Pensadores do Choro: Tudo Culpa do Choro – Parte III Diário das apresentações


No domingo 24 de janeiro de 2016, a Revista do Choro começou a publicar o livro Pensadores do Choro na íntegra para seus assinantes. A cada domingo um novo capítulo vem sendo publicado desde então. Hoje, seguimos com o artigo Tudo Culpa do Choro, do autor Sergio Aires, contemplado pelo prêmio literário promovido pela Revista do Choro e e-ditora] (www.portaldaeditora.com.br) em 2014.

Boa leitura!

arte de reynaldo berto para a capa do livro pensadores do choro

Por Sergio Aires

Diário das apresentações

Tenho um hábito que adquiri depois de ler o livro Jacob do Bandolim, de Ermelinda A. Paz. Esse hábito consiste em anotar, num diário, uma breve descrição de como foram as apresentações em que atuei como flautista. Abaixo, alguns relatos de rodas de choro:

26.01.2013 – João Pessoa – Picuí + Aeroclube

Apresentei-me com o grupo Bem Brasil, Israel (7 cordas), Júnior (cavaco), Lúcio (bandolim), mais pandeiro e tan-tan. Estou querendo me desprender das partituras e, para isso, arrisco-me a tocar alguns choros decorados. Deu certo.

 

27.01.2013 – João Pessoa – Chope Time + Aeroclube + Casamento

Acompanhei Israel (7 cordas) em três lugares: Chope Time (som excelente), Aeroclube e casamento de Júnior (cavaquinho). Toquei tanto choro que achei que iria enjoar. Terminei o dia foi gostando mais ainda. Saí às 13h. Voltei às 23h30.

21.04.2013 – Aeroclube

Depois de praticar alguns choros, chegou Waltinho (acordeom) e tomou conta do palco.     Impressiona a forma como seus dedos deslizam pelas teclas. Parece uma dança. Impressionante também é a riqueza de seus fraseados e improvisos. É um exemplo. Ao fim da apresentação, despediu-se de mim dizendo: “Sergio, você é um músico novo, mas, apesar disso, me dá um prazer danado tocar com você”. Esse foi meu cachê.

 

08.06.2013 – Aeroclube

Lúcio (bandolim), Israel (7 cordas), eu, Pedro “Fura Bombo“, Roberto (6 cordas), Formiga (pandeiro) e Maropo (sax tenor) fizemos uma noite de choro como há muito eu não participava. Contracantos do sax, diálogos do bandolim e os choros foram escorrendo dos instrumentos com uma fluidez e molejos muito gostosos. O som estava bom e havia solidariedade dos músicos em ouvir o outro.

 

15.06.2013 – Sabadinho Bom

Primeira. Praça Rio Branco lotada. Toquei todo meu repertório de choro (20), à exceção de Aeroporto do Galeão (Altamiro). Ao lado de Pelágio (7 cordas que, de tão empolgado que tocava, estourou a terceira corda duas vezes), Arnaud (bandolim), Júnior (cavaco) e James (pandeiro), tocamos das 12h18 às 15h30. Só choro, além de Wave (Tom Jobim). Pela primeira vez na vida, toquei Rosa com todo meu coração. Acho que consegui o perdão de Pixinguinha [pelas vezes mal tocadas], pois me senti no céu no exato momento em que terminei de tocar. Olhei para o Pelágio e parecia que ele havia, também, retornado à Terra. R$ 200.

27.06.2013 – Villa do Porto

Apresentação fraca. Acompanhar quem não tem pulso é um desafio à tolerância.

 

18.07.2013 – Villa do Porto

Voltei a me apresentar depois de 15 dias sem tocar. Foi o período mais longo de abstinência nesses três anos de flauta. O motivo: cirurgia para curar uma apendicite. Graças a Deus e aos chorões que estão no céu, tudo correu bem e pude voltar ao palco ao lado de amigos que me deixaram totalmente à vontade e emocionado. Enquanto tocava, nem parecia que estava operado. Começo a desconfiar profundamente dos poderes cicatrizantes da música.

No início, não recebia cachê nenhum com as apresentações. Também não cobrava, pois eram rodas informais, que eu ia muito mais para aprender do que, de fato, para mostrar meu trabalho. Foi um período de muito aprendizado e de muita experimentação. Era a oportunidade que tinha de, quando não sabia a melodia, tentar improvisar contrapontos sem atrapalhar o solista, o que, para mim, era um desafio enorme. Em uma das anotações no diário, escrevi, inclusive, um conselho dado por um dos músicos que frequentava as rodas: Maropo (flautista, bandolinista e saxofonista, além de médico). Ele disse: “Deixe para fazer o fraseado enquanto o solista estiver na respiração da melodia; do contrário, fica enfeitado demais e acaba banalizando o timbre da flauta”.

As rodas aconteciam em lugares diferentes e, com o tempo, fui percebendo a importância do interesse da plateia, que, quanto maior era, maior nossa empolgação nas interpretações. Quando percebíamos que a plateia gostava de choro, o clima era outro. É claro que sempre dávamos o nosso melhor, mas existia uma energia diferente: as pessoas estavam ali para ouvir choro. Isso, para a música instrumental, é de uma raridade extrema. É preciso resgatar o interesse do público pela música instrumental, especialmente o choro. Daí a importância de conhecer a história dos compositores e das músicas.

Um dos artifícios que mais davam resultado em despertar a atenção da plateia era quando falávamos alguma curiosidade sobre a música que tocaríamos em seguida. Às vezes, contávamos como o compositor escreveu a música, a exemplo de Aeroporto do Galeão, que Altamiro Carrilho usou como inspiração o sinal de alerta emitido para chamar os passageiros. Ou, simplesmente, quando convidávamos a plateia a prestar atenção na melodia para entender o nome da música, como em Língua de Preto, onde as notas em oitavas sugerem um som onomatopaico de um preto velho falando.

Assim, não só promovíamos uma interação que tinha como resultado uma interpretação mais verdadeira, como também contribuíamos para manter viva a história do choro e da música popular brasileira. Quem não acha curioso saber que Pixinguinha, quando morreu, tinha no bolso de sua camisa um trecho manuscrito de Carinhoso e que, enquanto seu corpo ainda estava na igreja em que morreu, um grupo carnavalesco que ia passando, ao saber da morte dele, executou a melodia em sua homenagem? Quem não se emociona ao saber que Jacob, de tanta entrega, acabou sofrendo um infarto em pleno palco? Quem não dá um sorriso de canto de boca ao conhecer a história e, logo em seguida, ouvir o choro André de Sapato Novo, com suas paradas estratégicas? O choro resgata um hábito há muito esquecido: contar histórias. E o mais sensacional: histórias que já vêm com trilha sonora. Histórias, reforço, que mergulham nas nossas raízes.

É preciso enaltecer o choro, pois, no meio acadêmico, ainda é tímido. As possibilidades de estudar contraponto, harmonia, sonoridade, orquestração, percepção musical e tantas outras disciplinas através do choro são imensas. Faltam métodos? Criemos! Nossas escolas precisam contar nossa história. É o caso da Escola Portátil de Música, que desenvolve um trabalho exemplar.

 

Imagem que ilustra a matéria: Capa do livro Pensadores do Choro, Arte de Reynaldo Berto.

 

 

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Author: imprensabr