PIXINGUINHA E SUA MEMÓRIA DO CARNAVAL CARIOCA


Leonor Bianchi

Depois de dois anos sem carnaval por causa da pandemia do Covid-19, o Rio de Janeiro, onde o Carnaval tem muita força no Brasil, vai realizar a festa de Mômo neste mês, abril, mês de aniversário de Pixinguinha, mês do Dia Nacional do Choro. Os desfiles das escolas de samba estão marcados para acontecer entre os dias 20 e 23 de abril, daqui a uma semana. Dia 23 é aniversário de Pixinguinha, que tem como data na certidão o dia 4 de maio de 1897, dia de São Jorge, um dos mais populares na cultura brasileira, e feriado no Estado do Rio de Janeiro.

De forma inédita o carnaval será realizado em abril este ano, e já que samba e choro estão se encontrando a Revista do Choro pautou as memórias do chorão Pixinguinha, Alfredo da Rocha Vianna Junior, sobre o carnaval carioca.

O artigo tem como inspiração uma matéria publicada no Jornal do Brasil de 11 de fevereiro de 1961.

Pixinguinha nos emociona com suas recordações das batalhas de confete e do tempo em que o carnaval já era sentido nas ruas quatro meses antes mesmo de fevereiro quando os músicos iam para os bares ao ar livre tocar (e ganhavam por isso).

Ele também se lembra da descaracterização urbanística do centro do Rio, responsável pela destruição de praticamente todos os bares nos quais os sambistas e chorões do seu tempo se apresentavam no carnaval. A ausência dos bares acabou transformando a cidade num espaço para festas privadas onde o carnaval foi encontrar sucesso nos clubes e nas sociedades atléticas.

A memória de sua participação nos ranchos carnavalescos aparece nítida, assim como a de sua fantasia de Luís XV, que segundo ele, nunca mais viu nada igual.

Samba não era seu forte, mas entre suas composições para o carnaval, Pixinguinha destacou seu primeiro samba, “Gavião Calçudo”.

Leia agora, na íntegra, a transcrição da matéria cujo título é:

 

CARNAVAL DE PIXINGUINHA É COM CHORO E NO BOTEQUIM

 

 

Segunda-feira de carnaval é o dia em que Pixinguinha e a turma da velha guarda se reúnem para fazer um choro nos moldes dos carnavais antigos, “quando carnaval era carnaval”. O ponto da reunião, desde a demolição da Galeria Cruzeiro, é a batalhas de confetes dos bons tempos, sossego e saudosismo.

Essa foi a única participação de Pixinguinha nos carnavais do presente, além de olhar, segundo declarou ao Jornal do Brasil, com muita saudade, as batalhas de confete dos bons tempos e os desfiles dos foliões desta geração que não conhece o carnaval”.

PELO TELEFONE

Em casa, escrito, Pixinguinha tem muita coisa sobre a transformação do carnaval carioca. Mas, de memória ele se lembra apenas dos fatos mais importantes que ficaram marcados em sua mente e que são recordados numa mesa da Casa Gouveia, na travessa Ouvidor onde, diariamente, toma três whiskys para ajudar a avivar a memória”. Mas de memória, Pixinguinha sabe que o primeiro samba editado e tocado nos salões sociais do Rio de Janeiro apareceu em 1917. Donga, outro destacado membro da Velha Guarda foi o seu autor. Pixinguinha lembra-se apenas do coro do samba Pelo Telefone, que cantou: “o chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”.

SAMBA VIROU MODA

– Até aquele ano, o carnaval carioca era animado pelo choro. Os poucos sambas que apareceram antes não tiveram penetração nos salões sofisticados pelas valsinhas, disse Pixinguinha.

– No ano seguinte, porém, o samba já era moda no carnaval. Fiz o meu primeiro samba, outros autores famosos estrearam como sambistas, entre eles João da Baiana. A grande diferença dos sambas daquele tempo para os mais recentes é que eles não eram explorados pelas orquestras, e sim pelas bandas militares, que tinham grande participação no carnaval.

