Avendano Júnior: O chorão do Liberdade


Por Rosa Maria Mano

É possível haver um artista que não persiga o sucesso?

Faustos, os que pretendem ser artistas (em grande parte) são movidos pela vaidade e sufocam de infelicidade se não conseguem sair do anonimato. Quando não Faustos, Narcisos. Num contexto onde a mídia determina o tamanho de tudo, os que buscam fama e dinheiro fáceis vendem a alma de sua obra, neste caso a música, à vontade dela (não do público), que estabelece, sob a única égide do lucro fácil e rápido, o que é vendável, facilmente deglutível e rentável. A música como objeto de consumo imediato, fast food dos sentidos, com refrões pobres, mas de grande apelo popular, de gosto duvidoso e vida breve.

O artista, o que carrega a arte no sangue e no coração, é aquele que, como Mozart, é fiel apenas à sua liberdade na expressão do seu mundo particular, rico em imagens, sons e valores. Não há como prender, compartimentar, limitar a arte. Joaquim Assumpção Avendano Júnior (entre outros, chorões, violeiros, sanfoneiros, poetas, cujas almas não têm preço), cavaquinhista, avesso às tecnologias, aos agitos da mídia, aos compromissos limitadores da criatividade, levava a vida deslizando pelas cordas do cavaco, livre, senhor da sua mais cristalina forma de expressão.

Falando em limitadores, Avendano Júnior nasceu e foi morador de Pelotas, no Rio Grande do Sul sua vida inteira. Mas não compunha chulas, fandangos, vanerões. Não ligava a mínima para os Arcos da Lapa, nem para os regionalismos de sua cidade ou de seu estado. Não conhecia outro berço para sua música que não fosse seu próprio instrumento. E seu instrumento levava ao passeio e à aventura da vida o choro, sua música, seu lastro, a dona do seu sorriso, senhora do seu destino.

Quanta vontade de beleza podem conter as mãos de um homem? Avendano chorava e chorava e chorava e fazia chorar seu cavaquinho até sentir que havia conseguido um encontro amoroso entre beleza e melodia.

avendano jr

Avendano Júnior

Avendano Júnior e Waldir Azevedo: Uma história de amizade

Nos últimos 20 anos do Império, Joaquim Callado, autor da peça que é considerada o primeiro choro, “Querosene”, experimenta a flauta numa doce aliança com violões e cavaquinhos. “O Choro de Callado”, como ficou conhecido seu regional, tinha a flauta como solista. Os violões e um cavaquinho faziam o acompanhamento. “Flor Amorosa” (1880), com a parceria de Catulo da Paixão Cearense, foi sua última composição publicada, alguns dias após sua morte.

Desde então, o choro não aceita influências, interferências, que não sejam do próprio choro. Muito menos estrangeirices.

Dos pioneiros Callado e Chiquinha Gonzaga a Waldir Azevedo, o gênero autenticamente brasileiro é exercício de guardar memória, e é deles que vem a herança que estufa e converte em música o talento de Avendano Júnior. E não é pra qualquer um. Foram cinquenta anos de dedicação amorosa à música.

Avendano, em 1971, procura por Waldir Azevedo, através de uma carta. Fala de sua admiração e da inspiração que o magnífico cavaquinista lhe traz. Pede instruções sobre técnica.

Avendano Jr e Waldir Azevedo.

Avendano Jr e Waldir Azevedo.

Waldir Azevedo e Avendano Júnior iniciaram uma correspondência por carta e estreitam uma amizade ajustada pelos laços das cordas do cavaco. O discípulo aprendeu a técnica do mestre e transformou-se num virtuose do seu instrumento. Respeitado por Waldir Azevedo por seu talento indiscutível, no LP Minhas Mãos, Meu Cavaquinho, (1976), a faixa Assim Traduzi Você, de autoria do nosso personagem, é executada por aquele que Avendano mais admirava.

