O choro marajoara de Adamor do Bandolim e um breve relato da história do choro no Pará – Por Vanessa Trópico. Parte I: No braço de igarapé do rio Limão nasce um chorão no Marajó


No domingo 24 de janeiro de 2016, a Revista do Choro começou a publicar o livro Pensadores do Choro na íntegra para seus assinantes. A cada domingo um novo capítulo vem sendo publicado desde então. Após publicarmos o artigo Tudo Culpa do Choro, do autor Sergio Aires, contemplado pelo prêmio literário promovido pela Revista do Choro e e-ditora] (www.portaldaeditora.com.br) em 2014, postaremos a partir de hoje o texto de Vanessa Trópico vencedor do edital: O choro marajoara de Adamor do Bandolim e um breve relato da história do choro no Pará.

Boa leitura!

capa pensadores do choro reynaldo berto

O choro marajoara de Adamor do Bandolim e um breve relato da história do choro no Pará

Por Vanessa Trópico

Arquivado

O meu chorinho ficou bem mais triste

Levantou-se todo em riste pra poder se defender

De sua forma desarmoniosa,

ele que era todo prosa como pôde entristecer?

Sentiu a falta de todo argumento

 que lhe dava um certo alento e alegrias como o que

 e todo tempo remexendo com as notas

dando voltas e mais voltas como para se esconder

Ficou sem estribilho e sem tema

E com pobreza de poema

Com rimas fracas saídas de um poeta

que não pode se encontrar

Quando a bebida não ajuda

Quando a escala fica muda

Quando o agrado é a meta mas na certa

Que ele vai desagradar

E, no entretanto, ele ficou completo

Sem ter muito de discreto

Como tantos que eu já fiz

E sua defesa que me pareceu perfeita

Pelo júri foi aceita ainda na cópia matriz

E teve o arquivo como pena e destino

Sem ter muito desatino e um final quase feliz.

Alcyr Guimarães

Adamor do Bandolim

Dedico este trabalho a Adamor do Bandolim e ao Projeto Orquestra Choro do Pará.

Agradecimentos

A Deus, por criar pessoas tão maravilhosas como, não em ordem de importância citarei aqui. Meus Pais, Álvaro e Fátima Trópico, meus irmãos, Silene, Fernanda e Álvaro Junior. Amigos de todos os tempos, sambistas e chorões, aos estimados Ciane Guimarães, Bruno Freitas, Fábio Limah, Álvaro José Neto, Izabel Nobre e Sérgio Malcher, em especial àqueles que contribuíram diretamente para esta realização, o Grupo de Estudos de Música Amazônicos da Universidade Estadual do Pará na pessoa do caríssimo Paulo Murilo Guerreiro, por resgatar-me para a pesquisa, onde foi possível recomeçar, a #e-ditora] e a Revista do Choro, pela iniciativa do edital, na pessoa de Leonor Pelliccione Bianchi. Em especial, vai meu muito obrigada a todos os entrevistados: Alcyr Guimarães, Adamor do Bandolim, Carlos Alberto Meireles (Mestre Bochecha), Carlinhos Gutierrez, Nívea Ribeiro e demais chorões citados.

 

Prefácio

Caro leitor, pouca gente sabe, mas o choro, habitualmente conhecido como chorinho, é incontestavelmente o gênero musical mais genuinamente brasileiro dentre tantos outros existentes. Se houvesse uma pesquisa destinada ao público brasileiro, questionando ‘qual o gênero musical mais brasileiro’, possivelmente o samba ou a bossa seriam as respostas óbvias da grande maioria dos entrevistados. O samba, segundo registros existentes na Biblioteca Nacional, tem como marco a música de Donga e Mauro de Almeida “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba gravado no Brasil, datado de 1916. A bossa surgiu bem depois. Teve formação nos anos 50 e popularizou-se nos anos 60 do século XX. Já o choro tem registros da segunda metade do século XIX.

Pixinguinha, de forma simplista e descomplicada, assim definiu: “O choro é um gênero sacudido e gostoso”. Certamente a definição de choro é algo bem mais amplo e complexo, haja vista que vários outros gêneros musicais são executados por chorões valendo-se de uma linguagem sui generis. A qualidade técnica habita neste gênero, tendo em vista que o choro matrimonia uma rica melodia com uma difícil e bem estruturada harmonia, exigindo virtuosismo, habilidade, instinto musical e domínio técnico dos chorões em seus instrumentos. 

