Abel Ferreira – 100 anos do clarinetista do Brasil


abel em plena performance projeto pixinguinha 1977 funarte

Abel Ferreira em plena performance durante o Projeto Pixinguinha, 1977. Acervo Funarte

Por Leonor Bianchi

Nascido em 15 de fevereiro de 1915, na cidade mineira de Coromandel, fronteira de Minas Gerais com Goiás, o instrumentista chorão Abel Ferreira tem seu centenário de nascimento celebrado em 2015. Falecido aos 65 anos, por problemas cardíacos, em 12 de abril de 1980, deixou ensinamentos riquíssimos à escola da música popular, do choro, da clarineta e do saxofone com sua forma única de interpretar o gênero.

Esta edição da Revista do Choro presta uma singela homenagem a este que fora um dos mais grandiosos instrumentistas de choro de todos os tempos. Nesta matéria, colocamos luz sob sua biografia, ainda pouco contada nas rodas de choro, e trazemos à tona o legado deixado por Abel Ferreira às novas gerações de clarinetistas e saxofonistas brasileiros, além de revelarmos aspectos de sua vida em família fora das luzes dos palcos, das rádios e gravadoras.

Uma vida dedicada ao choro

Abel Ferreira começou cedo sua relação com a música e com a clarineta. Aos 12 anos, iniciou os estudos musicais com seu pai, que tocava sanfona. Três anos mais tarde já era músico profissional e, aos 17, foi lançado pela Rádio Guarani de Belo Horizonte, tocando sax alto e tenor.

Aos 20 anos, em 1935, Abel Ferreira se muda de Minas Gerais e vai morar em São Paulo. Na capital, tocou na importante orquestra de Mauricio Caraspera, mas não seria lá que faria carreira. Em busca de trabalho, voltou ao interior de Minas, onde conseguiu um bom emprego como diretor artístico na rádio de Uberaba. Mas também não seria na rádio mineira que permaneceria trabalhando, e mais uma vez mudou-se de cidade levando ao seu lado a esposa.

Morou em Belo Horizonte de 1937 a 1940 e lá atuou na orquestra de J. França. Foi em Belo Horizonte que nasceu sua filha Vania, em 1940. E foi em BH também que gravaria seu primeiro registro fonográfico, em 1942, pela gravadora Columbia. O disco tinha as músicas Chorando Baixinho (choro) e Vania (valsa).

De 1935 a 1943, Abel viajou muito entre Minas e São Paulo, chegando a se mudar para a capital paulista, retornado novamente a Coromandel para trabalhar em uma sorveteria, depois de insucessos na terra da garoa.

Insistindo na profissão de músico, Abel sai novamente de sua cidade natal em mais uma tentativa de fazer de sua música sua forma de viver, seu trabalho. Desta vez, vai para o Rio de Janeiro.

A infância humilde em Coromandel

Localizada na fronteira de Minas Gerais com Goiás numa região conhecida como Geraes, a pequena Coromandel ficou célebre por ali ter sido encontrado um diamante com cerca de 500 gramas, apelidado de Getúlio Vargas. Na cidade, que ainda preserva o ar bucólico do interior de Minas Gerais, Abel nasceu e foi reverenciado depois de sua morte, tendo como homenagem dos conterrâneos, seu nome dado à praça principal da cidade, onde está localizada a igreja matriz.

Nesta paisagem nasceu e cresceu o menino Abel Ferreira. Conta-se, que ainda muito criancinha, aos dois anos de idade, ele saía engatinhando, curioso e alegre atrás da banda da cidade, quando esta passava pelas ruas.

O menino Abel crescia ligado à música. Tocador de sanfona de 8 baixos, seu pai, Emiliano, foi quem o ensinou as primeiras notas musicais, mas como nos contará mais adiante sua filha Vânia Ferreira, Abel foi, na verdade, um grande autodidata.

Depois da infância na qual ele naturalmente absorveu as influências sonoras das bandas, das serestas, dos menestréis do interior, encontramos um Abel adolescente, apaixonado e envolvido com e pela música.

Aos 12 anos, Abel estreou na banda de Coromandel e, não tendo mais parado de estudar, aos 15 já era profissional, e aos 17 estava na capital do estado, Belo Horizonte, tocando na importante Rádio Guarani.

O músico, o amante e o pai Abel Ferreira

O início da trajetória de Abel Ferreira como músico coincidiu com a chegada de seu primeiro e único amor. O cenário era a igreja matriz de Santana de Coromandel, localizada na praça que hoje leva seu nome.