Segundo Haroldo de campos, produtor musical e responsável pela produção do CD Sovaco de Cobra Trio (2005):

Avendano era fã incondicional do Waldir e expressou isso por carta, que o Waldir se deu ao trabalho de responder. Veja como o acesso a artistas da época era bem diferente, né? Acredito que o conteúdo da carta, de alguma forma, sensibilizou Waldir e, a partir daí, começaram a trocar correspondências, ao ponto de, não sei precisamente quando nem como o envio se deu, Waldir pediu uma composição de Avendano para gravar, me parece que no início da década de 70.

Sobre a amizade com Waldir Azevedo, lembra sua esposa e companheira de toda vida, Rita Avendano:

“Em 1973 Avendano, foi convidado pelo Waldir para ir a Brasília. Ficou hospedado em sua casa por 10 dias o que veio a fortalecer muito a amizade que já existia entre eles. Avendano conheceu os familiares mais chegados de Waldir, firmando assim um laço de muito amor e respeito entre todos. Foram dias com muito aprendizado e muita música. Olinda, esposa de Waldir, uma pessoa admirável, delicada, sensível, enviou, em 1998, um cavaco de Waldir para Avendano. Este instrumento é do Bandolim de Ouro do ano de 1979 (…) este cavaquinho está com uma de nossas filhas, bem guardadinho.”

O neto Kalel e a filha de Avendano Jr., Cristiane, mostram com exclusividade para a Revista do Choro o cavaquinho de Waldir Azevedo dado de presente por sua viúva a Avendano.

O neto Kalel e a filha de Avendano Jr., Cristiane, mostram com exclusividade para a Revista do Choro o cavaquinho de Waldir Azevedo dado de presente por sua viúva a Avendano.

O cavaquinho de Waldir Azevedo dado de presente a Avendano Jr.

O cavaquinho de Waldir Azevedo dado de presente a Avendano Jr.

Bilhete que a viúva de Waldir Azevedo, D. Olinda Azevedo, deu a Avendano Jr. quando o presenteou com o cavaquinho do marido.

Bilhete que a viúva de Waldir Azevedo, D. Olinda Azevedo, deu a Avendano Jr. quando o presenteou com o cavaquinho do marido.

Os chorões do liberdade

A historiadora Thaís de Freitas Carvalho, em seu trabalho de conclusão do mestrado em História pela Universidade Federal de Pelotas, pergunta:

(…) o aspecto mais curioso deste cenário foi justamente a peculiaridade não só do repertório, mas também dos músicos, da estética e do comportamento percebidos no espaço. As características de um botequim carioca do século XX, com muito choro, samba e ‘gente bamba’ estavam presentes ali, em um bar na metade sul do Estado brasileiro mais ao sul, cujos governantes, mais de uma vez na história, manifestaram posturas separatistas perante o resto do país. Como pôde o choro firmar-se – e com um número bastante extenso de músicos e admiradores – e afirmar-se tão acentuadamente nesta região de fronteira cercada de regionalismos não só musicais, mas até políticos?

E afirma:

O choro carioca, segundo José Ramos Tinhorão (1998), teria surgido no Rio de Janeiro com a decadência da música de barbeiros, fenômeno do século XVIII que consistiu na especialização musical de tais profissionais – já que dispunham de tempo livre e habilidades manuais -, em sua maioria negros livres ou a serviço de seus senhores. Os barbeiros teriam refletido a necessidade de música para as festas populares, resultado do adensamento do quadro urbano. Tocavam ‘de orelha’ e aprendiam da maneira mais livre possível, executando ‘peças alegres’ à entrada das igrejas e nas celebrações de festas. O autor enquadra os “mestiços da nascente baixa classe média urbana da era pré-industrial” que formariam o choro como herdeiros da música de barbeiros, o que, sem dúvida, pode ser expresso pelo autodidatismo presente em seus expoentes e, ainda hoje, no legado dos chorões antigos aos admiradores do choro da moderna era industrial. (TINHORÃO, 1998, p. 173)

