Benedicto Lacerda: O sabiá da flauta


Por Leonor Bianchi

Flautista, compositor, arranjador, cantor, líder da classe artística musical, dirigente de entidades de classe, maestro, defensor dos direitos autorais, campeão de Carnaval. Um dos maiores flautistas da música brasileira foi Benedicto Lacerda. Gênio no instrumento, além de exímio chorão, fora também compositor de músicas carnavalescas que marcaram época e fazem sucesso até hoje. Este mês, lembrando a data de seu nascimento, 14 de março, a Revista do Choro traz em sua matéria de capa as estórias e a história do chorão Benedicto Lacerda.

Matéria sobre Benedicto Lacerda na Revista do Rádio, depois de sua morte em 1958. Detalhe para a legenda da foto.

Matéria sobre Benedicto Lacerda na Revista do Rádio, depois de sua morte em 1958. Detalhe para a legenda da foto.

A flauta é um dos instrumentos de maior destaque no choro. Desde os pais do gênero: Joaquim Callado e Viriato Figueira da Silva, que eram flautistas, a Pixinguinha, outro gênio chorão que se tornou notável por suas peripécias à flauta.

Os anos de 1920 revelaram um novo flautista no cenário da música brasileira, não apenas no choro. Fluminense de Macaé, morador do Estácio, Benedicto era intimamente ligado ao samba.

Nascimento e infância pobre

Benedicto Lacerda nasceu em Macaé, litoral norte fluminense do estado do Rio de Janeiro. A pequena cidade recebeu em 14 de março de 1903 o menino Benedicto Lacerda, filho de Maria Louzada e de pai, então na época desconhecido. Hoje sabemos que é filho de Mathias Lacerda.

Imagine, em 1903, numa cidade de interior, como não deve ter sido a luta desta mãe solteira. Com o apoio da Irmandade de São Benedicto, da igreja matriz de São João Batista, a mãe, Dona Maria Louzada conseguiu encontrar meios de sobreviver e sustentar-se com seu filho.

Em Macaé, o pequeno menino teve sua primeira iniciação escolar, mas as dificuldades eram quase intransponíveis para sua mãe, desamparada. O menino sofria de desnutrição, tendo até dificuldades para levantar-se e andar. A mãe não conseguia mais trabalho e assim foi compelida a mudar-se de Macaé em busca de oportunidade de trabalho na capital federal, Rio de Janeiro.

Em depoimento à Revista Carioca, em 1938, Benedicto Lacerda fez o seguinte relato:

– Nasci em Macaé, estado do Rio, a 14 de março de 1903. Ninguém dava nada por mim. “Coitadinho” – diziam as vizinhas. – “Esse garoto não vai muito longe”… Fui. Um belo dia, o pessoal lá de casa não pode mais com a minha vida. Resolveram que eu deveria estudar. As aulas terminavam sempre às três horas. Entretanto, nunca saí antes das cinco. Vocês sabem… lições erradas… brigas com os outros garotos… enfim, o diabo. Se conto este fato, não é para tirar patente de vadio. Não. É para explicar uma coisa: lá em casa, ninguém se interessava por música. Porém, a professora era uma flautista exímia. Enquanto me dava ‘guarda’, ia matando tempo. Fazia cada solo! Só se vendo!… Dato daí. Nunca mais perdi o segundo horário…”

Foi na escola, em Macaé, e com a Sociedade Musical Nova Aurora, hoje banda centenária da cidade, que o menino Benedicto percebeu a música. Ainda criança, descobriu a flauta com sua professora que tocava doces melodias ao instrumento na sala onde os alunos cumpriam os famosos castigos escolares como penitência.

Sede da Banda Nova Aurora, em Macaé

Sede da Banda Nova Aurora, em Macaé

A banda ficava próxima a casa onde o menino morava e Benedicto, encantado pelos sons dos instrumentos que ouvia em todas as festividades e ocasiões simbólicas para a cidade, aprendera desde cedo a apreciar a banda e sua sonoridade. A Sociedade Musical Nova Aurora era tão impactante para os ouvidos do pequeno Benedicto, que ao passar, deixava-o em pleno estado de alegria e êxtase.

– Transferiram a professora de Macaé. A substituta não sabia nada de música. Formava no páreo do pessoal de minha casa. Fiquei decepcionado com a criatura. Resolvi dar o fora.  Precisava conhecer outros lugares.

Assim Benedicto narrou à Revista Carioca como foi sua saída de Macaé e ida para o Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro – Bairro do Estácio de Sá

Com 10 anos, o menino Benedicto Lacerda é levado para o Rio de Janeiro, mais precisamente para o bairro do Estácio. Ali, na juventude, encontrou o ambiente ideal para tornar-se mestre do samba e do choro, ás da flauta e compositor sempre inspirado.

