Leonor Bianchi
A história do Carnaval no Rio de Janeiro começa com os ranchos carnavalescos no final do seculo XIX. “Oh! Abre Alas”, composição de 1899 feita pela chorona Chiquinha Gonzaga especialmente para o cordão carnavalesco Rosa de Ouro, tornou-se um hino em todo o Brasil. Com origem nas marchas portuguesas, que fizeram sucesso no Brasil até a segunda década do século XX, as marchinhas de Carnaval eram criadas em cima de temas atuais e com isso ganhavam muita popularidade, pois eram verdadeiras crônicas urbanas, obtendo muito sucesso num Rio de Janeiro capital do país, que naquele tempo vivia a ideia do progresso republicano e onde também, prosperaram as principais emissoras de rádio, gravadoras e grandes estúdios musicais.
A Jardineira, uma das marchinhas de Carnaval mais cantada em todo o Brasil, quando lançada pela dupla Benedicto Lacerda e Humberto Porto, teve sua autoria questionada, sob acusação de plágio.
Jardineira
Em entrevista para a revista Carioca nº 160, de 12 de novembro de 1938, Benedicto Lacerda, ao relacionar seus sucessos, profetizou que “dentro em breve, porém, juntarei mais um: ‘Jardineira’. Música baseada em motivos da Bahia. Letra de Humberto Porto. Gravou-a, Orlando Silva…”.
Acertou em cheio. Foi, de fato, uma das músicas de maior sucesso no carnaval de 1939 e de muitos carnavais durante décadas.
Porém, os compositores demoraram a comemorar o sucesso alcançado. Ainda em janeiro de 1939 surgiram as primeiras contestações sobre a autoria da marchinha de sucesso.
Foi a própria revista Carioca de 7 de janeiro de 1939 que colocou em dúvida a autoria da música. O título da reportagem perguntava aos leitores se os compositores mereciam aplausos ou assovios, mesmo reconhecendo que a música havia caído no gosto popular.
No texto, o desafio continuava: “A música é de uma velha canção. A letra foi readaptada. Que merecem, em face disso, Benedicto Lacerda e Humberto Porto? Em seguida foram publicadas várias cartas de leitores testemunhando que a música já existia.
José Jeronymo de Souza, morador da Rua Areal de Baixo, 31, na Bahia, argumentando que era embalado para adormecer com essa música, protestou dizendo que a canção já pertencia ao povo e “ninguém se lembra mais do seu autor. É do povo, portanto”.
Outro a reclamar contra Benedicto Lacerda e Humberto Porto foi Altino B. de Sá, morador da Rua Coronel Monteiro, 24, em São José dos Campos. Altino afirmou que desde 1936 já vinha publicando na revista seus protestos contra os plágios no Carnaval. “A marchinha ‘Jardineira’ nada mais é que a reprodução de um sucesso de 1928, que já naquele tempo era calcado numa valsa vienense. Basta lembrar este estribilho: Vem, Jardineira. Vem, meu amor. Vem regar as flores. Com teu regador”.
Dr. Pinheiro, de São José dos Campos em São Paulo, lembra que há quase vinte anos [em 1939] “surgiu aí uma marchinha popular ligeira e harmoniosa. As crianças encantaram-se com a suavidade da música e o doce gorjeio da letra. E nos seus ‘brincos’ infantis, ‘roda’ barulhenta e formada, cantavam, à tardinha, nos jardins floridos”.
“Depois a modinha foi aos poucos desaparecendo, e somente em algumas cidades tristes do interior as criancinhas, de vez em quando, relembravam a ‘tragédia’ da camélia”, explicou o Dr. Pinheiro.
Benedicto Lacerda e Humberto Porto explicam em entrevista a origem da Jardineira
A edição seguinte da revista publicou que Humberto Porto e Benedicto Lacerda foram até a sede da Carioca para dar explicações.
Benedicto começou dizendo que todo mundo queria ser autor da “Jardineira”. “Apareceu nos últimos dias, uma neta ou sobrinha de uma certa senhora de Alagoas, que entendeu também de participar dos meus lucros e glória. Mas a mocinha, que diz ser a autora da ‘Jardineira’, conheceu-a somente em dezembro de 1937. Sendo assim, a ‘Jardineira’ dela é muito diferente da minha”.
Admitiu que “a ‘Jardineira’ que eu apresentei para o Carnaval de 1939, vem de muito longe. É do povo. Pertence ao nosso folclore”. Em seguida, cantou as duas Jardineiras para mostrar a diferença entre elas.
