A discografia de Jacob do Bandolim comentada por Sergio Porto: a primeira discografia comentada no Brasil


Leonor Bianchi

A Revista da Música Popular, editada pelos jornalistas Lucio Rangel, (17/05/1914 (RJ) – 13/12/1979 (RJ) – ano que vem faz 40 anos de sua morte -, e Pérsio de Moraes, entre 1954 e 1956, é até hoje uma das maiores referências para quem estuda a construção do pensamento crítico sobre a música popular brasileira da segunda metade do século XX pra cá.

Nos (apenas) 14 números que circularam, a revista teve artigos assinados por nomes como Sérgio Porto, Ary Barroso, Fernando Lobo, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Nestor de Holanda, Jota Efegê (João Ferreira Gomes), Guerra Peixe, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Irineu Garcia, Mariza Lira.

Integravam o corpo de desenhistas e ilustradores da publicação outra constelação brilhante: Di Cavalcante, Caribé, Millôr Fernandes…

sergio porto comenta a discografia de jacob do bandlim na edicao n 10 da RMP outubro de 1955

Assinavam artigos sobre todo o tipo de música que estivesse sendo apresentada no Brasil fosse ela brasileira ou não, mas sempre estabelecendo um olhar crítico sobre o ‘produto estrangeiro’ em nosso país. A mistura entre jornalistas e maestros, instrumentistas, ‘gente da música’ na redação serviu para amalgamar definitivamente a prática da crítica musical nas redações jornalísticas dos jornais brasileiros, que passaram a agregar em seu corpo redacional jornalistas especialistas em crítica musical.

Em 1955, em seu segundo ano de circulação e com plena aceitação do público, a revista deu capa a Jacob do Bandolim e nada menos que Sergio Porto comentou a discografia completa gravada pelo bandolinista, desde 1947. A discografia comentada segue ainda em outras edições da revista.

Interessante lembrar que neste tempo ainda não haviam descoberto a primeira gravação de Jacob com a interpretação de Aracy de Almeida em ‘Se alguém sofreu’. A música foi a primeira composição de Jacob do Bandolim e não foi um choro. Foi gravada pela Victor em 1938.

Como escreveu para a Revista do Choro o pesquisador do Instituto Jacob do Bandolim, Sergio Prata:

“Vários historiadores citam que a estreia de Jacob do Bandolim em disco teria se dado em 1941, como acompanhante de Leva meu Samba (Odeon, nº 11.955), de Ataulpho Alves e, como solista e compositor, em 1947, com o seu choro Treme-Treme (Continental, 15.825, Out/ 47), mas, aqui nesse ponto a história tem que ser recontada, pois Jacob, que deixou essas informações registradas em vários depoimentos, nos pregou uma peça.

Na verdade, a verdadeira estreia fonográfica de Jacob se deu muito antes e foi descoberta durante o levantamento que o IJB realizou junto às editoras para lançar o Caderno de Composições de Jacob do Bandolim.

A estreia de Jacob no mundo fonográfico se deu como compositor, em 1938, e acreditem, gravado por Aracy de Almeida, a maior cantora dos anos 30, ao lado de Carmem Miranda. A composição, um lindo samba, chamava-se Si Alguém Sofreu (Victor, nº 34.309, maio de 1938) com letra e melodia de Jacob, fato que, inexplicavelmente, ele pouco comentou em toda a sua vida.

Para termos a real dimensão desse feito, basta lembrarmos que Jacob, em 1938, aos 20 anos, ainda era um iniciante no rádio, pouco conhecido, e Aracy de Almeida, uma celebridade, tanto que, três meses antes de gravar o samba de Jacob, havia gravado Último Desejo, de Noel Rosa (Victor, nº 34.296, fevereiro/1938) que se tornou grande sucesso nacional.

Rótulo do disco da Victor com a gravação "Si alguém sofreu'.

Rótulo do disco da Victor com a gravação “Si alguém sofreu’.

Certamente, um dado que pode explicar esse encontro genial, é que Jacob do Bandolim e seu conjunto eram contratados da Rádio Guanabara, e costumavam acompanhar Aracy de Almeida em suas apresentações na rádio, o que deve ter aproximado Jacob do Bandolim da “Dama do Encantado”.   

Primeira discografia comentada

Destaco o comentário de abertura que Sergio Porto escreveu dizendo que esta seria a primeira discografia comentada por alguém e publicada em uma revista no Brasil, sendo então uma tarefa de difícil acerto, podendo ele incorrer em alguma falha deixando de mencionar algum disco ou músico.