O Liberdade, de propriedade de Dilermando Lopes, nasceu em 10 de maio de 1974 e não era diferente de qualquer barzinho dos anos de 1970 e 1980 que havia em profusão na Lapa, Vila Isabel, na Penha, no Rio de Janeiro, ou no Bixiga, Pinheiros ou Consolação, em São Paulo. Tido como um homem de fibra, seu “inventor” mantinha os boêmios com pulso firme, mas com imensa simpatia e conseguiu seduzir frequentadores assíduos num espaço que cultuava a boa música e a amizade que nascia e era nutrida pelo convívio e pela mágica do sentimento de pertencimento.

Clássicos de Waldir Azevedo e Pixinguinha integravam o repertório, sempre ao vivo, com músicos como Avendano Júnior e seu Regional. Durante largos, criativos e proveitosos anos, dos 75 que viveu – 35 deles dedicados à música -, Avendano, que afirmava não ser artista, mas ter nascido para tocar seu cavaquinho, fez chorar as cordas do seu instrumento no Liberdade com peças de autoria de nomes consagrados, e com suas próprias composições, que ainda estão por ser reconhecidas.

Ao que parece, foi o lugar que escolheu este particular artista e sua música, muito distante das noites cariocas onde nasceu o choro, e aqui nem é preciso perguntar por quê: a música é a língua de todos os povos, desconhece regionalismos, limitações de espaço/tempo e para aprendê-la e compreendê-la, basta abrir o coração e entregar-se. Avendano, um dos mais importantes cavaquinistas do país, seu Regional e o Bar Liberdade, um santuário de samba e choro no centro de Pelotas, confundem e entrelaçam suas histórias numa única que talvez seus protagonistas não tenham compreendido: a história da resistência e da preservação da identidade de um gênero único no mundo, particular em sua brasilidade e, ao mesmo tempo, universal em sua grandeza.

Liberdade para os chorões

O contexto político em que nasceu o bar: Ernesto Geisel, gaúcho de Bento Gonçalves, foi eleito o 20º presidente do Brasil, 4º do regime militar, em janeiro do mesmo ano em que nascia o Liberdade.

Geisel extinguiu a mordaça do AI5, de 1968, mas deu a seu sucessor o direito de decretar estado de sítio a qualquer momento. Embora fosse considerado mais “brando”, foi em sua gestão que, no DOI-CODI, no ano de 1975, em São Paulo, Vladimir Herzog foi morto sob tortura, num tempo em que os militares já pregavam o processo de redemocratização do país, “lento, gradual e seguro”.

Um ano depois, Chico Buarque de Holanda gravava o choro Meu Caro Amigo, inserido no disco Meus Caros Amigos, “carta” escrita com Francis Hime ao amigo Augusto Boal, exilado em Portugal.

Na trincheira – o Liberdade e o choro do Sovaco de Cobra

Embora sem ligações com nenhum movimento político, o Bar Liberdade é berço e trincheira do gênero musical que é considerado como a primeira expressão da música tipicamente urbana no Brasil. O choro segue sua trajetória pelas mãos e talento de músicos da grandeza de Waldir Azevedo, que elevou o cavaquinho à condição de solista e de Avendano Júnior, cultivadores das obras de Pixinguinha, Jacó do Bandolim, Ernesto Nazaré, Garoto. O choro, fiel às origens e seus compositores, fiéis à alma brasileira entranhada nas cordas, no som doce da flauta, na afinação dos violões, criaram suas bases de resistência e insuflaram vida quando a bossa nova surgiu e o gênero perdeu, em parte, sua popularidade.

Onde encontrar um Sovaco de cobra?