O choro não só ganhou pernas ao sair dos limítrofes do Rio de Janeiro, como também adquiriu asas, cruzou fronteiras, atravessou oceanos e hoje tem adeptos e amantes em todo o mundo.

A história do choro no estado do Pará se confunde com a história de vida de Adamor do Bandolim, personagem principal deste texto, que com sua permissão e compreensão, caro leitor, irei apresentá-lo mais adiante.

Quem viveu os anos 70, 80 e 90 do século XX e teve oportunidade de acompanhar o cenário musical paraense, mais especificamente no que concerne ao gênero choro, percebe que existe uma espécie de marco neste cenário, como será descrito logo adiante. Pode-se afirmar com toda certeza e sem medo de cometer qualquer tipo de injustiça, que o choro tem um divisor de águas no estado do Pará, antes e depois do ano de 2006, a partir do projeto “Choro do Pará”, realizado pelo Instituto de Artes do Pará – IAP, idealizado por Paulinho Moura e Jaime Bibas. O projeto tinha como objetivo preservar as raízes culturais da música brasileira, neste caso específico dando ênfase ao gênero choro, levando-o ao conhecimento público em maior escala. O trabalho foi desenvolvido em laboratórios e dividido em naipes, ou seja, os ensaios aconteciam em grupos separados. Os grupos de violonistas, percussionistas, cavaquinistas e solistas, após alguns ensaios separados, juntavam-se para passar os choros já estudados, sempre culminando numa apresentação conjunta e na apresentação de alguns novos grupos de choro que surgiam no decorrer dos módulos.

Nos anos 70, o choro era restrito a pequenos regionais. Entre os virtuosos chorões da velha-guarda no estado do Pará estão alguns chorões já falecidos e outros que não se tem mais notícias, são eles: Aldemir Ferreira, fundador da Casa do Choro; Vaíco, Sabará, Osmarino, Joel, Gino do Cavaco, Gercino, mestre Paulo do Pandeiro, Laureano e Jorge Barão. Os remanescentes da velha-guarda e ainda na ativa são: Adamor do Bandolim, Gerardão, Catiá e Gilson Rodrigues, fundador e proprietário da Casa do Gilson, o atual templo do choro no Pará.

Nos anos de 1980 e 1990 houve uma renovação no choro paraense, surgindo uma segunda linha de chorões, entre eles: Paulinho Moura, Cardosinho, Carlinhos Bochecha, Ademirzinho, Yuri Guedelha, Amarildo, Gerson, Ervin Von Rommel, Josimar Monteiro, Sam, Biratan Porto, Luiz Pardal, Maurinho, Emílio Meninéa, Camundongo e inclusive este prefaciador que vos fala, mas a quantidade de chorões e grupos de choro ainda era contada nos dedos.

A partir do ano de 2006, com o projeto Choro do Pará, percebe-se que a renovação de chorões paraenses tomou uma proporção jamais vista antes. Todos os anos o projeto realiza vários módulos e dá oportunidade para novos músicos de choro que estão surgindo na capital e no interior, possibilitando o surgimento de novos grupos de choros, encontros de chorões e shows em teatros, restaurantes e bares, brindando os amantes do choro não só do Pará, mas em outros estados e até mesmo fora do país. Em 2006 e 2007, o projeto teve como aluno de cavaquinho o australiano Adam May, um mestrando entusiasta e pesquisador do gênero que retornou algumas vezes ao Pará objetivando a conclusão de sua dissertação de mestrado. Hoje, Adam May tem um grupo de choro, em Melbourne, Austrália, bastante atuante, inclusive com gravações de CDs, DVDs e com participações em programas de TV. O efeito multiplicador do projeto Choro do Pará está dando frutos, e muitos chorões que passaram pelas oficinas de choro têm hoje seus nomes reconhecidos no meio musical, participando de gravações de CDs, DVDs, produzindo e participando de shows. O projeto promoveu o surgimento de muitos grupos e chorões.