O motivo era a música e o canto. E quem se encantou foi Abel Ferreira com a formosura da mocinha Maria Auxiliadora, integrante do coro da paróquia. Não haveria lugar mais apropriado para estabelecer uma relação de amor com uma donzela nos idos dos anos 1930. E foi ali, que ambos se apaixonaram e começaram uma linda estória de amor que duraria até os últimos dias de suas vidas.

– Minha mãe fazia parte do Coro da Igreja Matriz de Santana de Coromandel. Quem harmonizava e regia o coro era Abel, e ainda tocava o harmônio, sem ter estudado. Belas e afinadíssimas vozes femininas aí estavam. Dentre elas, irmãs maternas e paternas de Abel. Os dois ficaram mais próximos; começaram a namorar, contra a anuência de ambas a famílias. Vieram a se casar, sem aprovação dos pais de Maria e do pai de Abel. A mãe, D. Antônia, nossa Vovó Totonha (que tinha sido uma índia daquelas ‘agarradas a laço’), dotada de grande sabedoria, pelo que conheci, não creio que tenha proibido. Deve ter aconselhado Abel a ponderar a situação. Mas ficaria do seu lado em qualquer circunstância. Casaram-se em 1937. Haroldo nasceu em Coromandel em 1938 – revela sua filha, que recorda ainda:

– Mamãe era uma moça bonita, educada, professora primária do Grupo Escolar de Coromandel. Nasceu em 20 de maio de 1916 em Patos de Minas e foi para Coromandel. Tinha uma linda voz, cantava muito bem e encantava os rapazes que, como era costume, ‘jogavam os chapéus pra cima’ e gritavam: “quer matar, mata com a faca…” – conta Vania Ferreira.

Logo nos primeiros anos do casamento, com a esposa Maria Auxiliadora, Abel tentou a sorte e saiu da pequena e ‘limitada Coromandel’, indo para Belo Horizonte. Nesse tempo, chegou a ir também para Uberaba, São Paulo e, finalmente, Rio de Janeiro.

A chegada à capital federal

Assim que chegou ao Rio de Janeiro, em 1943, Abel Ferreira procurou o titular de clarineta da Escola Nacional de Música, o professor Antão Soares, como lembra sua filha Vania Ferreira, durante a entrevista à Revista do Choro.

– Chegando ao Rio, meu pai procurou o Titular de Clarineta da Escola Nacional de Música da antiga Universidade do Brasil, para se aperfeiçoar. O mestre Antão Soares lhe disse: “se eu for lhe dar aulas, vou mudar a sua embocadura e afetar esse lindo som; não quero fazer isso. Você está pronto!”. Abel ficou frustrado – conta Vânia.

Ainda em 1943, Abel gravaria Haroldo no Choro e Sururu no Galinheiro, ambos choros de sua autoria, sendo o primeiro composto para o filho primogênito, Haroldo.

Na cidade Maravilhosa, Abel tocou na orquestra de Ferreira Filho, no Cassino da Urca, o mais famoso dos cassinos brasileiros, frequentado por celebridades do mundo todo, e por onde desfilaram cantores do quilate de Carmen e Aurora Miranda, Linda e Dircinha Batista, Mário Reis entre muitos outros.

Nesse tempo, Abel tocou também nas orquestras de Vicente Paiva, muito concorrida para animar as festas da sociedade carioca, e na de Bené Nunes, importante músico daquela época, formador do Trio Surdina, que tinha entre seus integrantes o violonista Garoto, Aníbal Augusto Sardinha.

No Rio, Abel conheceu Claudionor Cruz, Zé Menezes, Pernambuco do Pandeiro, Sivuca, Raul de Barros, Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo, Arlindo Cachimbo, os irmãos gêmeos Valter e Valdir Silva, Dino 7 Cordas, Orlando Silveira, Canhoto, Copinha, Toco Preto, Zé da Velha, Jorginho do Pandeiro, Radamés Gnattali, Joel Nascimento, Índio do Cavaquinho e muitos outros chorões. É com essa turma que ele passa a tocar e a vivenciar o choro.

– Grande número de músicos e cantores se tornaram amigos de papai e muitos frequentaram nossa casa: José Menezes, Edinho do Trio Iraquitan, Pernambuco do Pandeiro, Sivuca, Joel Nascimento, Dino, Jorginho do Pandeiro, K-ximbinho, Luiz Gonzaga, Waldir Azevedo, Dante Santoro, Sandoval Dias, Arlindo do Violão, José Maria Braga, Raphael Rabello, Toco Preto, Índio do Cavaquinho, Mozart Ituassu, Marlene, Dolores Duran, Herivelto Martins, Dalva de Oliveira, Grande Otelo, Bené Nunes, Caco Velho, Chuca-Chuca, Manézinho Araújo, Chiquinho do Acordeon, Zezé Gonzaga, Walmar Amorim, Caboré – conta a filha de Abel, Vania Ferreira.