A partir da década de 70, há um movimento de restauro do choro. Em 1973 Paulinho da Viola e o Conjunto Época de Ouro apresentam o show “Sarau”. Os Clubes do Choro surgidos em Brasília, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Goiânia e São Paulo, entre outras cidades, reúnem músicos de todo o Brasil. Grupos como Os Carioquinhas, resgatam grandes nomes e o público redescobre veteranos como Altamiro Carrilho, Abel Ferreira, Copinha e o próprio Waldir Azevedo.

É nesse movimento que está a semente do conjunto Sovaco de Cobra, grupo formado por Silvério Barcellos (violão), Jucá de León (percussão) e Gil Soares (flauta).

Em 2006, eles se identificam pela música e pelo desejo comum de repertório: instrumental brasileiro.

Em pouco tempo, o grupo conquistou respeito no meio musical e viu crescer seu público. Em 2010, alcançou reconhecimento fora do Brasil, apresentando-se em Montevidéu e outras cidades uruguaias.

Interessados por repertórios que têm certo tom de ineditismo, que estivessem alinhados às suas particularidades, O Sovaco de Cobra Trio se identificou com a obra e a personagem de Avendano Jr.

Jucá de León foi quem estreitou os laços com os músicos do Bar Liberdade e com Avendano Júnior; senhor de um talento ímpar, carismático, segundo os que o conheceram, bom companheiro e dono de enorme generosidade. Catártico, catalizador, Avendano Júnior aglutinava, unia em torno de si o melhor do choro e da vida boêmia na distante Pelotas, sob a batuta e proteção de Dilermando Lopes, proprietário do Liberdade.

Em 2011, o choro Mimoso foi escolhido pelo Sovaco de Cobra Trio para ser a primeira composição do cavaquinhista a ser gravada pelo conjunto. Avendano, depois de relutar muito, aceitou entrar em estúdio. Juntou-se a eles o violonista Milton Sete Cordas, parceiro e grande amigo, numa gravação sem edições, que emocionou todos os envolvidos pela qualidade técnica e pelo caráter mágico da música de Avendano Júnior.

Avedano nas telas do cinema

Antes de partir, no início de 2012, Avendano pode assistir à estreia do documentário O Liberdade, dirigido por Cíntia Langie e Rafael Andreazza. O filme foi realizado pela produtora Moviola Filmes, em 2011. Aplaudido de pé por um Teatro Guarany lotado, o músico contrário às modernidades, como ele mesmo se definia, seguia praticamente inédito.

O filme é um longa-metragem de 71 minutos e narra as histórias do Liberdade, com foco nas pessoas, do fundador do bar às gerações de frequentadores e músicos. A produção foi exibida em mais de sete países e ganhou prêmios em festivais nacionais: melhor documentário (FAM- 2012), júri popular (Vivo Movida João Pessoa e Goiânia) e melhor roteiro de longa metragem (Petrópolis).

O projeto ‘Sovaco de Cobra visita Avendano Júnior’

No mesmo ano em que Avendano Júnior saiu de cena, o Bar Liberdade foi obrigado a fechar as portas. O terrível incidente em Santa Maria (RS) que vitimou mais de duzentos jovens fez recrudescer a legislação de segurança em estabelecimentos comerciais e veio a proibição ao bar dos chorões de funcionar com música ao vivo.

O grupo sovaco de cobra aguardava pela oportunidade de trazer à luz seu tesouro: a gravação feita com Avendano e seus amigos.

Finalmente, em 2014, Gil Soares recebe de Raul D’Ávila, também flautista, a transcrição de 29 composições de Avendano, compiladas pelo violonista Luiz Machado num caderno. Eram 29 diamantes raros, 29 possibilidades de mostrar a música viva de Avendano Júnior.

Foi criado o projeto de um CD, em parceria com Haroldo de Campos, que revelaria uma parte da obra que, por sua qualidade e ineditismo, apaixonou todos os participantes do projeto.

