Comemorações aos 170 anos de Chiquinha Gonzaga, celebrados hoje, começa com a primeira apresentação pública de sua peça Festa de São João, escrita em 1884


Leonor Bianchi

A peça de costumes campestres (opereta) que marca o início da obra da maestrina Chiquinha Gonzaga, Festa de São João, escrita em 1884 e inédita até hoje será encenada no próximo dia 27, no Festival de Ópera do Paraná.  

Segundo Wandrei Braga, pianista, biógrafo de Chiquinha Gonzaga, criador do site www.chiquinhagonzaga.com.br e um dos coordenadores do acervo digital de partituras de Chiquinha, que está no site, os pesquisadores que estavam realizando a digitalização dos manuscritos de Chiquinha, em 2014, encontraram a peça ‘Festa de São João’. Wandrei acredita que Chiquinha gostaria de assumir o papel de autora das peças e não apenas escrever suas músicas.

“Acredito que ela gostaria de se colocar também como autora de uma peça teatral,mas se isso não ocorreu, se concretizara agora, dia 27, quando acontecerá em estreia mundial a opereta com 14 números, inédita! Considero um grande presente para a música brasileira e para essa compositora que teve essa história incrível, que foi Chiquinha Gonzaga”, diz Wandrei.

Na época em que foi escrita, a dificuldade em encontrar empresários dispostos a encenar peça musicada por uma mulher, talvez explique a determinação de Chiquinha Gonzaga em escrever ela própria o libreto da peça. O pianista Wandrei Braga chama atenção para ‘a dança de encerramento’ da peça, por representar uma transição dos gêneros musicais usados na época.

“Era inconcebível uma peça que não acabasse com dança de certo apelo sensual, quase sempre um maxixe, a dança excomungada”, comenta Wandrei Braga, que segue…

“Acontece que nessa primeira partitura da maestrina a dança final ainda atende por outros nomes como giga, por exemplo, uma antiga dança de origem italiana em movimento vivaz. No manuscrito, ela anotou “tango final”. Era o maxixe, camuflado, que dali por diante faria a glória da compositora nos palcos populares. Festa de São João ainda não foi encenada”, conclui o biógrafo.

A partitura foi escrita em 1884 e o libreto em 1880. Existem três manuscritos conhecidos da opereta Festa de São João, sendo um deles autógrafo, e os demais predominantemente cópias manuscritas. Embora no final do manuscrito autógrafo conste a indicação “Nº 15 – Repete a giga – final”, não está claro a qual peça a autora se refere para ser repetida. Optamos por terminar a peça no No.14 “Dança dos pastores”, seguindo a solução adotada nas duas cópias manuscritas mencionadas.  

Um legado que ultrapassa 170 anos

A compositora e maestrina carioca Chiquinha Gonzaga (1847-1935) destaca-se na história da cultura brasileira e da luta pelas liberdades no país pelo seu pioneirismo. A coragem com que enfrentou a opressora sociedade patriarcal e criou uma profissão inédita para a mulher, causou escândalo em seu tempo. Atuando no rico ambiente musical do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, no qual imperavam polcas, tangos e valsas, Chiquinha Gonzaga não hesitou em incorporar ao seu piano toda a diversidade que encontrou, sem preconceitos. Assim, terminou por produzir uma obra fundamental para a formação da música brasileira, pela primeira vez apresentada ao grande público por meio do Acervo Digital Chiquinha Gonzaga.Francisca Edwiges Neves Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1847, da união de José Basileu Neves Gonzaga, militar de ilustre linhagem no Império, com a forra Rosa, filha de escrava. A menina cresceu e se educou num período de grandes transformações na vida da cidade. Além de escrever, ler e fazer cálculos, estudar o catecismo, e outras prendas femininas, a jovem sinhazinha aprendeu a tocar piano.

Educada para ser dama de salão, aos 16 anos Chiquinha se casou com o promissor empresário Jacinto Ribeiro do Amaral, escolhido por seu pai. Continuou dedicando atenção ao piano, para desespero do marido, que não gostava de música e encarava o instrumento como seu rival. Inquieta e determinada, Chiquinha se rebelou e decidiu abandonar o casamento ao se apaixonar pelo engenheiro João Batista de Carvalho, com quem passou a viver.

O escândalo resultou em ação judicial de divórcio perpétuo movida pelo marido no Tribunal Eclesiástico, por abandono do lar e adultério. A Chiquinha Gonzaga que emerge no cenário musical do Rio de Janeiro em 1877, após desilusão amorosa, maldição familiar, condenações morais e desgostos pessoais é uma mulher que precisa sobreviver do que sabia fazer: tocar piano.

Ninguém ousara tanto. Praticar música ao piano, ou até mesmo compor e publicar, não era incomum às senhoras de então, mas sempre mantendo o respeito ao espaço feminino por excelência, o da vida privada. A profissionalização da mulher como músico (e ainda mais aquele tipo de música de dança para consumo nos salões!) era fato inédito na sociedade da época. A atividade exigia talento, determinação e coragem – qualidades que não faltavam a Chiquinha Gonzaga.

Sua estreia como compositora se deu com a polca Atraente, cujo sucesso foi mais um fardo para sua reputação. Mantinha-se como professora em casas particulares e pianista no conjunto do flautista Joaquim Callado. Passou a aperfeiçoar sua técnica com o pianista português Artur Napoleão, também seu editor, e a tentar escrever partituras para o teatro musicado. Em janeiro de 1885, Chiquinha Gonzaga estreou no teatro com a opereta A corte na roça, representada no Teatro Príncipe Imperial, ocasião em que a imprensa se embaraçou ao tratá-la – não existia feminino para a palavra maestro. Ao longo de sua carreira de maestrina, Chiquinha Gonzaga musicou dezenas de peças de teatro nos gêneros os mais variados.