Liderou o grupo Turma do Sereno e depois o Abel e seu Conjunto, tendo feito grande sucesso nacional e internacionalmente, imprimindo um capítulo marcante e genial na historiografia da música brasileira, sobretudo, no que diz respeito à clarineta no choro.

Rio de Janeiro

Tentativa de viver da música que deu certo

A vida foi muito generosa com Abel Ferreira. Deu-lhe um sopro e um talento divino, que o fizeram ser percebido e elogiado onde fosse tocar. A partir de 1943, no Rio de Janeiro, Abel encontrou o ambiente ideal para praticar todo seu amor pela música.

Desde então, começou a gravar regularmente como solista e acompanhador dos cantores do rádio daquele tempo. Em 1944, regrava seu choro Chorando Baixinho, acompanhado pelo Regional de Claudionor Cruz, e realiza uma série de gravações nos anos posteriores. Data deste período sua relação com os maiores cantores brasileiros da época, como Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Marlene e Emilinha Borba.

Em 1949, Abel Ferreira criou e liderou a Turma do Sereno, contratada pela Rádio Nacional, e gravou seu choro Acariciando, em parceria com Lourival Faissal.

A década de 1950 começa bem para Abel Ferreira, que se estabiliza no Rio de Janeiro e grava diversas composições de sua autoria, como Polquinha Mineira e Doce Melodia [1950], Chorinho do Bruno [1951]. Abel, aliás, compôs uma música para cada filho: o choro Haroldo no Choro, Vania, valsa para sua filha ‘do meio’ e o Chorinho do Bruno, para seu filho, hoje o reconhecido Maestro Leonardo Bruno.

Em 1952, Abel Ferreira forma, com o cantor Paulo Tapajós, a Escola de Ritmos, com a qual viajou apresentando-se por todo Brasil.

Em 1954, gravou o LP Jantar Dançante, onde interpreta, entre outros, seu choro Sai da Frente. No ano seguinte, Abel lança outro LP No tempo dos Cabarés, com mais dois choros de sua autoria: Constantemente e Acariciando. Com seu conjunto, o Abel e seu Conjunto, gravou, no ano posterior, os choros Doce Mentira e Aquela Noite, este em parceria com o violonista Nelson Piló.

Vida em família

É muito difícil encontrar em livros ou na imprensa brasileira registros biográficos sobre Abel Ferreira relacionados a sua família. Nosso diálogo com os dois filhos de Abel, Vania e Leonardo Bruno, durante a produção desta matéria, revelou-nos alguns aspectos mais íntimos a respeito do instrumentista, que ainda não haviam sido registrados em matérias jornalísticas ou em outras fontes.

O Abel criança, filho do humilde sanfoneiro de Coromandel, o Abel jovem, clarinetista da rádio da capital de Minas Gerais, o Abel marido de Maria Auxiliadora, companheiro, compositor de Chorando Baixinho, o Abel, pai de Haroldo, seu primeiro filho, falecido aos quatro anos por problemas de saúde; fato que o marcaria para sempre, o Abel, pai de Vania e de Leonardo Bruno, com os quais deixou um registro fonográfico lendário e que poucos outros pais músicos puderam realizar com seus filhos… o disco Abel Ferreira & Filhos, lançado em 1977 pela gravadora Marcus Pereira.

– O pai Abel foi muitos. No começo, coerente com a educação mineira, era rígido. Nós dois, com temperamentos fortes, entrávamos em conflito. Mas, ao correr da vida, fomos amaciando e nos tornamos grandes amigos, irmãos mesmo. A música ajudou: fazíamos belos duetos com voz-clarinete e parecíamos um só instrumento, com afinação rigorosa, do que ele não abria mão – nem eu. Sem modéstia, de uma beleza incomum. Pena não termos gravado!

Acho que ele gostava de me ouvir. Ele era único como acompanhador, fazendo belas frases ao clarinete que, além de apoiar a voz, ornamentava os solos de quem cantava; ‘falava com o som’. Aliás, no meu modesto ver, essa é uma das funções do som: falar, ‘dizer sem palavras’. Mas não lhe agradava a ideia de eu ser profissional, pelos problemas que a vida artística, inda mais nos anos 50, acarretava para as mulheres. Preferia que eu tivesse uma vida economicamente estável. E, por certo, eu concordei (com a vida estável, embora amasse cantar).

Ele nunca me ensinou música nem a meu irmão.

Abel era autodidata. Nunca cursou escola de música ou clarinete. Aquele som magnífico que tirava foi descoberto e criado por ele.

