PIXINGUINHA NO FREVO


Leonor Bianchi

Em 2018, pesquisando conteúdo para a Revista do Choro, encontrei um artigo maravilhoso escrito pelo craque Abílio Neto, para o Overmundo. O artigo me chamou atenção pelo ineditismo do tema, ou seja, relacionar Pixinguinha com o frevo. Frevo, que já é há bastante tempo patrimônio cultural imaterial do Brasil, assim como o choro está virando, neste exato momento.

Infelizmenete, contrariamente ao movimento que levou o frevo ao status de patrimônio cultural imaterial, o registro do choro como patrimônio envolve uma série de crimes cometidos justamente pelos demandantes do selo de patrimônio para o choro: a Casa do Choro e o Clube do Choro de Brasília.

Os crimes são muitos; vão desde violência à mulher, passando por descumprimento das regras exigidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPAHN) para tornar o choro patrimônio; não transparência do processo público de registro do choro; impedimento de participação de determinadas pessoas e trabalhadores da ciranda produtiva do choro no processo de registro do choro como patrimônio; impedimento de participação no processo de registro do choro da Revista do Choro e de sua editora; não trânsparência à imprensa (os organizadores das audiências públicas promovidas em 2020 para criar o dossiê de registro do choro – servidores públicos do Museu do Folclore Edison Carneiro, do Rio de Janeiro, vinculado ao IPHAN, se negaram a dar entrevista para a Revista do Choro, explicando como estava funcionando o processo de registro do choro como patrimônio -, favorecimento, dentre uma série de outros crimes. Crimes contra toda a sociedade brasiliera, e todos com verba pública.

Lamentavelmente, no território de Pixinguinha, o choro virar patrimônio é um crime. Já no ambiente de Levino Ferreira, o frevo ser patrimônio, não.

Mas… e o que nos conta o artigo de Abílio Neto sobre a relação de Pixinguinha com este outro gênero musical que já é patrimônio cultural imaterial do Brasil: o frevo? Leia a seguir!

 

“TERIA SIDO MESTRE PIXINGUINHA UM AMANTE DO FREVO?”

O músico brasileiro que não gostar de frevo ou é doente das mãos ou do pulmão conforme o tipo de instrumento que tocar. Há um título desse gênero que explica bem esse fenômeno que o frevo causa nas pessoas, sejam elas músicos ou não. Chama-se “Mexe Com Tudo”, do grande mestre pernambucano Levino Ferreira.

Assim sendo, Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho), um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos e um dos fundadores do que hoje se chama música popular brasileira, não poderia ignorar o frevo.

Interessante que o tipo de frevo mais apreciado pelo público e pelos músicos é sem dúvidas o “frevo de rua”, no entanto, o primeiro frevo gravado no Brasil é um frevo-canção de Nelson Ferreira intitulado “Borboleta Não É Ave”, cuja gravação é de 1923. O primeiro frevo puramente instrumental, “Não Puxa Maroca”, também de Nelson Ferreira, foi gravado seis anos depois, em 1929, pela Orquestra Victor Brasileira que tinha como regente nada mais nada menos do que o nosso Pixinguinha.

Diabos do Céu, lendário grupo do mestre Pixinguinha

No fim do ano de 1932, Pixinguinha resolveu criar o seu próprio grupo de músicos para animar festas carnavalescas e também gravar frevos e marchas, sendo os frevos somente aqueles instrumentais. Quanto às marchinhas, fazia as orquestrações para os cantores da época. Esse seu grupo boi batizado por ele de “Diabos do Céu”, um conjunto de oito músicos, todos oriundos do “Grupo Velha Guarda”. E foi assim que, em 1933, Pixinguinha gravou como arranjador e regente o primeiro frevo instrumental com o “Diabos do Céu”.

Não é preciso que se pesquise muito para se chegar à conclusão de que três dos maiores músicos do século XX eram fãs ardorosos do frevo pernambucano: Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Sivuca. E que os três tinham uma admiração enorme por aquele que foi o mais humilde dos mestres do frevo: Antonio Sapateiro, o homem que levou para a música a simplicidade do nome do seu ofício de sobrevivência que era a arte de consertar sapatos.

Pouco se sabe sobre o recifense Antonio João da Silva, o Antonio Sapateiro. Pesquisei muito para apurar que ele nasceu em 1892 e faleceu em 1940. E que tocou trompete e bombardino na gloriosa Banda da Polícia Militar de Pernambuco sob o comando do Capitão Zuzinha, o aclamado Pai do Frevo.

Esses grandes músicos de que falei achavam que Antonio Sapateiro se destacava pela riqueza melódica de suas composições. Mas que composições eram essas se quase todo mundo só conhece dele a famosa Luzia no Frevo?

Em um trabalho que fiz há alguns anos consegui relacionar mais cinco frevos desse mestre: 1) Melancolia; 2) Metralhadora Pesada; 3) Recordação; 4) Fuxico; e 5) Sorriso de Cecinha.

Quem conhecer muito desse autor se lembra de Luzia no Frevo e no máximo mais dois ou três frevos. O restante ou está em mãos de grandes colecionadores ou só existem em partituras e nunca foram gravados. Acredito que Antonio Sapateiro, pela sua genialidade, não ficou somente na produção desses seis frevos.O mais importante, porém, é que Jacob do Bandolim amava Luzia no Frevo e a gravou. Que Sivuca amava Luzia no Frevo e a gravou. E que São Pixinguinha amava Luzia no Frevo e também a gravou. E da nova geração de grandes músicos, Antonio Nóbrega e Spok amam Luzia no Frevo e a gravaram também.