A FAMA DO SAMBA

– A fama do samba se manifestou rapidamente, continuou. Já em 1920 ele tomava conta das salas de espera dos principais cinemas do Rio de Janeiro, que mantinham o agradável hábito de oferecer música ao público que aguardava o início do filme. Tocando na sala de espera do Cine Phaté, na avenida central, com o conjunto Oito Batutas, eu fui ouvido inúmeras vezes por Rui Barbosa. Ele raramente via os filmes, mas permanecia enquanto o conjunto tocava. Esse conjunto foi o primeiro a entrar num salão de espera de cinema, o que só era permitindo para orquestras.

Pixinguinha esclareceu que os conjuntos dessas orquestras de carnaval acabaram em 1930 porque a prefeitura resolveu cobrar taxas muito pesadas dos cinemas que quiseram manter o luxo.

CHEGOU COM A DECADÊNCIA

Segundo o depoimento de Pixinguinha, o aparecimento do samba, hoje indispensável em qualquer festa carnavalesca, ocorreu exatamente na época em que o carnaval carioca começou a decair.

– O carnaval dos bons tempos iniciou a sua queda em 1923 e em 1930 já se recordava com saudade do carnaval antigo – acrescentou.

– O grande responsável pela decadência da maior festa carioca não foi a falta de ânimo dos foliões. A animação de antigamente era como a de hoje. O que determinou a transformação do carnaval a ponto de chegar ao que é hoje foi a alta do custo de vida. O preço das coisas prejudicou os ranchos e deu origem aos blocos de sujo, que acabaram se transformando nas escolas de samba que hoje existem. O carnaval antigo era caracterizado pelos ranchos e pelos choros tocados pelos conjuntos regionais nas ruas. O povo queria ir à rua para vê-los, dançava e cantava com eles. Não havia bailes internos, o verdadeiro carnaval era de rua, acrescentou.

FALÊNCIA DO RANCHOS

Pixinguinha recorda os carnavais antigos:

– Os conjuntos e as orquestras acompanhavam as pastoras dos ranchos com seus instrumentos e vestidos de seda. Eu saí em apenas três deles, de três a quatro anos em cada um. Tinha uma fantasia preferida, era a de Luís XV. Igual nunca mais vi. Era maravilhoso ver ranchos como o Reinado de Samba, Filhos da Jardineira e Ninho do Amor com os quais de desfilei atravessando animado a Avenida Central. Existiam outros: Ameno Resedá, Os Pepinos, Os Fenianos, Os Tenentes do Diabo, Os Demônios Erráticos, sendo que estes últimos se transformaram em clubes e ainda hoje existem. Não havia blocos carnavalescos. A multidão, na rua, generalizava a alegria. Poucos se limitavam a assistir o carnaval! Todo mundo brincava. Com quarenta contos era vestido um rancho com roupas de reis e rainhas. A vida subiu. Ficou tudo caro e o material usado tornou-se escasso, e ninguém aguentou. Os ranchos tornaram-se raros.

SUJOS VIRARAM ESCOLAS

– O custo de vida não conseguiu de imediato abater do espírito folião do carioca, embora hoje suas consequências estejam prejudicando a festa. O povo queria brincar e não podia gastar, abandonando o ranchos. Os foliões apelaram para os blocos de sujos onde saíam à vontade, sem fantasias caras, mas cantando, acompanhando os ritmos com tamancos e batendo em latas velhas. Os chorinhos gostosos, ritmados não aguentaram. É muito rápido e o povo queria um ritmo mais cadenciado, leve. O samba que já havia fugido tomou pulso, e apareceram as marchas mais rápidas nos blocos, para as escolas de samba foi pulo. Grupos desorganizados vestiram fantasias, compraram instrumentos, abandonando em definitivo os ranchos, e organizaram suas escolas de samba. Os ranchos foram colocados em segundo plano e as escolas continuam até o hoje, prosseguiu Pixinguinha.