Em nossa casa havia sempre excelentes músicos tocando, conversando, rindo. Na época, não me lembro disso se chamar ‘roda de choro’. A gente cantava junto, eu, o Bruno, o papai, fazendo vozes. Juntavam-se aos choros, valsas de serenatas, polcas e outras modas, lembranças de Coromandel, além dos ‘causos’ engraçados do interior, uns meio ‘picantes’, muito apreciados por papai.

Sobre a relação do papai com o clarinete, uma situação ficou muito marcada para mim: quando se dedicava a selecionar palhetas para o clarinete, abria umas caixinhas azuis, tirava uma a uma as palhetas, umedecia delicadamente com os lábios, colocava na boquilha, emitia um som. Era com esse som que escolhia as boas e descartava as ruins. Esse trabalho levava horas. Às vezes, tocava uma ou outra frase, triste, muito triste. E eu sentia aquela tristeza.

A relação de Abel com os instrumentos era de profundo amor e cuidado extremo: eram joias valiosíssimas.

Difícil dizer de que estilo gostava. Ainda muito pequena, lembro, à hora do jantar, na Urca, ouvíamos Ravel, Debussy, Chopin, Wagner, Rachmaninov, Sibelius, e eu com três anos já adorava. Em seu repertório havia músicas dos grandes compositores americanos, como Cole Porter, que tocava fartamente nas casas noturnas onde trabalhava. Não perdia oportunidade de executar, por exemplo, Rhapsody in Blue. Costumava ouvir, até como forma de estudo, clarinetistas e saxofonistas da estirpe de Artie Shaw, Benny Goodman, All Galodoro. Também música de todas as origens estavam em suas estantes. Quanto à música brasileira então, tinha certeza de sua missão: correr o mundo, executando, defendendo e divulgando, o que fez indo oito vezes à Europa, duas à União Soviética.

Meu envolvimento com a música veio desde sempre. Recordo-me, tinha 3 anos, estava na casa da avó materna, papai me disse pra cantar “A Falsa Baiana”. Era uma ordem. Cantei e rebolei!

Costumávamos gravar sempre em casa. Era normal. Depois vim a gravar profissionalmente em alguns discos com ele, por volta dos 16 anos, suas músicas com letras minhas.

Marcante foi o disco Abel Ferreira & Filhos, em que gravei a faixa “Acariciando” e “A Casa da Serra”, esta em dueto com meu irmão. A canção vinha da nossa mais tenra infância, de grande lirismo. Provocou enorme comoção. Tivemos de parar várias vezes para chorar.

Papai era orgulhoso de tudo que tinha realizado, apesar da sua origem e enormes dificuldades que enfrentou. Sofrimento de toda ordem, inclusive problema cardíaco que desde cedo enfraquecia-lhe o coração, agravado pelo esforço de tocar instrumentos de sopro. Mas ele nunca se poupou. Tocar era a prioridade em sua vida – lembra a filha de Abel Ferreira, Vania Ferreira.

De Coromandel para o mundo

Em 1957, Abel Ferreira esteve em Portugal, apresentando-se com seu conjunto. Foi a primeira viagem internacional da qual o clarinetista e saxofonista participou.

No ano seguinte, formou, com o maestro Guio de Moraes, Sivuca, Pernambuco do Pandeiro, Trio Iraquitan, e Dimas, o grupo Os Brasileiros, com o qual excursionou por diversos países europeus. Desta turnê resultou o LP Os Brasileiros na Europa, de 1958.

Na década seguinte, Abel Ferreira viajaria mais algumas vezes ao exterior. Com Bené Nunes, em 1960, esteve nos Estados Unidos e no Havaí e, em 1962, com Waldir Azevedo, na Argentina. Em 1964 e 1965, fez outra turnê na Europa e, em 1968, vai à União Soviética, onde ficou surpreso ao saber que era aguardado pelos músicos locais, que já conheciam seu som e trabalho e o trataram como um ídolo. No mesmo ano, apresentou-se na Exposição Internacional de Bruxelas.

Seu LP Chorando Baixinho é de 1962. Sucesso, nele Abel interpreta, com seu conjunto, clássicos do choro, como É do que há, de Luis Americano e Saxofone, por que choras?, de Ratinho, além de Doce Mentira e Doce Melodia, ambas de sua autoria.

Com o Abel e seu Conjunto, o clarinetista viajou para 11 países. Integravam o staff de músicos do grupo, Sivuca, Edinho (Trio Iraquitan) e Pernambuco do Pandeiro.

O choro ferve no subúrbio carioca da Penha

Nos anos de 1970 a maré não estava tão boa para o choro, como nas décadas anteriores. A bossa nova, o bolero, o rock e outros modismos sufocaram a presença do gênero nos estúdios e palcos brasileiros.