Os atuais professores travam uma verdadeira luta para aprovar cada módulo, esbarrando na dificuldade de conseguir apoio político e financeiro para os custeios e continuidade desse trabalho de altíssima qualidade.

Cada módulo das oficinas seleciona um repertório que será estudado e fará parte de uma ou mais apresentações em teatros, praças ou palcos de shows.

Depois que o choro ganhou o mundo, ele arraigou-se nos mais longínquos lugares, e a prova viva disso reside no bandolinista marajoara Adamor Lobato Ribeiro, o “Adamor do Bandolim”, ou simplesmente ”Adamor”, um senhor grisalho já na casa dos seus 70, cujo semblante estampa um enorme e farto sorriso de criança. Adamor é caboclo de Anajás, uma cidadezinha no interior da Ilha do Marajó, estado do Pará.

Se alguém, um dia, me pedisse para definir Adamor, eu o simplificaria da seguinte forma: “O Amigo tem a alegria de um moleque marajoara travesso, a bondade de um monge e a gentileza de um Lord; O Instrumentista tem uma incrível destreza nos dedos, cuja execução compara-se a prodigiosidade dos dribles de Mané Garricha; O Compositor tem a maestria de Leonardo da Vinci”.

Faço um breve parêntese aqui para elucidar que o termo “maestria implica em não só fazer o que se sabe para produzir resultados, mas ir além, dominando os princípios subjacentes ao resultado, e é isso que Adamor faz em suas composições e, com ressalva, muito bem.

Talvez o amigo leitor se questione nesse momento: não seria uma analogia um tanto exagerada? O argumento que tenho agora é que só quem conhece a obra e tem o privilégio do convívio com Adamor pode testemunhar que as metáforas e os adjetivos aqui atribuídos cabem como uma luva para definir esse chorão marajoara. Todos os seus choros têm sempre uma historinha, algumas hilárias, outras trágicas, que contam a origem de suas composições e que, em muitas vezes, lhe aparece em três partes num sonho; outras vezes surgem de uma situação vivida; de um momento saudoso; da lembrança da infância; da ausência de um amigo ou parente; da chegada de um neto ao mundo; de um filme imaginário que passa por diante de seus olhos; dos tempos idos; da amada e inesquecível Ilha do Marajó, exaltada em suas obras em sons ecoados de um bandolim que clama por dias melhores para o povo sofrido e injustiçado socialmente, e para a Ilha que carece de preservação.

Eu mesmo tive a grata sorte de presenciar o momento em que uma de suas composições lhe veio em sonho.

Certa vez, fomos convidados para nos apresentar na cidade de Cachoeira do Ararí, na Ilha do       Marajó. Era julho, mês de férias e verão paraense, muitos amigos chorões juntaram-se para fazer a apresentação num grande palco armado na praça principal. Adamor almoçou e, como de praxe, foi tirar seu cochilo pós-almoço. E então, no meio da tarde, escutei Adamor me chamando:

– Carlinhos! Carlinhos! Pega teu violão, cara! Tô com uma música na cabeça com que acabei de sonhar.

Nessa tarde, ele esboçou as notas da primeira parte do choro “Lágrimas da Minha Ilha”.

Outra vez, o celular tocou e no outro lado da linha estava Paulinho Moura, seu amigo e violonista, que ligara para anunciar o nascimento de seu filho, exclamando a seguinte frase:

– Adamor, chegou o Zé!

Dessa situação outra composição nasceu: o choro “Chegou o Zé”, que também será uma das faixas do próximo álbum mais recente de Adamor, intitulado “Lágrimas da Minha Ilha”.

Vez ou outra as composições de Adamor fazem parte do repertório das oficinas do projeto Choro do Pará. Adamor, sempre abrilhanta as apresentações com sua participação especialíssima nos ensaios e shows.

Nem sempre é possível inserir as composições de Adamor nos repertórios, e uma explicação razoável do porquê é bem simples, antagônica a sua forma de compor, que têm característica ímpar, com melodias de difícil execução e harmonias imprevisíveis e complicadas para iniciantes no choro. Mesmo o chorão mais experiente não consegue acompanhar as músicas de Adamor sem um prévio estudo porque elas não seguem uma regra de tons e divisão de partes comumente presentes nos choros dos compositores consagrados. Adamor conseguiu imprimir identidade própria a suas composições, com estilo bem definido e inconfundível, uma pegada amazônica que o diferencia dos estilos do resto do país.

