Os 110 anos de Nássara


Leonor Bianchi

Ele retratou músicos sambistas, chorões e artistas do seu tempo.

Radamés Gnattali e Pixinguinha. Ilustração feita para revista O Cruzeiro. Acervo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Radamés Gnattali e Pixinguinha. Ilustração feita para revista O Cruzeiro. Acervo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O compositor de ‘Alá lá ô’ – ‘atravessando o deserto do Saara o sol estava quente e queimou a nossa cara…. Alá lá ô ô ô ô ô ô ô’ -,  atravessou 110 anos entre os mais tocados nos carnavais do Brasil. Antônio Gabriel Nássara, compositor, desenhista, caricaturista da imprensa carioca desde 1927 e por toda sua vida, nasceu num 12 de novembro*, há 110 anos, no chamado bairro imperial São Cristóvão.

images (12) crônica 65, ilustração - Autocaricatura, sem data, quadrada

Em Vila Isabel, onde foi morar logo na primeira infância com os pais, cresceu e tornou-se amigo e parceiro de Noel Rosa, de  Braguinha, Haroldo Barbosa e Orestes Barbosa, que se encontravam no Ponto de Cem Réis.

Compositor de marchinhas de Carnaval de muito sucesso durante a era de ouro do rádio no Brasil, além deste dom – escrever músicas -, também escrita desenhando; exímio pintor… e com esta vertente artistica trabalhou por décadas na imprensa do Rio de Janeiro ilustrando os maiores jornais cariocas com figuras de Pixinguinha, Radamés Gnattali, Sinhô… Carmem Miranda… e inúmeros outros músicos do seu tempo…

Biografias

Nássara ganhou três biografias: Nássara desenhista (1985), de Cássio Loredano, Nássara, o perfeito fazedor de artes (1999), de Isabel Lustosa e a  Faltava uma biografia que relacionasse o desenhista ao homem e ao músico. Nássara passado a limpo de Carlos Didier, junta os três aspectos. O resultado é que a figura de Nássara surge inteira – ou quase, na medida do possível no gênero biográfico. “Não é uma biografia tradicional”, diz Didier, autor de dois clássicos, as biografias de Noel Rosa, de 1990, com João Máximo, e de Orestes Barbosa, de 2005.

“Desta vez não brinquei de Deus. Usei as 20 entrevistas com Nássara, que era meu vizinho, em Laranjeiras, para criar uma coleção de crônicas da vida boêmia carioca.”

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Didier diz que Nássara lhe entregou a vida pronta.

“Nunca me disse, mas acho que queria que eu escrevesse sobre ele. Era um sujeito sutil.”

Conheceram-se em 1980. Nássara o chamava para conversar, contando curiosidades e aspectos ignorados da cultura dos anos 20 aos 50.

Nássara começou no rádio em 1932, como locutor do Programa Casé na rádio Philips. Lá, criou o primeiro jingle nacional, o da padaria Bragança. Tentou virar cantor, com o codinome de Luiz Antônio.

Enquanto fazia caricaturas no jornal, frequentava os cabarés da Lapa, as rodas de samba com Chico Viola e Noel Rosa – que sonhava em ser caricaturista.

Passou a compor sambas e marchas ao lado dos bambambãs do tempo. Como compositor, usava o método dos cartunistas: assim como estes partiam de uma fotografia para distorcê-la, ele se baseava em uma melodia erudita para convertê-la em canção. Em 1934, transformou a ária de opereta “Rose Marie” na marchinha “Maria Rosa”. Em 1941, a “Valsa dos patinadores” virou o sucesso “Nós queremos uma valsa”.

Didier diz que o desenhista foi superior ao músico. Ao compor canções, não passava de um caricaturista tradicional. Mas inovou no desenho, pois “mentalizava” a pessoa antes de captá-la em traços essenciais. Chegou a adivinhar o futuro do modelo: desenhou Almirante (1908-1980) radialista e líder do Bando de Tangarás, com olhos maldosos de águia, anos antes de se tornarem inimigos.

“Nássara foi o autêntico boêmio”, afirma Didier.

“Elegante, ensimesmado e transgressivo, ao mesmo tempo rígido em valores como retidão e amizade. Foi um observador agudo do que viveu – e tratou de sintetizar com precisão em samba, traço e frases.”