Abel Ferreira e muitos chorões sentiram na pele as imposições do mercado. Neste período, Abel disse:

– A música brasileira é uma goiabinha sufocada por uma grande abóbora, que é a música estrangeira.

Nesses tempos de ‘baixa’ para o choro, um grupo de amigos passou a fazer um encontro num botequim da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. A roda acontecia sempre após uma partida de futebol, entre os amigos, e o encontro acabou gerando uma das rodas de choro mais importantes para a manutenção do gênero naqueles anos.

A roda de choro do Sovaco de Cobra passou a reunir a nata do choro carioca, entre eles, Abel Ferreira, Dino Sete Cordas, Joel Nascimento, Zé da Velha, Paulo Moura, Mauricio Carrilho e Raphael Rabello entre inúmeros outros grandes instrumentistas de choro.

Abel Ferreira foi assíduo frequentador da roda de choro do Sovaco de Cobra e ali afirmou sua maestria a cada encontro, a cada aprendizado e ensinamento. Para a roda e os amigos que a frequentavam, Abel compôs o Chorinho do Sovaco de Cobra, gravado pelo bandolinista Joel Nascimento, em seu álbum Chorando pelos dedos, de 1976.

Abel no bar Sovaco de Cobra com Joel Nascimento, Zé da Velha e outros chorões.

Abel no bar Sovaco de Cobra com Joel Nascimento, Zé da Velha e outros chorões.

E, embora o ambiente favorecesse, como nos relata sua filha Vania, Abel não era um típico boêmio.

– Abel não era um boêmio propriamente dito. Ficava tocando com amigos até tarde, mas não se excedia em bebida alcoólica, não fugia aos compromissos. Tinha um comportamento comedido dentro de casa. Nunca o vi embriagado nem usando palavra de baixo calão em casa. Era organizado e responsável com a economia da família. Em geral, gastava o necessário. Lembremos o início de sua vida pobre e carente em Coromandel, onde lhe faltava tudo – diz Vania.

Prêmio Golfinho de Ouro: Reconhecimento depois de uma vida dedicada ao choro

Em 1974, Abel Ferreira participou, com destaque, do LP Brasil – Trombone, de Raul de Barros, pelo selo Marcus Pereira e, em 1976, gravou seu disco Brasil, Sax e Clarineta, pelo mesmo selo, considerado uma obra-prima. Em 1977, gravou com seus filhos Vania e Leonardo Bruno, o antológico LP Abel Ferreira & Filhos.

Com a cantora e Rainha do Chorinho, Ademilde Fonseca, Abel fez uma série de apresentações antológicas pelo Projeto Pixinguinha, da Funarte, em 1977. No mesmo ano, participou de outro importante projeto, o ‘Chorinho na Praça’, onde reuniam-se no mesmo palco, no teatro João Caetano (RJ), Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho, Zé da Velha, Paulo Moura, Copinha e Abel Ferreira. O projeto, que tinha direção de Albino Pinheiro, originou um LP de mesmo nome.

Abel e Ademilde no projeto Pixinguinha.

Abel e Ademilde no Projeto Pixinguinha (1977) [Foto: Acervo Funarte]

Abel e Ademilde cantando Acariciando em um dos shows feitos pelo projeto Pixinguinha.

Abel e Ademilde cantando Acariciando em um dos shows feitos pelo projeto Pixinguinha [Foto: Acervo Funarte]

Abel entre os chorões com os quais fazia o Chorinho na Praça.

Abel entre os chorões com os quais fazia o Choro na Praça.

Um dos momentos mais marcantes da carreira de Abel Ferreira aconteceu em 1978, quando o governo do estado do Rio de Janeiro, através do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ), concedeu-lhe o prêmio Golfinho de Ouro por sua atuação no campo da cultura musical.

Nota publicada num jornal carioca sobre a premiação do Golfinho de Ouro.

Nota publicada em um jornal carioca sobre a premiação do Golfinho de Ouro

Ao receber o prêmio Golfinho de Ouro, Abel deu a seguinte declaração:

– Se existe alguma coisa a qual me dediquei nesta vida foi tocar choro. Então, tenho o dever de tocar bem, pois é a coisa que gosto de fazer – disse.

O prêmio, que pela primeira vez era concedido a um músico popular, foi entregue pelas mãos do crítico musical José Ramos Tinhorão, que mantinha forte admiração por Abel Ferreira.

