O violão-bolacha de Donga


Leonor Bianchi

Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1890 – 1974) violonista, integrante do grupo Os Oito Batutas, considerado o compositor do primeiro samba brasileiro, o ‘Pelo telefone’, de 1917 (composição coletiva, de autoria controversa, mas que ficou registrada por ele em parceria com o jornalista Mauro de Almeida), tinha um violão que era chamado de violão-bolacha. Com o instrumento gravou e se apresentou em diversas ocasiões, inclusive fora do Brasil nas viagens que fez acompanhando Os Oito Batutas a Paris e a Argentina, no início da década de 1920.

Mas… que violão era esse?

A história do violão-bolacha de Donga pode ser contada a partir do ano de 1906 ou 1907, aproximadamente, quando ele comprou o instrumento na tradicionalíssima loja do seu Andrade, ‘O cavaquinho de ouro’, que ficava na rua da Alfândega, centro histórico do Rio de Janeiro.

Conhecido como Velho Cunha, o luthier da loja era um exímio construtor de violões e cavaquinhos. E foi ele quem fez o violão-bolacha de Donga.

Certa vez, Donga comentou a diferença do violão-bolacha:

“Ele é armado na clave de fá, enquanto os outros o são na de sol”, disse.

E foi justamente essa diferença que tornou o violão-bolacha o preferido dos maiores violonistas daquele tempo, como, José Rabelo, o Zé Cavaquinho e Quincas Laranjeira, por exemplo.

Seu Andrade expôs o ‘Bolacha’ na Exposição Nacional de 1908 apresentando o instrumento como a grande novidade para os violonistas da época.

E de fato o violão-bolacha acabaria aparecendo em diversas rodas e apresentações dos virtuoses da época.

Certa vez, Catulo da Paixão Cearense produziu um concerto no antigo Conservatório Nacional de Música e convidou para o mesmo os instrumentistas mais requisitados da época: o maestro e chorão Anacleto de Medeiros, Mário Alves (o Zé Cavaquinho) e Quincas Laranjeira. Zé e Quincas se apresentaram com seus respectivos violão-bolacha, que a partir daí começou a ganhar definitivamente a preferência entre os instrumentistas.

O violão foi o único que restou dos instrumentos de Donga e virou relíquia, claro. Ele o guardava como um diamante, exibindo-o com muito orgulho, fazendo sempre questão de contar a história do instrumento para quem quisesse conhecer.

O violão-baixo, nome correto dado ao violão-bolacha de Donga, tinha a mesma função do contrabaixo nas grandes orquestras quando num pequeno conjunto de instrumentos de cordas.

Do alto dos seus 81 anos, Donga ainda dedilhava o instrumento lembrando dos tempos em que era chamado para estar em todas as ocasiões com seu violão.

Nessa época, já idoso… Donga só pegava o instrumento quando recebia os amigos e admiradores que o visitavam em sua casa. Contava sobre as inúmeras rodas de choro que frequentou, das noites de boêmias, das tocadas e serestas que atravessavam dias… Lembrava dos muitos grupos dos quais participou, dos muitos músicos com quem conviveu, da época d’Os Oito Batutas…

Donga, que dividiu a experiência musical com Pixinguinha e João Pernambuco, duas das maiores personalidades da música popular brasileira de todos os tempos, foi uma figura expoente da Velha Guarda e participou da criação do primeiro samba brasileiro, entrou para a história da música universal.

O violão bolacha não foi tocado por ele até seus últimos dias, mas certamente foi seu maior companheiro durante toda a carreira.

Foi com ele, que em 1916 Donga gravou a versão de pelo telefone pela Casa Edson.

O violão-bolacha de Donga existe até hoje e permanece intacto, resguardado por sua neta, Marcia Zaira.

É, certamente uma das nossas maiores relíquias na galeria dos instrumentos do museu vivo da música popular brasileira. E, ainda que muitos desejem ver o instrumento, infelizmente com a inexistência de políticas de preservação de acervos em nosso país é melhor que ele se mantenha guardado na casa de um dos parentes do violonista, longe dos olhos do público comum, do que mal preservado num centro cultural sucateado desses que estamos cansados de conhecer, ou de museus que pegam fogo destruindo parte importantíssima da nossa história da nossa memória, e por que não dizer da nossa identidade?

Trabalhemos para que novas políticas culturais e de preservação cultural sejam criadas no país, e para que instrumentos como o violão-bolacha que pertenceu a um dos maiores instrumentistas do Brasil, e por que não dizer do mundo, o Donga, possam ser vistos, conhecidos e admirados pelo grande público.

Referência

Jota Efegê, Figuras e coisas da música popular brasileira, Funarte, 2007.

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Author: imprensabr