Nássara apresentou uma versão de si próprio. Retratou-se sorridente, com um faca na cabeça – e a legenda que pode sintetizar seu legado: “Só dói quando eu fico sério”.

Quem escreveu sobre Nássara foi a pesquisadora  Mara L. Baraúna:

Gabriel Nássara (Rio de Janeiro, 11 novembro de 1909 – 11 de dezembro de 1996)

O carioca Nássara, filho dos imigrantes libaneses Gabriel Jorge Nasra e Guaiba Dayá, nasceu na Rua Esperança, nº 2, no bairro de São Cristóvão.

A família de sete irmãos mantinha um armarinho no bairro. Antônio fazia entrega de artigos e tomava conta do caixa da empresa. Tinha doze anos de idade quando a família se mudou para a mesma rua de Vila Isabel em que morava Noel Rosa. Lá, fez amizade com grandes personagens da música e da boêmia da cidade, como Braguinha, Haroldo Barbosa e Orestes Barbosa, que se encontravam no Ponto de Cem Réis.

Nássara é protagonista privilegiado das histórias do samba, da imprensa e da carioquice na primeira metade do século 20. A verve do poeta e do compositor apareceu aos poucos, motivada pelo convívio com cantores, compositores, poetas e boêmios do Rio no princípio do século 20.

Fez sua estreia na imprensa carioca no jornal O Globo, em 1927, com um desenho que acompanha a reportagem de Eduardo Bahout sobre a travessia do Atlântico realizada pelo hidroavião Jahú.

Em 1928, começou a frequentar o curso de arquitetura, mas não se formou. Ele tem as primeiras aulas formais de desenho com Modesto Brocos, seu professor na Escola Nacional de Belas Artes, que ao vê-lo rabiscando o papel o aconselhou a deixar o desenho acadêmico e técnico e explorar seu talento para a caricatura.  Com os colegas do curso Jota Ruy, Barata Ribeiro, Manuelito Xavier, Jaci Rosas e Luís Barbosa, formou um conjunto musical chamado Turma da ENBA. Com esse grupo compõe seu primeiro samba, Saldo a meu favor. Ruy tocava reco-reco, chocalho e era o letrista oficial do grupo. Nássara fazia música se divertindo, caminhando na calçada, batendo papo.

Em 1931, teve sua primeira música gravada, Para o samba entrar no céu, com Almirante e Jota Ruy e gravado por Almirante e seu Bando de Tangarás, grupo que tinha em sua formação, além do cantor,  Noel Rosa, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho.

Ainda em 1930, como paginador no jornal O Globo, conhece os modernos métodos de impressão e ilustração. Em 1931, abandona o curso de arquitetura e trabalha como paginador no jornal A Esquerda, no qual publica diversas caricaturas. Assim como outros jovens desenhistas surgidos nos anos 1930, Nássara é influenciado pelo grande caricaturista da época, o carioca J. Carlos. Posteriormente conhece o traço geometrizado e a caricatura em meio-tom de Guevara, paraguaio radicado no Brasil.

Em 1932, estreia na Rádio Philips, no programa de Ademar Casé. No primeiro ano de seu programa, Casé sugeriu a Nássara, um dos redatores do programa, fazer um jingle, um modismo que estava se espalhando pelo mundo inteiro. Nássara resolveu escrever um fado para o senhor Albino, português, dono da padaria Bragança, muito famosa na época, para servir como um dos patrocinadores do programa. A interpretação ficou a cargo de Luís Barbosa que gravou com sotaque português para dar maior “autenticidade” à origem lusitana da padaria. A gravação ficou tão boa que os donos da padaria fecharam contrato de um ano com Casé.

Oh, padeiro desta rua / tenha sempre na lembrança / não me traga outro pão / que não seja o pão Bragança.

Pão inimigo da fome / Fome inimiga do pão / enquanto os dois não se matam / a gente não fica na mão.

De noite, quando me deito / e faço a oração / peço com todo respeito / que  nunca me falte pão.