– Tinhorão sempre foi arredio, carrancudo e cultuava um mau humor até engraçado. Era implacável com os oportunistas que pegavam carona no renascimento do choro em 1975 e o tocavam com sotaque de jazz. Por isso, amava Abel. Lembro-me da noite, no teatro, em que entregou a papai o prêmio Golfinho de Ouro – pela primeira vez concedido a um músico popular.

A afeição de um pelo outro impregnou o palco e o coração de todo mundo – conta seu filho Leonardo Bruno, relembrando o importante dia na trajetória de seu pai.

Em 1978, Abel Ferreira atuou de forma esplêndida ao lado do Conjunto Época de Ouro e Arthur Moreira Lima num show promovido no Hotel Nacional, o qual gerou o disco ao vivo Abel Ferreira, Arthur Moreira Lima e Conjunto Época de Ouro, lançado no ano seguinte pela extinta gravadora Kuarup.

O que diz a ‘Escola do Clarinete Brasileiro’ sobre o legado deixado por Abel Ferreira

Pedro Paes – O clarinetista, saxofonista e compositor Pedro Paes (RJ), em depoimento à Revista do Choro disse ser Abel “seguramente um dos mais influentes instrumentistas de choro de todos os tempos”, e seguiu:

– Acho que Abel Ferreira faz parte de uma linhagem de saxofonistas e clarinetistas brasileiros que tiveram suas formações em bandas de música do interior, serenatas, rodas de choro e trabalharam com uma linguagem tradicional de choro, samba e seresta, que ao meu ver, remonta às origens da música popular urbana brasileira.

Em contraste à atuação de outros grandes músicos, como Severino Araújo, K-ximbinho e Paulo Moura, por exemplo, que tiveram forte influência do jazz na sua maneira de tocar e compor, acho que Abel preservou em seu estilo uma estética e uma certa simplicidade, que ao meu ver tem uma ligação mais profunda com o período de formação do choro enquanto gênero, no final do século XIX, uma época em que a cultura norte-americana ainda não tinha se consolidado no estrangeiro.

Por outro lado, também acho que as composições de Abel tem uma força de originalidade muito grande e, como não poderia deixar de ser, refletem o tempo em que ele viveu, em suas características formais, melódicas e harmônicas.

Acho impossível falar de Abel Ferreira sem incluir a figura que exerceu a maior influência em seu estilo, que foi o Luís Americano, o maior expoente dessa linhagem no início do século XX, e de que o Abel absorveu grande parte de suas características estilísticas, de interpretação e composição, de maneira que podemos considerar Abel um discípulo de Luís Americano, mas que logo se colocou fora da sombra do mestre, chegando com uma personalidade forte e uma outra energia para tocar.

O Índio do Cavaquinho, que era o cavaquinista favorito do Luís Americano, contou-me esta estória que ilustra bem essa ideia:

– Já nos seus últimos dias de vida, Luis recebeu uma visita de Abel em seu leito de morte, e teria dito a Abel: “agora você já pode tocar as minhas músicas a sua maneira, Abel”.

– Como instrumentista, Abel atingiu, ainda em sua juventude, um alto nível de técnica e virtuosismo, tanto no clarinete quanto no saxofone. Uma prova disto está na gravação de 78 RPM pouco conhecida do público, Sururu no Galinheiro, de 1943, onde ele improvisa variações, alternando entre o clarinete e saxofone, ao estilo ‘Urubu Malandro’, que, na verdade, era um clichê em gravações da época, mas onde ele demonstra todo seu repertório de citações, onomatopeias, gargalhadas, chegando até a tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo e, no final,  executa com perfeição um glissando de oitava até o Sol agudo, terminando na nota mais aguda do clarinete, que seria um Dó escrito, pelo menos na época, o que, qualquer um que toca clarinete sabe como é difícil realizar.

Como intérprete, acho que ele deu uma continuidade e um desenvolvimento aos elementos estilísticos que já estavam presentes na forma de tocar de músicos como o Luis Americano e o Ratinho, em termos de recursos expressivos como vibrato, variações de articulação da melodia, ornamentação e flexibilidade. Mas neste campo, para mim, a sua maior qualidade era a divisão rítmica da melodia, que era inconfundível e impossível de ser gravada em partitura de tão livre e pessoal que era.

Como acompanhador, assim como o Luis Americano e é claro o Pixinguinha, ele improvisava linhas de contraponto à melodia principal sempre com a harmonia toda na cabeça, mas com outro grau de liberdade e expressão, que somados a sua divisão rítmica transformavam o assunto dele em poesia pura. As gravações dele com Cartola e Orlando Silva estão entre as minhas favoritas, e acredito que atestam bem esse lado do Abel.