“Jacob Bittencout, bandolinista consagrado, estudioso e pesquisador renitente do populário nacional, compositor de mérito é um homem para quem o crime compensa. E isto explica-se: Jacob não é apenas músico, mas também o escrivão da 19a Vara Criminal. Mora em Jacarepaguá, tem um fabuloso arquivo musical e é fotógrafo amador.

A discografia abaixo está completa, não faltando um único dos discos que gravou desde 1947 em seu próprio nome. Antes de ‘Treme-treme’, está claro, fez parte de conjuntos que estiveram num estúdio de gravação, aquele cavaquinho que faz a introdução no disco de Ataulfo Alves e suas Pastoras – ‘Ai que saudades de Amélia -, é tocado por Jacob. Aqui, no entanto, estamos apenas citando e fazendo rápidos  comentários sobre as músicas em que foi solista e que constam nos catálogos de discos no seu próprio nome.

Como este tipo de discografia  – uma discografia comentada -, está sendo feita pela primeira vez no Brasil, o leitor há de desculpar – estamos certos -, um ou outro detalhe que deixamos sem comentário, este ou aquele disco onde não foram citados todos os músicos que formavam o conjunto para a gravação.

Graúna

No verbete sobre a gravação da música Graúna, do violonista João Pernambuco, feita em 1950 por Jacob e os músicos que o acompanhavam, disse Sergio Porto.

“O “riff” de sustentação dos violões lembra aquele de Pixinguinha no seu samba de partido alto ‘Patrão prenda seu gado”. O cavaquinho de Canhoto está ótimo, como ótimos são os solos de Jacob, separados pelo citado “fiff” dos violões. este choro, cujo autor é João Pernambuco, divide com ‘Remeleixo’ e ‘Língua de preto’ e algumas mais a honra de ser dos melhores números em toda discografia de Jacob”. 

O pandeiro de Gilson em boa forma em ‘Pé de Moleque’

Nesta faixa Porto destaca a presença da percussão no pandeiro de Gilson, integrante do Época de Ouro antes do Jorginho do Pandeiro, que manteve-se na formação do ‘Época’ até o ano assado, quando de seu falecimento. Atualmente o pandeiro do Conjunto Época de Ouro é tocado pelo filho de Jorginho, Celsinho Silva.

“Chorinho alegre e brejeiro da mesma linha de ‘Treme-treme’ e ‘Cabuloso’. Jacob que é o autor, sola bandolim e é seguramente apoiado pelo regional. O pandeiro de Gilson está em boa forma”.

Trecho da página onde fora publicado o artigo de Sergio Porto na Revista da Música Brasileira. Todos os 14 volumes da revista foram reeditados em livro (fac-símile) pela Funarte, em 2006.

Trecho da página onde fora publicado o artigo de Sergio Porto na Revista da Música Brasileira. Todos os 14 volumes da revista foram reeditados em livro (fac-símile) pela Funarte, em 2006.

Língua de Preto

Neste comentário, Sergio Porto expressa a complexidade de executar ao bandolim (em solo) o choro de Honório Lopes, e exalta a harmonia entre o solo do bandolim de Jacob com o que ele chama de ‘soberbo acompanhamento de cordas e breques e pautas bem dosados.

“Este choro é de difícil execução em cordas, como são todas as melodias escritas para piano e tocadas em oitavas. Se para o piano, nas oitavas, a posição dos dedos não muda, no bandolim, ao contrário, cada posição é feita pulando uma corda, quando os dedos do instrumentista passam da primeira e terceira para a segunda e quarta, voltando às primeira e terceira, e  assim sucessivamente”. 

Encantamento e a última vez que Cesar Faria e Fernando Ribeiro tocaram juntos

E por fim, pois não se trata de comentar todos os comentários de Sergio Porto… chamou-me atenção ao reler a discografia, sua nota para a música ‘Encantamento’, uma valsa de Jacob, na qual Porto destaca as influências musicais e sonoras que podem ser percebidas mais facilmente na obra do bandolinista. Neste comentário, ele evidencia a última vez que os violonistas Cesar Faria e Fernando Ribeiro tocaram juntos.

“Ouvindo-a, firma-se mais ainda o conceito de que o autor é fortemente influenciado pelos autores de outros tempos, como Ernesto Nazareth, Eduardo souto,Mario Penaforte, e outros que tais. Os violões, aqui pela última, seria Cesar e Fernando. O primeiro deixaria de tocar profissionalmente e o segundo morreria pouco depois’.

imprensabr
Author: imprensabr