SAÚDE NO CARNAVAL

O primeiro grande bloco que surgiu com a falência dos ranchos, de acordo com o velho carnavalesco, foi o “De língua não se vence”, organizado pelo pessoal do bairro da Saúde, na maioria estivadores e que tinha acesso fácil às sedas e às rendas estrangeiras para as suas fantasias.

– O carnaval de rua permaneceu ainda alguns anos. Os bailes internos eram poucos. Os conjuntos de chorões, como eram chamados os grupos de músicos que tocavam choro, permaneceram percorrendo quatro meses antes do carnaval e durante o carnaval, as ruas da cidade fazendo apresentações nos bares que mantinham mesas ao ar livre. Mas depois vieram as demolições para a construção das grandes avenidas da cidade. Os bares que abrigavam os conjuntos e o público desapareceram. Os deputados, as pessoas importantes passaram a contratar os chorões para tocar em suas casas, em festas limitadas aos seus familiares e amigos. Começou a comercialização. Os clubes sociais que durante o carnaval mantinham certa discrição oferecendo audições de valsas aos seus associados abriram os seus salões para os bailes carnavalescos sem os foliões nas ruas, sem lugar para o chopp. O povo sentiu necessidade de lugares apropriados para a alegria. Os comerciantes compreenderam que só venderiam durante o carnaval se instalassem seus bares em salões apropriados para o carnaval. Assim fizeram, o povo aceitou, e o carnaval de rua foi para os salões, deixando apenas a saudade.
Os poucos bares que resistiram à fuga acabaram fechados porque o carioca adotou o feio hábito de beber e depois quebrar os copos e as mesas e brigar durante o carnaval. Esses fatos ocorreram entre 1921 e 1926.

DECORAÇÃO ERA CONFETE

– Nos clubes o samba tomou novo impulso e as marchas-rancho passaram por nova transformação a ponto de sonolentas e vagarosas letras líricas e longas tornaram-se batidas, próprias para as festas internas. Apareceu nesta época uma das mais bonitas páginas do carnaval brasileiro: Linda Morena.

– Até há bem pouco tempo, há 20 anos, ainda existia um pouco das batalhas de confete e serpentina nas ruas, que não precisavam de decoração, como hoje. Essas batalhas começavam quatro meses antes do carnaval começavam e deixavam as ruas coloridas e belas. Coisas assim, hoje não se veem, por mais que se gaste para enfeitar a cidade.

UM POUCO DE PIXINGUINHA

Pixinguinha contou que começou na música, ainda garoto, em 1909, tocando cavaquinho. Em 1911 iniciou o estudo de música, um pouco contra a vontade. Seu pai era flautista e ele também toca flauta. Tocava por amor à música, mas não gostava de estudar música. Em 1914, começou a trabalhar como músico. O seu primeiro emprego foi no Teatro Rio Branco, na Avenida Rio Branco. Gostava de trabalhar, mas quando chegava o carnaval aderia aos choros de rua. Conseguiu se projetar na vida artística como flautista. Em 1921 já estava plenamente realizado quando saiu no carnaval vestido de sertanejo. Como compositor de carnaval conseguiu sucesso em 1929 com o samba Gavião Calçudo.

Na sua opinião hoje não existe carnaval, apenas saudade; a diferença entre os compositores do passado e os de hoje é que os primeiros faziam músicas com sentido, bonitas e líricas, e hoje, quatro versos quebrados, com segundas intenções, formam um samba carnavalesco que bem reflete o interesse comercial dos compositores.

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Fonte: Jornal do Brasil 11/02/1961, Hemeroteca Digital Brasileira.

Foto ilustrativa banner homepage: Pixinguinha, com seu saxofone, vestido de caipira (com chapéu de palha e lenço no pescoço) para sessão de fotos feita para a capa do LP Pixinguinha e sua banda (RCA Victor, 1957), com repertório formado apenas por músicas juninas (MIS_JBandolim_238 / Acervo Jacob do Bandolim / MIS-RJ)

Pesquisa e transcrição da matéria: Leonor Bianchi

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Author: imprensabr