Como compositor, Abel Ferreira foi imortalizado pela sua obra-prima Chorando Baixinho, que por si só, de tão emblemática e perfeita na construção, foi suficiente para auçá-lo à posição de um Jacob do Bandolim, de um Waldir Azevedo, de um Ernesto Nazareth, de um Altamiro Carrilho, enfim… o idiomatismo nas composições para clarinete e saxofone, que é fazer a música explorando as características sonoras e técnicas específicas de cada instrumento, atinge um alto grau de desenvolvimento na obra de Abel Ferreira. Suas composições das décadas de 1950 e 1960 retratam bem algumas tendências da época. Eram choros de duas partes só, usando harmonias inusitadas, harmonias modais, como no choro Doce mentira, por exemplo… melodias meio aboleiradas, que valorizavam mais a expressão do que o exibicionismo técnico, como no choro Acariciando. Enfim, acho que entre os choros do Abel que eu mais gosto estaria o Haroldo no Choro, Uma noite em São Borja e a valsa Luar de Coromandel.

A influência de Abel no choro, na segunda metade do século XX é difícil de dimensionar, de tão grande que é. Neste sentido, ele atuou como uma espécie de ‘meio de campo’ dessa estória toda, fazendo um elo de ligação entre as primeiras gerações de clarinetistas e saxofonistas brasileiros das quais o Luis Americano foi o maior representante, e os que foram chegando depois, como Netinho, Pitanga, o Luizinho, o Mário Pereira, o Celso Cruz, entre outros que gravaram seus discos com uma clara inspiração no estilo de interpretação e de composição do Abel, repetindo o repertório dele e muitos dos clichês que usava. O LP Brasil, Sax e Clarineta, para mim, é uma espécie de bíblia dessa escola e está para o saxofone e a clarineta assim como o disco Vibrações está para a escola de bandolim e o disco da Série Choros Imortais, de Altamiro Carrilho, está para a flauta.

Concluindo, para mim o maior legado que Abel deixou para essa linhagem de instrumentistas brasileiros foi apontar o caminho do coração, do sentimento e das possibilidades de expressão através da sonoridade dos nossos instrumentos e das nossas composições. Digo isso, porquê em muitas das minhas andanças por festivais no Brasil, vejo jovens talentos, principalmente clarinetistas e saxofonistas que estão se iniciando no choro, que acabavam se prendendo a certos procedimentos interpretativos que Abel ajudou a cristalizar, como ornamentações, glissandos, gargalhadas, e um certo anseio de se afirmar como chorões, que acabam transformando suas interpretações em caricaturas, como se esses recursos fossem o objetivo em si, uma espécie de carimbo de autenticidade e, a meu ver, acabam deixando de buscar o que na minha opinião talvez seja a parte mais difícil de se tocar num instrumento, que é expressar todo conteúdo que está escondido em cada nota, que são as ideias e as emoções. Acho que Abel nos ensina essa lição, a de revelar para o público todo esse universo dos sentimentos do qual a música é o instrumento mais sublime.

Paulo Sergio Santos – Considerado um dos maiores instrumentistas do mundo, o virtuoso e genial clarinetista Paulo Sergio Santos foi escolhido pelo próprio Abel Ferreira para ser seu sucessor no choro. Para o músico, as referências sobre o chorão Abel são muitas. Em depoimento à Revista do Choro, Paulo Sergio Santos falou desse amigo por quem nutre grande generosidade.

Nas rodas de choro é comum os chorões comentarem que Abel Ferreira ‘passou o bastão’ da ‘clarineta no choro’ para Paulo Sergio Santos. Referindo-se ao fato, Paulo Sergio Santos diz que não sentiu esse movimento:

– Na época eu não sentia nada. Apenas estudava. Hoje, eu vejo essa atitude do Abel como algo de uma generosidade ímpar. Não sei bem quais motivos o levaram a achar que eu tocaria choro. Acho que ele conseguiu perceber o meu potencial, mas ainda não havia praticamente nada de concreto. Eram possibilidades – conta Paulo Sergio Santos, que segue:

Por ocasião desse programa do Fantástico, lembro-me de ter ido à casa de Abel e ter tocado com ele, na pérgola da piscina, ‘Chorando Baixinho’. Eu era extremamente jovem, uns quinze ou dezesseis anos e ele um homem já bastante maduro. Ele faleceu poucos anos depois desse episódio e lembro-me da forma generosa e respeitosa com a qual ele me tratou e recebeu em sua casa.

Às vezes fico pensando se o Abel foi um profeta. Eu gostava de choro. Na igreja, onde comecei a tocar na banda de música, havia um “chorão” que tinha convivido com Pixinguinha, dentre outros. Ele improvisava nos hinos, dando um tratamento semelhante, e aquilo me fascinou e fui aprendendo com ele.