Mas cadê a gravação de Pixinguinha já que as gravações dos outros são facilmente encontradas?

Do fim da década de 20 em diante, Pixinguinha fez trabalhos como arranjador e regente para os seguintes grupos musicais: Diabos do Céu, Victor Brasileira e Típica Victor. O nome “Velha Guarda” pertencia a Pixinguinha e o nome “Diabos do Céu” era marca da gravadora, mas os músicos eram praticamente os mesmos.
E foi justamente essa pequena orquestra, a Diabos do Céu, que gravou em primeira mão o frevo de Antonio Sapateiro “Luzia no Frevo” com arranjos e direção de Pixinguinha. Isso pra mim é uma coisa muito emocionante!

E vou mais além: a gravação foi realizada em 20/12/1933 e o disco lançado em janeiro de 1934 pela gravadora Victor que naquele tempo ainda não tinha o RCA na frente. Um lançamento para o carnaval daquele ano. A gravação tem, portanto, 77 anos. O importante é que este é o primeiro registro fonográfico brasileiro em que o ritmo marcha-frevo aparece simplesmente como frevo porque na gravação de Não Puxa Maroca ainda era marcha-frevo ou marcha nortista.

Mas quais foram os músicos que atuaram sob a direção e com arranjos de Pixinguinha na gravação de Luzia no Frevo? Bem, esse foi um trabalho de pesquisa muito grande. Eu me deparei até com pesquisa de gente financiada pela Petrobrás que anotou o nome de um músico como João Bagre quando ele se chamava João Braga. Tive que soltar um palavrão! Posso afirmar que o diálogo da composição de Antonio Sapateiro foi feito entre palhetas e metais nas “perguntas” e palhetas e metais nas “respostas”.

Escutem que na primeira parte do frevo dá para identificar mais do que sons de clarinetas e na segunda parte, um saxofone reforçado por um trompete e um trombone, tudo isso acompanhado de uma leve percussão, não lembrando em nada as grandes orquestras de frevo de Pernambuco com seus vigorosos metais, palhetas e uma percussão mais forte.

Se alguém identificar sons divergentes do que eu afirmo acima partindo dos instrumentos citados, é bom se pronunciar logo ou se calar para sempre. Correções existem para ser feitas. Mesmo assim essa gravação de Luzia No Frevo é a que mais me emociona, até porque os músicos eram bons em demasia. Também para trabalhar com Pixinguinha tinha que ser especial!

Eis a relação de músicos da gravação em destaque, pedindo perdão por algum erro que possivelmente exista:
João da Bahiana – pandeiro
Faustino da Conceição – percussão (omelê)
João Braga – clarinete
Jonas Aragão – clarinete
Luiz Americano – saxofone
Bonfiglio de Oliveira – trompete
Vantuil de Carvalho – trombone
João Martins – contrabaixo

São somente oito músicos e fizeram um “estrago” desses! Mas depois desta foto acima do ano de 1934, retratando a formação de Diabos do Céu, quando Pixinguinha aparece junto a um saxofone, eu me pergunto: será que não foi o próprio quem executou parte de Luzia no Frevo e Luiz Americano tocou clarinete? Não se esqueçam de que Pixinguinha foi flautista e saxofonista. Outra coisa, a foto mostra oito músicos contando com Pixinguinha que aparece no canto inferior direito. A foto foi obtida logo depois da gravação de dezembro de 1933, ou seja, no início de 1934.

Então, no final, vocês fiquem com “Diabos do Céu” executando “Luzia no Frevo”, esse frevo deslumbrante de Antonio Sapateiro, o mais humilde gênio do frevo, com arranjos e direção de São Pixinguinha, uma descoberta tão importante para quem gosta de música quanto a da penicilina para quem ama as ciências médicas. A gravação era ruinzinha, afinal é de 1933, mas como modesto editor de áudio, acho que fiz um pequeno milagre!

Graças a Mário Sève, chorão virtuose do sax e da flauta além de pesquisador cuidadoso da música brasileira, com acesso ao baú do grande mestre Pixinguinha, através do seu neto, o cantor Marcelo Vianna, no CD (Mário Sève & David Ganc) que homenageia Pixinguinha e Benedito Lacerda, duas composições inéditas do autor de “Carinhoso” foram lançadas na praça: o baião “Acorda Garota” e o frevo “Água Morna”. Água Morna é um frevo raríssimo na obra de Pixinguinha, talvez o único que compôs, porém tira qualquer dúvida de que ele foi realmente um amante do frevo, caso não bastasse a gravação que comentei acima. O arranjo de “Água Morna” foi de David Ganc, que foi gravado com a família completa do sax. É um frevo de rua pernambucano da melhor qualidade. David Ganc resolveu formar uma mini-orquestra de frevo: toda a família do sax com o auxílio do trio trompete, trombone e tuba. Os metais ficaram a cargo de Roberto Marques, Nilton Rodrigues e Carlos Vega. É melhor mencionar todos os músicos que gravaram Água Morna: Carlos Veja, tuba; David Ganc, flauta baixo, saxofone alto, flauta, saxofone barítono, flautim e saxofone tenor; Mário Sève, flauta, saxofone alto, saxofone tenor e flautim; Mingo Araújo, caixa, surdo, pandeiro e pratos; Nilton Rodrigues, trompete; e Roberto Marques, trombone.

Espero que gostem de Luzia no Frevo, de Antonio Sapateiro, e de Água Morna, de Pixinguinha!”

 

Foto do banner: Acervo Pixinguinha (Instituto Moreira Salles)

 

 

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Author: imprensabr