Benedicto passou sua adolescência soprando uma flautinha de lata, que sua mãe lhe dera de presente. Dona Maria Louzada trabalhava em casa de família e sempre levava o menino, que ficava tocando a flautinha o dia inteiro, enquanto a mãe trabalhava.

Desde rapazote, Benedicto buscou ajudar sua mãe, pois levavam uma vida muito simples e humilde. Naqueles tempos, década de 1910, a cidade do Rio de Janeiro, hoje com 450 anos, vivia o auge de um progresso ilusório, e arranjar um lugar para fazer um bico era a coisa mais fácil no centro da cidade. Benedicto aprendeu rapidamente como se virar, e naquele Rio antigo, de aristocratas republicanos, ele foi um jovem engraxate fazendo concorrência aos italianos, fundadores e dominadores do ramo. Depois de engraxate, o jovem, que sempre encontrava tempo para tocar sua flauta de lata nas horas vagas, foi trabalhar numa mecânica. Com mais esta experiência e lutando para ajudar nas despesas da casa, sagaz, o jovem percebeu, demonstrando desde já seu ‘tino’ empreendedor (que mais tarde viria á tona com todo vigor) que vender números atrasados de jornais, seria um diferencial. E foi com este emprego, que ele fundou no Brasil essa ideia, a de vender número atrasados de periódicos. E vendeu. Vendia e cada vez mais vendia.

E o jovem Benedicto ia assim dando dignidade a sua vida e a de sua mãe. Benedicto trabalhou ainda na Light, como condutor e cobrador de bonde, na Cia. do Gás, em comércio de tecidos. Ele vendia tantos metros de tecido, que chegou a criar um calo no dedo em função do uso diário da régua para medir o comprimento do corte, como conta Sidney Castello em seu livro ‘Benedicto Lacerda: o flautista de ouro – um gênio na orfandade’.

Benedicto Lacerda na juventude

Benedicto Lacerda na juventude

O fogo da música

“Minha flauta querida,

Alegria da minha vida,

A tua voz é um favo de mel

Vives cantando comigo,

E eu sonhando contigo

Oh! Companheira fiel”

 

Já tomado pela música e evoluindo a passos largos em sua flauta, Benedicto inicia sua caminhada profissional na música. Participa de diversos conjuntos, como o Turunas da Mauricéia, Bohemios da Cidade, Original Choro (este o primeiro conjunto criado por ele) e Regional Esplêndido.

Benedicto, enquanto morador do Estácio, bairro conhecido por revolucionar o samba através de seus mestres ou professores (como preferiam falar naqueles tempos), tomava parte em batucadas, rodas de pernadas, macumbas e estava presente com sua flauta em todos estes ambientes, o que o tornou o introdutor da flauta no samba.

Vida musical e militar   

Em 1922, Benedicto Lacerda alista-se voluntariamente na Polícia Militar do Distrito federal, com o intuito de tocar na banda de música da corporação, que era, na época umas das mais respeitadas. Organizado, quase beirando o pragmatismo, ao chegar no ambiente militar, Benedicto ao invés de estranhar a ordem, sentiu-se em casa. Estava sempre com seu serviço em dia, sua farda intacta, seu instrumento luzindo e afinadíssimo, e cumpria todas as obrigações da vida no quartel com grande dedicação. Com a banda militar Benedicto se alfabetizou musicalmente, aprendendo a ler e escrever música, rapidamente. Teve aulas com os superiores da corporação durante todo tempo em que serviu à Polícia Militar, de 1922 a 1925.

Berço da Malandragem carioca do início do século XX, o bairro do Estácio, no Rio e Janeiro, foi a grande escola musical de Benedicto Lacerda, que ao conviver com a nata da malandragem, percebeu que ela pertencia sim à realidade da vida, mas que se quisesse ‘crescer’ seria somente pelo trabalho. De sua turma de bambas, compositores e farristas do Estácio, Benedicto era o único que mantinha emprego fixo.

Benedicto Lacerda e seu conjunto Gente do Morro

E foi no berço do samba, no Estácio, que Benedicto Lacerda organizou um conjunto musical profissional. Buscou entre seus parceiros do bairro onde crescera, os melhores músicos para integrar seu conjunto, que teve a seguinte formação: Alcebíades Barcelos, o Bide, e Gastão de Oliveira, nas percussões; Russo, no pandeiro; Jacy Pereira, o Gorgulho, e Henrique Brito, nos violões; Júlio dos Santos, no cavaco; Juvenal Lopes, que anos depois foi um dos presidentes da Mangueira, escola de samba tradicional do Rio de Janeiro, no chocalho, e ele próprio, Benedicto Lacerda, na flauta.