De 2002 a 2004 a PROMARTE produziu o filme ‘Casa do Gilson, Nossa Casa’, do cineasta Chico Carneiro. No filme, o cineasta entrevistou os principais chorões de Belém, e Adamor, em sua fala, fez um depoimento que merece transcrição:

“- Eu vivo a minha vida modesta, eu vivo sem dinheiro, eu vivo duro, mas se Deus do céu viesse lá de cima e dissesse: – vou te dar tudo que tu queres, tudo que tu imaginas de conforto, mas só tem uma condição: tu vais perder a tua musicalidade. Eu responderia na bucha: – Não, mestre, deixe ficar assim como está mesmo, não perca nem seu tempo!”.

Adamor é assim, a música está no ar que respira, no vento que sopra, e a sobrevivência do choro está acima de tudo, até mesmo do seu bem estar. Seu pai, numa atitude protetora, almejava que o filho seguisse a carreira de comerciante porque achava que artista tinha imagem negativa e que todo músico era cachaceiro, mas a paixão pela música falou mais alto, diga-se de passagem, graças à Deus!

Esse músico extraordinário passou por muitas dificuldades, teve que recuperar-se de um acidente que quase o aleijou, submeteu-se a uma cirurgia de catarata e glaucoma que o cegou em um dos olhos, mas o espírito musical continua persistindo e sua obra está longe de ser concluída, porque o desejo de tocar é voraz e a inspiração para compor tem fonte inesgotável.

A obra do caboclo marajoara, aos poucos, está tendo o merecido reconhecimento. Adamor já foi objeto de estudo em trabalhos de conclusões de cursos na UFPA – Universidade Federal do Pará, na UNAMA – Universidade da Amazônia e na UEPA – Universidade do Estado do Pará. Muitos compositores já o exautaram em suas letras e músicas.

No Carnaval de 2015, na Ilha de Mosqueiro, um distrito do município de Belém (PA), Adamor teve uma linda, justa e merecida homenagem sendo enredo de escola de samba do grupo especial de Mosqueiro, a Universidade do Samba Piratas da Ilha, com o tema “Nas Cordas do Bandolim de Adamor, a Força do Chorinho Brasileiro”. Dois dias após o desfile, na terça-feira gorda, o ilustre homenageado fez uma postagem de agradecimentos em rede social expressando sua emoção e gratidão. Confesso que quase chorei ao ler sua mensagem.

Depois de mais de cinco décadas dedicadas ao choro e com vários trabalhos autorais, Adamor do Bandolim tem dificuldades para captar financiamento para lançar seu próximo álbum “Lágrimas da Minha Ilha”, dedicado ao Padre Giovanni Gallo, cuja história de vida é de uma árdua luta pela preservaçao da Ilha de Marajó. O álbum é mais um protesto sonoro e pacífico, mais um apelo aos governantes, mais um grito de socorro.

Não quero perder a “cegueira” típica dos que tem paixão, porque falar de Adamor é como falar de um irmão querido, de um pai amado, de um amigo apaixonante. Uma vez me falaram que eu encontraria todos os tipos de pessoas durante toda a minha vida. Sinto-me lisonjeado por ter a amizade desse ilustríssimo caboclo marajoara, a quem tenho como referência, como estado da arte, permitindo tornar-me não só um músico melhor, mas também melhor pessoa na figura de pai, marido, filho e amigo.

Mas… como um caboclo marajoara tornou-se o maior ícone do choro no estado do Pará? Como surgiu o interesse pela música? Qual foi seu primeiro instrumento? Quando teve contato com o bandolim? Por que a primeira apresentação foi tão inesquecível? Como era a relação com o Pai?  Quantos CDs já gravou? Como e quando saiu de Anajás? Como iniciou a amizade com os chorões em Belém? Vocês irão descobrir as respostas a todos esses questionamentos neste brilhante texto de Vanessa Trópico, a quem agradeço imensamente por ter-me delegado esta honrosa e agradável missão de prefaciá-lo na conta de um presente.