Em 1889, regeu, no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, um original concerto de violões, promovendo este instrumento ainda estigmatizado. Era a mesma audácia que movia a militante política, participante de todas as grandes causas sociais do seu tempo, denunciando assim o preconceito e o atraso social. A abolicionista fervorosa passou a vender partituras de porta em porta a fim de angariar fundos para a Confederação Libertadora e, com o dinheiro da venda de suas músicas, comprou a alforria de José Flauta, um escravo músico.

Na virada do século XIX para o XX, Chiquinha Gonzaga criou a marchinha carnavalesca, compondo a música que a popularizaria, Ó abre alas, e obtendo com isso um reconhecimento eterno, pois o carnaval jamais a esqueceu. Aos 52 anos de idade, já consagrada, Chiquinha conheceu aquele que iria se tornar seu companheiro até o final da vida, o jovem português de 16 anos João Batista Fernandes Lage, mais tarde João Batista Gonzaga.

O nome da compositora esteve também envolvido em escândalo, desta vez político, quando seu tango Corta-jaca foi executado no Palácio do Catete, em 1914. Como autora de músicas de sucesso, sobretudo pela divulgação nos palcos populares do teatro musicado, Chiquinha Gonzaga sofreu exploração abusiva de seu trabalho, o que fez com que tomasse a iniciativa de fundar, em 1917, a primeira sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat).

Chiquinha Gonzaga teve seu trabalho reconhecido em vida, sendo festejada pelo público e pela crítica. Personalidade exuberante, ela foi dos compositores brasileiros a que trabalhou com maior intensidade a transição entre a música estrangeira e a nacional. Com isso, abriu o caminho e ajudou a definir os rumos da música propriamente brasileira, que se consolidaria nas primeiras décadas do século XX. Atravessou a velhice ao lado de Joãozinho, a quem a posteridade agradece a preservação do acervo da compositora. 

Chiquinha Gonzaga faleceu no Rio de Janeiro, em 28 de fevereiro de 1935, aos 87 anos de idade.

(Edinha Diniz, 2011)

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Chiquinha com um ano de idade no colo de sua mãe

Ouça neste áudio o que o biógrafo de Chiquinha Gonzaga, Wandrei Braga, nos contou sobre a estreia da peça ‘Festa de São João’, mas antes veja a letra da música, também escrita pela própria Chiquinha:

Nº 1 -DANÇAS DOS PASTORES, instrumental
Nº 2 CORO DE ALDEÃS
Cantamos, cantamos,
A ti São João
Divino Santinho
A nossa canção
Viva São João!
Viva São João!
Viva São João!
Nº 3 CANÇÃO DO VELHO JOÃOZINHO DAS MOÇAS
Ah! Ah! Ah!
Santinho, meu santinho,
Vê se podes serenar
Da minh’alma o sofrimento
E do peito meu penar!
(bis)
Ah! Ah! Ah!
Nº 4 – GRANDE DANÇA DOS PASTORES, instrumental
Nº 5 CORO DE ALDEÃS – Repetição do Nº 2
Cantamos, cantamos,
A ti São João
Divino Santinho
A nossa canção
Viva São João!
Viva São João!
Viva São João!
Nº 6 A TEMPESTADE, instrumental
Nº 7 MAGNÍFICA INVOCAÇÃO
À minh’alma engrandece o Senhor!
E o meu espírito se alegrou
A considerar meu Deus, meu salvador!
(bis)
Nº 8 CORO DOS PASTORES
Senhor Deus ajudai-nos
Neste mundo de tormentos
A felicidade não dura, não dura,
Dura apenas por momentos
Nº 9 LUIZ CANTA
Meu Deus, por fim já creio
Um só momento bastou
Rasgou-se a nuvem pesada
Que a minha crença matou!
Rasgou-se a nuvem pesada
Que a minha crença matou!
No infinito da dúvida
Luziu estrela cadente;
De fé ou d’amor, quem sabe?
E o ímpio tornou-se crente!
Tornou-se crente!
Nº 10 CORO
Alegres cantamos a São João!
Santo querido! Por devoção, devoção!
Preces ardentes, hinos e cantos
Pedindo doces amores santos.
(bis)
Nº 11 ROMANCE DE ROZINHA
1.
Tu palpitas, coração
Sem saber o que querer!
Não percebes se isto assim
É viver ou é morrer.
2.
E vai perdendo a paz
O meu pobre coração
Dá-lhe Tu, meu Deus consolo
Dá-lhe a fé da tua unção!
N° 12 GRANDE DANÇA, instrumental
Nº 13 DUETO DE LUIZ E ROSA
(Luiz)
Amo assim
Amo assim
Minha querida
Minha querida
Amar assim
Amar assim
É doce vida amar
(Rosa)
É doce vida
Amar assim
Oh! Meu querido
Eu amo sim
(bis)
(Rosa)
Diz que me amas?
(Luiz)
Amo-te muito
Amo
(Ambos)
Amo-te!
(Luiz)
Amo assim
Amo assim
Minha querida
Minha querida
Amar assim
Amar assim
É doce vida amar

*Obs. O restante da letra não consta
nos manuscritos conhecidos.
Nº 14 DANÇA DOS PASTORES, instrumental

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Author: imprensabr