O pianeiro, compositor, considerado naquele tempo o Rei do Samba, José Barbosa da Silva, Sinhô, ao ver o grupo de Benedicto tocando, disse:

– Benedicto, você não nasceu no morro não sei por quê”, e batizou o grupo de Gente do Morro. O Gente do Morro se caracterizava pelo uso de instrumentos de percussão, alguns deles criados por seus integrantes, como era o caso do surdo criado por Bide, junto dos instrumentos típicos do choro, como a flauta, os dois violões e o cavaquinho.

A criação do grupo Gente do Morro foi uma das coisas mais revolucionárias que Benedicto Lacerda fez em termos de influência e criação do paradigma da música popular brasileira. O samba ainda estava impregnado do maxixe e o choro estava começando a sua relação com o pandeiro, quando o Gente do Morro surgiu, misturando e amalgamando tudo sob o bom gosto e a batuta de Benedicto Lacerda.

O grupo gravou vários discos pela gravadora Brunswick, durante dois anos, de 1930 a 1932, com Benedicto sempre à flauta, regendo e cantando no conjunto. Nos dois anos seguintes, Benedicto passa a gravar com o Gente do Morro pela Columbia. Neste tempo, o crooner do conjunto era Moreira da Silva. Cantaram ainda nessa fase do Gente do Morro, Léo Vilar, Murilo Caldas, irmãos Tapajós, entre outros.

O Gente do Morro tem certidão de nascimento e morte. A de nascimento foi lavrada por Sinhô; a de morte, por Noel Rosa. A de nascimento aconteceu quando o rei do Samba Sinhô batizou o grupo. A de morte aconteceu em 1934, durante a conhecida excursão ao norte do estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, Noel Rosa, então parceiro do conjunto Gente do Morro, e integrante da trupe da viagem, causou desordens de grandes proporções negativas para o grupo, fazendo com que o ‘Gente’ tivesse que sair praticamente fugido de uma das cidades pelas quais estava excursionando.

O Regional de Benedicto Lacerda

Foi após esta viagem ao norte do estado do Rio que Benedicto teve certeza que aquele tempo de irresponsabilidades teria que acabar. Não havia mais espaço para a falta de profissionalismo, afinal o mercado das rádios crescia, afirmava-se e precisava de profissionais. Benedicto volta dessa viagem sonhando em criar um outro conjunto, desta vez para trabalhar profissionalmente como nunca antes, sem espaços para amadorismo.

Nascia, então, em 1934 o Regional de Benedicto Lacerda. Chamado antes de ‘Grupo Benedicto Lacerda’, teve também outros nomes: Benedicto Lacerda e Grupo Regional; Grande Conjunto de Benedicto Lacerda; Benedicto Lacerda e seu Conjunto, até chegar ao nome que o flautista mais gostava: Benedicto Lacerda e seu Regional. Mas, com o estrondoso sucesso que o conjunto fez nas rádios e com sua popularidade entre os locutores e apresentadores das emissoras, o regional acabou ganhando o nome de Regional de Benedicto Lacerda.

A primeira formação musical do grupo que viria a ser o mais importante dos regionais de choro de todos os tempos teve Waldiro Frederico Tramontano, o Canhoto, no cavaquinho; Antonio Carlos Martins, o Russo, no pandeiro; Ney Orestes e Carlos Lentini, nos violões, e Benedicto Lacerda, na flauta.

Em 1937, com o falecimento de Ney Orestes, assume seu lugar o jovem Horondino José da Silva, o Dino, mais tarde conhecido como, Dino Sete Cordas. Não muito depois, Jayme Florence, o Meira, entra para o regional no lugar de Carlos Lentini. No mesmo ano, o integrante Russo sairia do conjunto para dar lugar ao pandeirista Popeye. Com esta formação, o Regional de Benedicto Lacerda gravou e fez sucesso durante nove anos, de 1937 a 1946, até a saída de Popeye e a entrada de Gilson Freitas no pandeiro.