Convido você, amigo leitor, a conhecer um pouquinho do cenário do choro no Pará e emocionar-se com a linda história da vida e obra do caboclo marajoara Adamor do Bandolim.

Carlinhos Gutierrez

 

 Introdução

Tudo que se pode dizer fica pequeno e insuficiente quando buscamos conhecer o destino e os caminhos que foram percorridos pelo artista para exercer sua função. Os aplausos produzem um som que, por vezes, é silenciador de muitas dores, frustrações e desvalorização. O músico popular que busca seu espaço pode ser compreendido como o resultado de um processo de miscigenação entre ele, a dor e o amor pelo que faz. O músico popular brasileiro tem de ser fruto de um casamento feliz entre sua sorte e seu brilhantismo, pois quando isso não ocorre, seu talento fica submerso ao anonimato, ao pequeno e seleto público. É preciso muita coragem para fazer música instrumental genuinamente brasileira num país que tão pouco investe em cultura e em seus próprios talentos. A arte, com seu poder transformador social, ainda é uma realidade relegada a poucos. Como quantificar ou valorar o artista que sacrifica sua vida para se dedicar a função de compor e tocar suas próprias obras?

O choro é para Adamor do Bandolim, o Chorão do Marajó, sua religião, sua forma de expressão perante tudo que o cerca, tudo o que ele acredita esta em harmonia única rascunhada na melodia de suas composições. Existe um Marajó em notas dentro de Adamor, uma revoada de pássaros, uma palafita à beira do rio. O mato, o caboclo, a pobreza, as injustiças sociais da região mais contrastante em exuberância ecológica e pobreza humana são o cenário das inspirações deste compositor que pratica a arte do fazer musical todos os dias, um mestre compulsivo com mais de 200 choros inéditos aguardando a oportunidade de gravação.

Seu choro descritivo é vivo, forte como uma manada de búfalos dos campos do Marajó. Seu som é como o canto do mais solitário Uirapuru. Contudo, guarda no sorriso a mesma esperança do começo, do primeiro cachê ainda menino, do primeiro vinil gravado em 1993. Mesmo que passe seus dias acumulando partituras sobre partituras, sua esperança de ver, ainda em vida, seu trabalho todo gravado, só não é mais perseverante do que seu talento.

Adamor do Bandolim dedica sua vida ao choro; luta pela perpetuação do gênero no estado do Pará; emprega sua virtuosidade para as mais diversas rodas do gênero, entre os melhores chorões da cidade, entre aqueles que desejam ser bons um dia…

Generoso, o chorão, sem dúvida, é o músico que tem o coração na frente de tudo o que faz, é aquele que gosta de tocar junto, que encoraja e que corrige com o próprio exemplo. O mundo que Adamor do Bandolim nos apresenta, espalhado em notas sob pautas musicais, é o reflexo de uma trajetória de experiências marajoaras únicas, resultando nas mais belas composições de choro do estado do Pará e um estilo único no país.

O choro no Pará possui uma história muito rica em detalhes. Englobar a trajetória deste grande Chorão do Marajó e tudo que os chorões de Belém fazem e fizeram torna-se impossível sem cometer algumas injustiças em não citar este ou aquele fato. Devido a isto, busquei nas pessoas mais próximas, nos amigos queridos e nas idas ao “Quartel General do Choro”, a Casa do Gilson, e nos encontros com Adamor do Bandolim, tudo que acredito ser fundamental para apresentar o universo musical fantástico criado pelos mais ilustres instrumentistas da região. Por qualquer possível omissão, peço, desde já, as mais sinceras desculpas aos grupos de choro da cidade não citados neste texto e aos chorões que muito tinham a colaborar para a riqueza deste trabalho, mas, que, infelizmente, não conseguimos encontrar durante o processo de realização deste texto.

Deixo esta obra como um ponto a seguir, com o desejo de que muito seja feito para o registro do chorão Adamor do Bandolim e do choro no Pará.

Este texto é uma janela aberta ao leitor, para que se conheça a história do homem que faz choros sobre o arquipélago do Marajó, um relato de sua vida, de suas inclinações, lutas e inspirações.