“Na verdade, a minha relação é com os componentes do trio (Sovaco de Cobra). Como produtor cultural fui procurado pelo Gil, amigo há quase 40 anos, colega do curso de música. Quando ele apresentou a ideia de registrar a obra do Avendano, que eu já conhecia uma parte, abracei o projeto com muito empenho, pelo valor que tem para Pelotas e para a cultura local

A partir do projeto é que fui conhecer mais a fundo quem era Avendano.

Eu percebi nele um rico ser humano, grande amigo daqueles que o cercavam. Percebe-se nas composições dele, que sempre eram inspiraras nos momentos vividos com esses amigos e, claro, com a Rita.

“Creio que foi uma perda para mim não ter convivido com ele”, conta Haroldo de Campos, produtor musical que abraçou o projeto do CD.

Avendano Júnior não conhecia teoria musical. Ainda segundo Haroldo de Campos:

“As partituras que conheci são todas compiladas a partir de gravações. Ele não conhecia teoria musical. Era preciosíssimo com a técnica do instrumento, desenvolvida somente na prática, com alguma ajuda do Waldir Azevedo”.

O ProCultura, sistema municipal de financiamento da cidade de Pelotas, aprovou o projeto, conferindo a ele o status de prioridade, em virtude do significado da música de Avendano Júnior para a cidade e para a história do choro.

Faria parte desse CD, um documento inédito: a gravação de Mimoso com a participação de Avendano e seu cavaquinho.

O som do bandolim de Paulinho Martins, também de Pelotas e amigo de Avendano veio trazer nova tessitura à musica preciosa que o Sovaco de Cobra pretendia imortalizar. Ex-aluno de Avendano, coube a Rafael Haical fazer chorar o cavaquinho.

Rita Avendano, a viúva do compositor, sua grande incentivadora e guardiã de sua memória, foi convidada a participar do projeto, trazendo informações preciosas e auxiliando na produção do material fotográfico que comporia a imagem para o CD. Rita abriu sua casa para a sessão de fotos dos pertences de seu marido, entre eles, fotografias e recortes de jornais e revistas que ela mesma havia preservado durante os anos de convivência.

Sovaco de Cobra Trio visita Avendano Júnior

Esse é o título do trabalho em vídeo que coroou o projeto de um trio, o Sovaco de Cobra, que um dia visitou a obra e o coração de um chorão que viveu sua música em liberdade.

Disponibilizado gratuitamente no Youtube, dá continuidade à generosidade da obra de Avendano, autêntica, alegre e espontânea como ele, Avendano Júnior e como a paixão que provocou no trio Sovaco de Cobra.

Os músicos do Sovaco de Cobra Trio.

Os músicos do Sovaco de Cobra Trio: Gil Soares (flauta), Jucá de Leon (pandeiro) e Silvério Barcellos (violão de sete cordas)

Nas palavras de Haroldo de Campos, a inabalável crença de que o choro resiste, renasce, ressurge, apesar dos modismos:

“O que tem me entusiasmado é que, a partir da publicação do documentário “O Liberdade” e o consequente trabalho proposto para divulgação do trabalho de Avendano, está acontecendo em Pelotas um grande movimento de jovens na busca de informação e até mesmo estudo aprofundado do choro. Com esse objetivo foi criado há quase dois anos o Clube do Choro, que tenho frequentado como ouvinte. É lindo ver a garotada apaixonada pelo que estão fazendo. Há um garoto de 14 ou 15 anos que parece a reencarnação de Avendano, tal a intimidade dele com o cavaquinho. Neste mês de novembro, 3, 4 e 5, o SESC de Caxias do Sul estará inseriu na programação do Aldeia SESC 2016 (o tema deste ano é o samba) a projeção do documentário O Liberdade (com palestra dos produtores da Moviola Filmes), uma oficina chamada Pandeiro Amigo (ministrada por Jucá de Leon) e show do Sovaco de Cobra Trio”, diz Haroldo.