O Regional de Benedicto Lacerda galgou uma história de grande sucesso, e Benedicto foi muito respeitado por seu profissionalismo, tendo conquistado a simpatia e a credibilidade de produtores musicais, diretores de emissoras de rádio, donos de gravadoras. Todos queriam ter Benedicto trabalhando para si, pois viam em sua figura o modelo do empreendedor nato, o que significava retorno certo de investimento para os empresários da indústria fonográfica daquele tempo. Com este respaldo que conseguiu através de seu trabalho, sempre competente, Benedicto pode ajudar inúmeras pessoas no meio artístico-musical, como Jacob do Bandolim, Waldir Calmon, Moreira da Silva, Léo Vilar, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Ademilde Fonseca, Alzira Camargo, Jorge Goulart, Raul de Barros, Carmem Barbosa, Carmélia Alves, Russo do Pandeiro, Aldo Cabral, Altamiro Carrilho entre muitos outros, como nos conta Sidney Castello Branco na biografia que escreveu sobre Benedicto Lacerda, já citada acima.

Destacamos destes apadrinhamentos feitos por Benedicto Lacerda, o de Waldir Calmon. Em 1936, o então cantor saiu de Minas Gerais para o Rio de Janeiro com uma carta de apresentação que deveria ser entregue a Benedicto. A carta pedia emprego para o próprio Waldir, que queria muito trabalhar como cantor de rádio. Conseguindo encontrar o flautista, Waldir teve um teste marcado com o próprio Benedicto, que gostaria de saber o que poderia fazer pelo cantor. No teste, depois de cantar e tocar piano, Waldir ouviu o sincero comentário de Benedicto Lacerda:

– Recomendarei sua contratação para a Rádio Guanabara, mas como pianista, porque neste ofício você é excelente, aposto em seu sucesso.

Depois desse dia, Waldir Calmon, acatando o conselho de Benedicto, esqueceu o sonho de ser cantor e fez uma bela carreira como pianista.

Outra situação que vale ser lembrada é a influência de Benedicto Lacerda quando da primeira contratação de Jacob do Bandolim por uma emissora de rádio. Aconteceu assim: o jovem bandolinista Jacob, aos seus 16 anos de idade, inscrevera-se para participar de um concurso numa rádio carioca. O concurso visava escolher um regional que passaria a tocar acompanhando os calouros da rádio. Estando Benedicto na posição de presidente do júri, que também teve como jurados Orestes Barbosa, Cristóvão Alencar, Chico Alves entre outros, ao ver aquele jovem instrumentista com seu conjunto teve certeza de que ele teria uma bela carreira. Assim, deu voto de grande envergadura para o regional com o qual Jacob se apresentou e eles venceram o concurso. A curiosidade fica também por conta do nome do grupo de Jacob, que ainda não tinha sido nomeado até o momento da apresentação no concurso e fora batizado na hora, no estúdio da rádio, de ‘Jacob e sua Gente’ por Erastótenes Frazão. Vencedor do concurso, o Jacob e sua Gente foi contratado pela Rádio Guanabara. Começaria neste dia a trajetória de outro grande chorão, a de Jacob do Bandolim, mas esta já é outra pauta.

A dupla Pixinguinha e Benedicto Lacerda

A dupla Benedicto Lacerda e Pixinguinha

A dupla Benedicto Lacerda e Pixinguinha

Benedicto Lacerda e Pixinguinha se conheciam de longa data, quando assumiram a dupla, em 1946. No início de 1934, Lacerda gravou as valsas Oscarina em parceria com Pixinguinha, e Glória, de Pixinguinha. Em 1939, Pixinguinha gravou o choro ‘Chorei’, composto em parceria com Benedicto. E, em 1945, ambos gravaram acompanhados do Regional de Benedicto Lacerda o choro ‘Variações sobre o urubu e o gavião’. O resultado da gravação foi tão positivo, que dali por diante Benedicto Lacerda e Pixinguinha começaram a ‘vislumbrar’ a possibilidade de fazerem outras mais. Coube ao compositor e radialista Henrique Foréis, o Almirante, concretizar a ideia. Ele planejava fazer um programa de auditório na rádio Tupy do Rio de Janeiro (1945 – 1946) e viu na união dos instrumentistas a possibilidade certa de sucesso para o mesmo, afinal Benedicto Lacerda, naquele momento, era o melhor flautista do Brasil, estava no auge de sua carreira, dando audiência sempre para a rádio na qual tocasse, e ganhava cada vez mais popularidade através dos concursos que as rádios e os jornais promoviam. Pixinguinha, por sua vez, já era um mestre aclamado e reconhecido no mundo inteiro. É verdade que nesta época passava por certo ostracismo em função do avanço da idade e da perda da embocadura, mas isso nunca o afastou de sua genialidade e maestria. 

O programa de auditório acabou acontecendo anos depois que Benedicto Lacerda e Pixinguinha acataram a ideia de Almirante e formaram a dupla, certamente o mais famoso duo de sopro do choro até a atualidade.