Com uma linguagem objetiva e conteúdo construído a partir de textos explicativos de tudo o que foi possível apreender das várias audições musicais, entrevistas com a família de Adamor, os chorões de Belém, amigos e sambistas, divido, com esta obra, o maior presente que a vida musical me proporcionou: a amizade e convivência com o mais genial bandolinista que já conheci, sua musicalidade e afeto que serviram de ponte para tudo o que será apresentado neste texto.

Por aqui é possível “Adamorizar” sim! Nos ensaios do grupo Choro Caboclo, ou em qualquer outro lugar onde se possa tocar e estudar as obras de Adamor do Bandolim.

Dentro de um pô pô pô[1] pelas páginas seguintes, o leitor vai viajar para Anajás, Cachoeira do Ararí, Macapá, Belém, pela vegetação Amazônica, conhecendo as obras de Adamor e um pouco do cenário musical do choro, ontem e hoje, no Pará.

Aos amantes e pesquisadores do choro fica o meu convite para que, no Brasil, se reverbere o choro produzido na cidade das mangueiras e seus arredores e que os livros que, raramente se estendem ao Norte, frutifiquem desta semente.

No braço de igarapé do rio Limão nasce um chorão no Marajó

Adamor do Bandolim nasceu no dia 29 de maio de 1942, dentro de um braço de igarapé, uma pequena ramificação do rio Limão, afluente do rio Guajará, principal da região do Marajó, que fica de frente a Anajás, o maior município do arquipélago e centro geográfico da região. Como ele mesmo diz: “Eu nasci dentro da mata mesmo!”.

Nosso Mestre do Choro era muito ligado ao pai. Por ser primogênito, Osvaldino Nascimento Ribeiro já tinha planos para o filho no comércio, até que a vocação para a música, herdada da família de sua mãe, Celina Lobato Ribeiro, falou mais alto e destinou Adamor a dedicar sua vida à música.

Anajás - Centro geográfico da Ilha do Marajó [Acervo Carlos Macapuna]

Anajás – Centro geográfico da Ilha do Marajó
[Acervo Carlos Macapuna]

Osvaldino era lavrador. Sobrevivia do extrativismo, da retirada de látex da seringueira, coletava sementes oleaginosas para venda, como a semente do patauá[2], a qual idealizava comercializar como azeite de oliva, por ser muito saborosa. Devido ao falecimento precoce de seu pai, Osvaldino assumiu a responsabilidade de gerar o sustento da família. Nunca teve oportunidade de estudar, uma vez que naquela época, décadas de 1920 e 1930, inexistiam escolas estaduais em sua cidade. As instituições de ensino públicas ficavam na região central de Belém ou em outros interiores do estado, construídas ali por seus respectivos prefeitos por localizarem-se mais próximas aos comércios de seus amigos.

Já adulto Osvaldino casou e, posteriormente, mudou-se para a mata para trabalhar, até que seu tio, Cândido Manoel Ribeiro, ofereceu-lhe um emprego de ajudante em seu comércio situado em Anajás. Foi atrás do balcão que aprendeu sobre escrita e matemática, como relata Adamor:

“- Meu pai escrevia tudo errado… ele não tinha regra ortográfica, escrevia do jeito que dava”.

Cândido percebeu que o salário oferecido a Osvaldino não era suficiente para o sustento familiar, então, abriu, à beira do rio, um ponto comercial para que revendesse seus produtos.

Cândido trouxe Osvaldino para Belém e o apresentou a comerciantes. Neste momento os dois eram representantes de produtos, contudo, devido à distância e escassez de representantes na região, não se configurava ali uma competição.

Com o progresso dos negócios, Osvaldino adquire o terreno da casa ‘Sempre Viva’[3]. É nesta casa de comércio que Adamor construiu a maior parte de suas lembranças de infância. A construção erguida por seus tios maternos ainda se encontra na cidade de Anajás, em ruínas. Em sua construção original a casa era coberta e emparedada por palha de Ubuçú[4]. Com a melhora nas condições financeiras da família, a moradia foi reformada em madeira. Sua mãe Celina lhe contava que seu avô, Augusto, tocava piston, um instrumento de sopro da família do trompete, mas Adamor não chegou a presenciar o avô tocando. A música chegara a ele pelos tios maternos, instrumentistas especializados em clarinete e banjo.