O flautista do Trio, Gil Soares, conta como começou a relação dos músicos que integram o conjunto com o cavaquinista Avanedano Jr:

“Em 2006, quando o violonista Silvério Barcellos, o percussionista Jucá De León e o flautista Gil Soares descobriram que tinham em comum a vontade de trabalhar um repertório de música instrumental brasileira, o Bar Liberdade vivia, talvez, seus melhores anos. Isso, em Pelotas, no extremo Sul do país de Pixinguinha, muito longe dos Arcos da Lapa e dos redutos tradicionais do choro. Por ironia do destino, levou ainda algum tempo para que o trio se aproximasse mais intimamente deste ambiente, onde um mágico contaminava a todos com sua música, seu carisma e seu exemplo de companheirismo e generosidade, sempre através de seu cavaquinho. Joaquim Avendano Jr. chamava-se este catalisador, em torno do qual o Liberdade tornou-se um ponto de convergência para todos os que admiravam o gênero mais brasileiro de música e de vida boêmia. Sovaco de Cobra foi o nome escolhido para o trio, por sugestão de Silvério, que havia lido sobre o extinto reduto carioca. Rapidamente ganharam notoriedade e respeito no circuito local de música, expandindo aos poucos seu público até chegar, em 2010, a um surpreendente reconhecimento “internacional”, com apresentações em Montevidéu e mais uma meia-dúzia de cidades menores no país vizinho. A receptividade dos uruguaios garantiu a volta do trio ao país pelos dois anos seguintes.

Por essa época a vontade de gravar repertórios pouco explorados levou o Sovaco de Cobra a buscar na obra de Avendano temas que se adaptassem à peculiar estética desenvolvida pela formação enxuta e à sonoridade particular do grupo. Através de Jucá, que já tinha antigo vínculo com o bar e seus músicos, aos poucos o trio se aproximou do cavaquinista. O choro Mimoso foi o escolhido e, já em 2011, Avendano aceitava, não sem relutância, entrar em estúdio para gravar com os amigos.

Avendano era declaradamente avesso a badalações, tecnologias e outras modernidades. Queria tocar seu cavaquinho, compor seus temas e compartilhá-los com os amigos ao vivo! O Liberdade era seu habitat natural! Para a empreitada veio ainda o fiel compadre, parceiro e inspirador;  o violonista Milton “Sete Cordas”. Alves, também do grupo que sacudia o Liberdade nas épicas noites de sexta e sábado. Mimoso ficou gravado. Uma sessão rica em espontaneidade, sem edições, que conseguiu a proeza e a poesia de ser fiel à sonoridade do boteco.

Menos de um ano depois, no início de 2012, Avendano despedia-se do plano material e deixava um vácuo no ambiente. Um silêncio dolorido em uma comunidade musical. Viveu para assistir à estreia do documentário O Liberdade. Foi aplaudido de pé por um Teatro Guarany lotado.

E o Mimoso seguia inédito.

No mesmo ano, devido a um lamentável acidente que matou mais de duas centenas de jovens em Santa Maria (RS), a legislação de segurança em estabelecimentos comerciais endurece drasticamente e o Liberdade é proibido de funcionar com música ao vivo. E a gravação do Sovaco com seus amigos seguia arquivada à espera de um projeto viável e relevante que merecesse sua presença. Era uma pérola rara, um documento.

Em 2014 chega às mãos do flautista Gil Soares, através do amigo e também flautista Raul D’Ávila um caderno com a transcrição de 29 composições de Avendano, compiladas pelo violonista Luiz Machado, amigo do cavaquinista, residente e atuante no meio musical de Porto Alegre. Em pouco tempo a ideia de gravar um cedê com parte da obra do amigo ganha corpo, formato, sentido e muita, mas muita força. Um projeto é escrito em parceria com o amigo Haroldo de Campos, da NotAzul Produções, e aprovado  com status de prioridade no ProCultura, um sistema municipal de financiamento da cidade de Pelotas. Um sonho começava a se materializar e uma parte dele já existia, armazenada desde 2011 e guardada com todo o zelo que merecem os grandes tesouros.

