Cadê o tempo para atender aos problemas da gravação? Não tem.

Benedicto, há sete anos que só tem tempo para a SACEBM, que como todos sabem é a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música. É presidente da SBACEM e passa os dias, como ele diz, “lutando pela emancipação do direito autoral dos seus colegas compositores”. Desta forma os compositores nos roubaram um compositor.

Eu, pessoalmente, preferia o Benedicto livrezinho, só preso a sua flauta, dando-nos suas soberbas interpretações. Mas seus colegas o querem como presidente da SBACEM e eu não posso fazer nada.  Fico com minhas recordações da “Boneca’ dos meus 15 anos”.

Foto de Benedicto Lacerda: Internet

Capas das partituras da música Boneca: Internet

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Author: imprensabr