É creditado também a Nássara o anúncio de um purgante, de nome Manon Purgativo, produto até então nunca veiculado por rádio. Ele desincumbiu-se da tarefa com o seguinte texto, que foi ao ar e agradou ao patrocinador:

Um casal de noivos brigou. Ele, arrependido, resolveu fazer as pazes, mas a moça estava irredutível. Conversou com a futura sogra, que lhe aconselhou que presenteasse a filha com algo de valor. Comprou-lhe, então, uma joia caríssima. E não fez efeito. Deu-lhe um casaco de peles. Mas não fez efeito. Então, lembrou de dar a ela um vidro de Manon Purgativo… Ahhh! Fez efeito!!! Manon Purgativo, à venda em todas as farmácias e drogarias.

Nássara criou depois seu próprio programa, de pouca duração, o Talismã, que começava meia hora antes do de Casé. Nesse programa, ele criou um personagem, o Antônio Paraíso, um malandro muito inteligente. Ainda em 1932, quando trabalhava no jornal Mundo Sportivo, fundado pelo jornalista Mario Filho, participou da organização do primeiro concurso de escolas de samba, patrocinado pelo jornal. O Mundo Sportivo perdia leitores com o término do campeonato de futebol e estava sem assunto. O jornalista Carlos Pimentel, muito ligado ao mundo do samba, teve a ideia de realizar na Praça Onze um desfile de escolas de samba e estabeleceu critérios para o julgamento das 19 escolas participantes. A escola vencedora foi a Estação Primeira da Mangueira, fundada em 1928, enquanto o segundo lugar ficou com o grupo carnavalesco de Osvaldo Cruz, hoje Portela, fundada em 1926. O sucesso garantiu a oficialização do concurso que permaneceu na Praça Onze até 1941.

Nássara compôs músicas de grande sucesso, como Formosa; Alá lá ô, com Haroldo Lobo; Mundo de Zinco e Sereia de Copacabana, ambas com Wilson Batista. Formosa, parceria com Jota Ruy, nasceu como samba, mas virou marchinha a pedido de Francisco Alves que a imortalizou junto com Mário Reis no Carnaval de 1933, foi sua primeira marcha a cair na boca do povo, o que fez sua carreira musical se firmar.

Mesmo em canções que não fizeram sucesso, Nássara deixou sua assinatura. Foi o caso de Garota colossal, parceria com Ary Barroso. A marcha foi gravada em outubro de 1934 por Francisco Alves, para ser lançada no carnaval de 1935. A censura getulista implicou com o verso Você, você é meu hino nacional. E proibiu a música na folia. Naqueles tempos nacionalistas, como em todos os tempos, era vedado brincar com um símbolo da pátria. O chefe da censura, Lauro Müller, passou uma descompostura em Ary e Nássara. Os dois saíram da delegacia para rir do episódio.

Em 1934, fez Retiro da saudade, sua primeira parceria com o antigo vizinho Noel.

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A maior parte de sua produção carnavalesca se deu entre os anos 30 e 40. Fazia paródias ou citava composições famosas em suas próprias músicas, como em Periquitinho verde, com Sá Roris, quando citou Mamãe eu quero; em 1941, Nássara e Frazão com Nós queremos uma valsa, aproveitaram trechos de  Valsa dos patinadores, de Emil Waldteufel,  e a marcha Pombinha branca, com Wilson Batista, é uma paródia da valsa La Paloma.  Em 1943, Nássara e Frazão repetiram a dose usando compassos do Danúbio Azul na marcha O Danúbio Azulou.

Na letra de Maria Rosa para o carnaval de 1934, cunhou a expressão mulher fatal, que entrou imediatamente para o vocabulário da MPB.

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A carreira prosseguiu sempre em parceria com os principais compositores da época. Nássara fazia as segundas partes dos sambas, corrigindo rimas de pé-quebrado e falhas no português. Em 1939, com Frazão, seu parceiro mais constante, fez Florisbela, vencedora do concurso da Feira de Amostras do Carnaval daquele ano e gravada por Sílvio Caldas, além do samba Meu consolo é você, parceria com Roberto Martins, sucesso gravado por Orlando Silva. Compôs mais de duas centenas de músicas, especialmente sambas e marchas, gravadas por Francisco Alves, Orlando Silva, Cyro Monteiro, Gilberto Alves e Araci de Almeida, entre muitos outros bambas. Até no exterior Nássara teve músicas gravadas, como Periquitinho verde, que em inglês ganhou o título de Little Green Parrot.