Desde o primeiro momento, quando o projeto tomou forma nas mentes e corações da Família Sovaco de Cobra, uma pessoa foi procurada e trazida para junto da iniciativa. Rita Avendano, a viúva do compositor, que foi o principal pilar afetivo da carreira do companheiro. Agora Rita fazia parte do processo e estava sempre por perto, colaborando com informações, curiosidades e muito carinho. A sessão de fotos dos pertences de Avendano para a produção da identidade gráfica do trabalho, realizada na casa de Rita pelo artista pelotense Valder Valeirão, foi de uma emoção indescritível, graças ao amor e devoção desta senhora profundamente generosa e espiritualizada.

A escolha do repertório e dos músicos amigos que participariam obedeceu um único critério: AFETO. Os choros que naturalmente se adaptavam à sonoridade da flauta e às características de linguagem do trio foram surgindo a cada leitura e experimentação. A necessidade de agregar outras texturas trouxe para junto do trio o bandolim de um antigo parceiro de Avendano, o pelotense Paulinho Martins; o som do cavaquinho veio pelas mãos do ex-aluno do mestre, Rafael Haical, que trouxe ainda o irmão Gustavo, profundo conhecedor de choro e da obra do cavaquinista Avendano Junior, de quem foi amigo muito próximo.

Findo este processo, era hora de devolver a obra de Avendano ao mundo. Aos ouvidos e corações do seu público, especialmente àqueles que ainda não o conheciam e teriam a chance de se aproximar de sua obra através deste registro absolutamente inédito. Para eternizar este momento, o trio incluiu no projeto a realização de um curta-metragem que mostrasse exatamente o encontro da obra com a plateia, em um belo teatro nos limites do Brasil. A fronteiriça Jaguarão, a um rio de distância do já palmilhado Uruguai, e o Theatro Esperança foram os escolhidos, e o resultado pode ser conferido gratuitamente na rede mundial de computadores. Basta pesquisar “sovaco de cobra trio visita Avendano Jr.”.

Um trio dedicado à música brasileira instrumental, com uma proposta de choro pouco convencional, vivendo e produzindo sua arte no extremo Sul do Brasil, descobre na obra de um herói que escolheu viver longe de holofotes uma linguagem que traduz o melhor da nossa música: autenticidade; criatividade; linha melódica direta e fluente; alegria e espontaneidade! O nome adotado pelo projeto foi Sovaco de Cobra Trio Visita Avendano Jr., e traduz fielmente a ideia de sentir-se à vontade na obra/ casa de um amigo a ponto de não perder suas características. A música de Avendano com a assinatura sonora do Sovaco. Uma obra significativa que solda um elo importante entre gerações do choro. Em uma ponta a influência mais que definitiva da geração que atravessou galhardamente os anos 1970, 80 e 90 mantendo acesa a chama de um gênero então esquecido pela mídia e maioria do público. Em outra uma juventude entusiasmada pelo choro, redescobrindo-o através de novos valores e uma enxurrada de gravações, espaços, teses acadêmicas e documentários. No meio disto a geração do Sovaco de Cobra Trio, que foi muito jovem quando Avendano estava no auge de sua maturidade e que está madura (Gil e Jucá são cinquentões, e Silvério já se aproxima dos 40) o suficiente para servir de referência à gurizada que acaba de chegar à cena. Uma honrosa e carinhosa passagem de bastão”, conta Gil.

O que fica do liberdade

O Liberdade ficou conhecido em vários países através do documentário sobre ao bar, e o trabalho do Sovaco de Cobra segue traduzindo o brilho do choro de Avendano.

O bandolinista Paulinho Martins prepara a gravação em CD de Assim Traduzi Você, pelo selo Escápula Records. O trabalho de Avendano Júnior espera por seu lugar, merecido, entre os mestres do choro.

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Author: imprensabr