Ainda ao argumentar contra as pretensões da alagoana, afirmou que foi petulância dizer que toda a música seria dela. “Coitadinha… Diz que eu e o Porto colocamos na partitura alguns compassos suaves. Mas o que essa senhora parece desconhecer, é que até uma edição da Livraria Zenith (livraria editora), de Antônio F. de Morais, à rua São Bento nº 40-B, São Paulo, aparece a ‘Jardineira’… Se há motivo de reclamação, ela que se entenda com o Sr. A F. de Morais. Pode ser que ele dê jeito. Entretanto, nada posso garantir…”.
Humberto Porto explicou que a música tem origem no folclore, tal qual Casinha Pequenina, Ciranda, Cirandinha ou Meu Limão, Meu Limoeiro. “Reportem-se à Ilha de Paquetá, da Bahia de Todos os Santos — Itaparica… É noite de Reis. Veremos, então, o ‘terno’ da ‘Jardineira’. ‘Ela’ vem na frente. O cortejo em coro, pergunta-lhe:
‘Oh! Jardineira, por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?’
Ela, sozinha, responde:
‘Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros
e depois morreu…’
E toda gente:
‘Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros
e depois morreu…’”.
Porto conclui esclarecendo que “eu não disse que a melodia é ‘minha’. Eu a trouxe para o Rio, com um ritmo diferente”.
Em outra entrevista, Humberto Porto afirmou ter recolhido o refrão original na localidade de Mar Grande, na Bahia, em dezembro de 1937.
Ainda em 1939, surgiram outros pretendentes a autores da Jardineira, entre eles o padre gaúcho Frederico Manthe, que apresentou uma coletânea de “Hinos e Canções” editada pela Livraria do Globo em Porto Alegre, contendo a música.
Uma artista popular alagoana também reivindicou ser autora da música: Maria da Dores Corrêa Xavier. Segundo a revista O Malho de 26 de janeiro de 1939, ela afirmava que teria composto a Jardineira em 1906, na cidade de Piranhas, em Alagoas, onde dirigia um conjunto de ‘Pastorinhas’.
O Malho avaliou ainda que, “as provas da sua afirmativa são ingênuas. Mas os advogados Costa Pinto e Costa Magalhães aceitaram a causa de d. Maria das Dores e vão tomar as dores por ela, exigindo de Benedito Lacerda e Humberto porto uma indenização de vinte contos de réis…”.
Na verdade, Humberto Porto, que era baiano, e Benedicto Lacerda, macaense (RJ) nunca poderiam ter sido acusados de plágio ou coisa parecida, como explicou Oswaldo Santiago na revista O Malho de 12 de janeiro de 1939. O crítico esclareceu que no texto que está na capa da música impressa, eles deixam claro que é uma canção com que as mães embalam os filhos na Bahia, e que eles somente “apresentaram” a marcha.
Como se tratava de obra de domínio público, sem autor conhecido, a lei permitia a adaptação que fizeram para o ritmo carnavalesco carioca, além de outras modificações na letra e na música.
A polêmica ainda se arrastou por anos e novas informações foram surgindo.
Em O Jornal de 23 de janeiro de 1966, o jornalista Jota Efegê publicou um artigo informando que foi Hilário Jovino Ferreira, um pernambucano criado na Bahia, quem levou a Jardineira para o carnaval carioca.
Jovino, um dos sambistas pioneiros do Rio de Janeiro, criou um o rancho A Jardineira em 1899. A música ele aprendera na Bahia, vendo os desfiles dos ternos de reis.
Com o sucesso do rancho do Jovino, logo surgiram outros abordando o mesmo tema. Até 1910 se conhecia no Rio de Janeiro os ranchos “A Flor da Jardineira“, “As Filhas da Jardineira” “O Triunfo da Camélia“.
Uma pesquisa realizada por Almirante para o seu programa “Curiosidades Musicais” descobriu que a música também existia em outros estados, com algumas adaptações. Mesmo no Rio de Janeiro existia também uma versão do velho Candinho, identificado como um tradicional folião carioca de diversos ranchos.
Como se percebe, A Jardineira teve mesmo origem no folclore brasileiro, provavelmente com mais enraizamento na Bahia e no Rio de Janeiro.
Quanto os pretendentes a autores, incluindo a alagoana de Piranhas, não se sabe o resultado de suas reivindicações. Entretanto, como a música continua ser divulgada tendo como compositores (ou apresentadores) Benedicto Lacerda e Humberto Porto, pode-se concluir que nada conseguiram.
Ouça duas gravações de A Jardineira com Orlando Silva, a primeira de 1938.
A Jardineira
Benedicto Lacerda e Humberto Porto
Oh jardineira
Por que estás tão triste
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia
Que caiu do galho
Deu dois suspiros
E depois morreu
Vem jardineira
Vem meu amor
Não fique triste
Que este mundo é todo teu
Tu és muito mais bonita
Que a camélia que morreu