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De 1943 a 1945, colaborou na revista O Cruzeiro, fazendo charges relativas à Segunda Guerra Mundial. No final da década de 1940, tornou-se parceiro de Wilson Batista. A primeira composição da dupla, a marcha Balzaquiana, foi gravada em 1950 por Jorge Goulart, e, traduzida para o francês por Michel Simon, Pas de tendron, non, non/ pas de tendron, foi lançada na França por ocasião das comemorações do centenário de Honoré de Balzac. Na morte de Francisco Alves, em um acidente de carro, fez o samba Chico Viola, gravado por Dircinha Batista, em 1953.

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Nos anos 1950, Nássara ajuda a fundar, com o jornalista Samuel Wainer (1912 – 1980), o jornal Última Hora, no qual mantém página dupla em cores com crônicas do cotidiano do Rio de Janeiro. No final da década de 1950, desiludido com os esquemas de comercialização do carnaval, diminuiu sua produção. Voltou a compor em 1968, lançando O craque do tamborim, em parceria com Luís Reis. A 13 de fevereiro de 1968 prestou depoimento sobre sua vida ao Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro. No início da década de 1970, voltou a atuar como desenhista, fazendo 12 capas de LPs da série No tempo dos bons tempos, da gravadora Philips, etiqueta Fontana.

Em 1974, começa a colaborar para o jornal de humor O Pasquim. Nesse momento, inicia-se a segunda fase de sua carreira, em que é descoberto e admirado por uma geração de caricaturistas mais novos. Permanece ali até 1983, com o mesmo humor afiado e traço econômico, certeiro e inconfundível  dos primeiros tempos.

As charges e caricaturas de Nássara se caracterizam pelas linhas econômicas e formas geometrizadas, em que tudo é redutível a esferas, cones, ovóides combinados entre si. Disse Millôr Fernandes: Nássara é o Mondrian do portrait-charge, corrige a natureza fazendo com que as personagens acabem se parecendo com a caricatura. Sua inesgotável produção gráfica apareceu em ícones da imprensa, como Crítica, de Mario Rodrigues, pai de Mario Filho e Nelson Rodrigues, Diretrizes e Cruzeiro, e parte dela hoje pertence ao acervo do

do Museu Nacional de Belas-Artes. Vários artistas das novas gerações fizeram caricaturas dele para uma exposição, em sua homenagem, no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1990.

Não chegou a ver publicado seu último trabalho, de 1996, com mais de 30 desenhos que ilustravam o livro infantil Moça perfumosa, rapaz pimpão, de Daniela Chindler. Era o primeiro livro infantil que ilustrava.

Morreu no dia 11 de dezembro de 1996, com 87 anos, de um infarto quando lia o jornal, de manhã, em sua casa, na Rua Belizário Távora no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro. Nássara era casado com d. Iracema e não deixou filhos. Passou seus últimos anos acometido por surdez, o que fazia com que ele poucas vezes saísse de casa.

Um mês antes de sua morte, a turma do Pasquim festejou o seu aniversário com um almoço. Nássara agradeceu às novas gerações pelo reconhecimento e aos deuses pela graça de ter ficado surdo e, portanto, livre das “músicas modernas”. Sempre foi considerado, nos meios jornalísticos, como uma grande e admirável figura humana.

Seu trabalho como cartunista foi tema do livro Nássara Desenhista, de Cássio Loredano, publicado pela Funarte em 1985; em 1999, Isabel Lustosa escreveu Nássara: o perfeito fazedor de artes, e em 2010, Carlos Didier o homenageou em Nássara : passado a limpo.”

Fontes:

Arte do traço

Nássara na Enciclopédia Itau Cultural

Nássara no Dicionário Cravo Albin

Nássara, por Diniz Botelho Filho

Nássara: a música brasileira em três traços, por Danilo M. Martinho

Nássara : o chargista da canção, por Luís Antônio Giron

Um artista entre o samba e a caricatura, por Luís Antônio Giron

Crônicas de um outro Rio de Janeiro, por Bruno Dorigatti

O desenho original da música de Nássara, por Raphael Vidigal

O fino traço do Brasil, por Araújo Lopes

Homenagem a Nássara

Música Popular

* Alguns pesquisadores afirmam que a data de nascimento de Nássara é dia 11 e outros dizem que no dia 12 de novembro.

Leia também:

Como foi criada a marchinha ‘Alá-lá-ô’ e a participação de Pixinguinha na composição dos arranjos da música.

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Author: imprensabr