Lembro que Abel, além de ter uma sonoridade altamente expressiva, tinha um carisma bastante exacerbado. Era muito comunicativo e brilhante.

Abel Ferreira é um verdadeiro ícone do gênero choro. Tocava de forma muito expressiva, tinha uma sonoridade bastante pessoal, como uma marca. Era muito brilhante em temas mais virtuosísticos e tinha uma forma bem pessoal de tocar clarineta. Assim, ao ouvi-lo, poderíamos dizer sem titubear: “é o Abel Ferreira!”

Ele, sem dúvida, foi um dos primeiros clarinetistas a despertar em mim o “como tocar” ao invés de só o “o que tocar”.

Apesar de ter enveredado por outros gêneros que não somente o choro, não posso negar que talvez deva quase que exclusivamente a ele, o interesse que passei a ter pelo gênero. No universo musical multifacetado, eu diria que o “choro” é uma das maiores fatias do meu “bolo” artístico, e fui, sou e sempre serei grato ao Abel Ferreira pela sua generosidade, e aos outros grandes chorões com os quais convivi e convivo – disse o discípulo do mestre Abel Ferreira, Paulo Sergio Santos.

Stanley Carvalho – O chorão Stanley Carvalho, de São Paulo, conhecido no meio musical como Stanley da Clarineta, conheceu Abel Ferreira na casa de um amigo do pai, no Rio de Janeiro, na juventude. Daquele encontro, ainda sem ter certeza de que seria um instrumentista, um chorão, o clarinetista revela ter sido tocado por uma grande referência da qual jamais se esquecera.

– Quando eu estava começando a aprender a tocar clarinete, em 1976, tinha 14 anos de idade. Nessa ocasião, encontrei, na casa de um amigo de meu pai, na Ilha do governador, no Rio de Janeiro, o grande clarinetista de choro Abel Ferreira e, para mim, que procuro tocar este gênero da maneira mais tradicional, no caso, ele é o número um dentre os clarinetistas especializados no gênero choro.

Abel Ferreira é inconfundível quando está solando choro, valsas e até em gravações em outros gêneros musicais como jazz, fox… é inconfundível. Quando ele está tocando, tenho certeza de que o som e a interpretação são de Abel Ferreira pelo seu sopro e a maneira de interpretar as músicas.

Mário Alves de Carvalho, que era trompetista da Banda do Exército, foi quem me iniciou no aprendizado musical. Esta oportunidade que tive com Abel Ferreira, foi mais no sentido de vê-lo tocar, como um instrumentista de clarinete. Eu estava começando a estudar, não imaginava ser um chorão, não imaginava que um dia eu iria tocar numa roda de choro, viver profissionalmente do choro, e posso dizer, que a partir daquele momento tive uma grande influência pela maneira de tocar e até mesmo pela pessoa Abel Ferreira -, diz Stanley, em depoimento à Revista do Choro.

Stanley e Paulo Sergio Santos gravaram especialmente para a Revista do Choro, um em São Paulo, e outro no Rio de Janeiro, um vídeo, fazendo referência a Abel. No vídeo, Stanley e o Trio Cambuci (Cidão, violão de 7, Artur Bernardo, pandeiro) tocam ‘Doce Mentira’, de Abel Ferreira. Paulo Sergio Santos escolheu a clássica composição de Abel ‘Chorando Baixinho’ para prestar sua homenagem ao mestre.

Alexandre Ribeiro – Também da ‘escola da clarineta de São Paulo’, Alexandre Ribeiro, músico de formação erudita, nos conta como aconteceu seu ‘encontro’ com a música popular, especificamente com Abel Ferreira. Veja seu depoimento exclusivo para a Revista do Choro:

– A forma de Abel tocar o instrumento é o que mais marca o instrumentista. Ele usa muito os bends, trinados, vibratos, glissandos, e isso para quem quer tocar choro é uma escola. Quando comecei a conhecer Abel, entrei de cabeça nesta música instrumental. Seus discos são referências que uso em minhas aulas…

Veja mais… o que nos ensinou o clarinetista Alexandre Ribeiro sobre o ‘estilo’, a ‘técnica’ e a estética sonora de Abel Ferreira.

Os instrumentos de Abel

O que todos querem saber é onde estão os instrumentos tocados por Abel Ferreira. Quando perguntei a respeito, Vania Ferreira, sua filha, respondeu:

– Sobre os instrumentos, foi feito um contrato de comodato com o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS/ RJ). O clarinete e o saxofone estavam em exposição permanente no salão do MIS antes do fechamento para a transferência de sua sede. O bandoneon está em minha casa – revela Vania.

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Author: imprensabr

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