Por volta de 1948 ocorreu um acidente aéreo na região da mata. Após os procedimentos de perícia e retirada dos corpos, a população local invadiu e retirou a fuselagem do avião para colher as peças grandes e metálicas, principalmente as partes de alumínio, altamente côncavas, e utilizá-las na construção de toldo para canoas. Um de seus tios construiu, a partir de um desses pedaços, o bojo de um banjo artesanal sobre o qual nosso Chorão, diz:

“- Eu não sei como ele fez, como encorpou o couro… Mas ele fez!”

No intervalo em que o banjo estava sendo construído, seu pai trocou produtos do extrativismo da mata por uma vitrola (acompanhada de discos instrumentais) com um comerciante ambulante dos rios, conhecido pelo nome de regatão.

Aos seis anos de idade Adamor apaixonou-se pela música que ouvia naqueles discos, especialmente os sons de solo, os quais chama de ponteados.

Entusiasmado com a beleza da melodia e por acreditar que se tratava de um menino tocando o choro Encabulado, nosso Chorão, ainda muito jovem, não sabia que ‘Garoto’ era o pseudônimo de Anibal Augusto Sardinha, grande instrumentista e compositor brasileiro. Entretanto, soube com genialidade e poucos recursos absorver nota por nota, incorporando-se ao gênero choro de forma indissolúvel por toda sua trajetória de vida.

Ainda menino, nosso chorão pegou o banjo velho de seu tio Firmilino e dedicou-se exaustivamente à escuta dos discos, a partir dos quais tentava memorizar as melodias e recriá-las em seu instrumento.

Seu pai não o incentivava, pois Adamor, como primogênito tinha a incumbência de ser preparado para assumir o comércio da família. Mas o destino do músico autodidata já estava traçado e não seria na casa ‘Sempre Viva’.

Nosso chorão diz que seu pai desejava apenas que ele aprendesse a cartilha do ABC e fazer cálculos básicos. No comércio de seu pai, ajudava-o a pesar as mercadorias, como arroz, feijão e açúcar. Tudo era colocado em pacotes de 250, 500 gramas e de um quilo. Na época, havia o costume de se fazer a ‘quinzena’, as famigeradas compras quinzenais. Nos intervalos das pesagens, Adamor dedicava-se ao velho banjo, sendo sempre repreendido pelo pai, que considerava a música como sendo algo de pessoas desocupadas. Para ele, tocador de Banjo ou cavaquinho era apenas um alcoólatra, ou, em seus termos, um “bebedor de cachaça”. Osvaldino vislumbrava um futuro mais próspero para seu filho.

Osvaldino Nascimento Ribeiro [Acervo Nívea Guimarães Lobato Ribeiro]

Osvaldino Nascimento Ribeiro
[Acervo Nívea Guimarães Lobato Ribeiro]

E foi desta forma, ouvindo os discos, observando os músicos que tocavam nas festas locais, que se deu o aprendizado musical de Adamor. 

Em 1952, aos dez anos de idade, Adamor mudou-se para Belém, para dar prosseguimento aos seus estudos, realizando um exame de admissão[5] para o ginásio.

De 1953 a 1957 estudou no Colégio do Carmo, na capital paraense, em regime de internato, onde cursou parte do ginásio, pois não foi possível ao seu pai, que se encontrava em Macapá, capital do Amapá – envolvido com a política local, influenciado por seu tio Cândido -, custear a conclusão de seus estudos.

Apenas no período das férias escolares, Adamor podia ter contato com a música por influência do amigo Mundinho Cordeiro, que sempre frequentava, a serviço, a casa ‘Sempre Viva’.

[1] Pequena embarcação de madeira.

[2] Palmeira alta própria da floresta fluvial tropical; semente. Tradicionalmente, o óleo de patauá é empregado pelas comunidades amazônicas nas frituras, e como tônico capilar.

[3] Planta de alta resistência, cuja flor desfalece apenas para que outra possa nascer.

[4] Palmeira abundante nas áreas de várzeas.  Sua palha é utilizada por ribeirinhos para a cobertura de suas casas.

[5] Os primeiros exames admissionais realizaram-se em 1931 e foram extintos em 1971.

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Author: imprensabr