A dupla Pixinguinha e Benedicto Lacerda, firmada em 1946, gravou muitos sucessos até, aproximadamente, 1950. Inicialmente, foi contratada pelas gravadoras RCA e Continental. O acordo seria gravar 10 discos em cada gravadora, em um total de 20 discos e 40 músicas. Alguns sucessos da dupla estão imortalizados nas rodas de choro até hoje, como: Vou vivendo [1946], Cheguei [1946], Proezas de Solon [1946], Um a zero [1946], Pagão [1947], Descendo a serra [1947], Ainda me recordo [1948], Devagar e sempre [1949], O gato e o canário [1949], Soluços [1950], Marilene [1950]… Gravaram também músicas de outros compositores, como: Tico-Tico no fubá, de Zequinha de Abreu [1947], Saudades do matão, de Jorge Galatti [1947], André de Sapato Novo, de André Victor Correa, Língua de Preto, de Honorino Lopes, Só pra Moer, de Viriato Figueira da Silva, entre tantas outras…

A parceria ‘Benedicto Lacerda e Pixinguinha’ ficou, durante alguns anos, sendo interpretada pela lógica da dualidade bem e mal. Alguns críticos exortaram a força criadora da dupla, outros, tentaram difamar a intenção de Benedicto Lacerda para com Pixinguinha. O fato é que para se entender melhor esta parte da estória, deve-se ter conhecimento de causa. E isto não faltou a Sidney Castello Branco, que comprova com documentos e números em seu livro, ser bem outra a estória. O Benedicto Lacerda que figura como malvado na parca e duvidosa bibliografia que há hoje sobre o choro, revela um instrumentista quase monstro, colocando Benedicto como um trapaciador de Pixinguinha. E o que seu biógrafo afirma no livro é que ao contrário, teria sido Benedicto um grande amigo e incentivador de Pixinguinha, que já estava sem tocar há pelo menos quatro anos quando firmaram o dueto. O que se pode medir é que houve ali um momento único de parceria musical provocador do que conhecemos hoje como sendo os fundamentos da escola brasileira de contraponto. Isso é inegável.

O Carnaval

O chorão Benedicto Lacerda foi responsável pela composição de inúmeros sucessos carnavalescos que conhecemos e cantamos há mais de 80 anos. Sua história com composições de músicas de Carnaval começa em 1932, quando ele faz o samba ‘Dinheiro não Há’, em parceria com Alvarenga, para o bloco Deixa Falar. Porém, já em 1928, Benedicto Lacerda participara do primeiro concurso entre as escolas de samba do Rio de Janeiro, informalmente organizado pelo pai de santo, Pai Alufá (Zé Espinguela). O primeiro concurso das escolas de samba do Rio de Janeiro, oficialmente só aconteceria em 1932, promovido na Praça XI pelo jornal O Mundo Sportivo.

O concurso de Pai Alufá guarda uma história polêmica. Representando o Estácio, Benedicto Lacerda e sua flauta ficam em primeiro lugar, mas Pai Alufá resolve não lhe dar o prêmio, argumentando que a flauta de Benedicto tornava seu conjunto hour-concour. Na verdade, Pai Alufá quis dizer que Benedicto, com o uso de sua flauta chorona, já saia na frente de qualquer outro concorrente e que seria desonesto conceder-lhe o prêmio já que nenhum outro conjunto ou músico dispunha de um chorão para engrandecer o número apresentado no concurso. A ‘desclassificação’ de Pai Alufá a Benedicto Lacerda foi um reconhecimento da genialidade do flautista e não o inverso.

Criado no Estácio, berço da primeira escola de samba do Brasil, Benedicto Lacerda foi um dos responsáveis por levar o samba para o ambiente de choro nos idos anos de 1920, com o já citado grupo Gente do Morro.

O flautista fez sucesso com grandes marchas carnavalescas. De 1932 a 1950, Benedicto Lacerda era popular durante todo ano com as músicas que compôs para o período de ‘meio de ano’, no qual estavam inseridas as festividades juninas, e explodia na folia de Carnaval, que começava em dezembro com seus sucessos que iam a publico nos filmes em cartaz nos cinemas, lançados para o período de férias. Quem não conhece a marchinha ‘A Jardineira’, composta em 1938, em parceria com Humberto Porto e que atravessou cinco gerações? É o auge de uma série de sucessos do compositor feitos para o Carnaval.

‘Vai haver o diabo’ (1933), conhecida como ‘Macaco olha o teu rabo’, em parceria com Gastão Viana; ‘Eva querida’ (1935), parceria com Luiz Vassalo e interpretada por Mário Reis num disco da RCA e também interpretada e levada às telas do cinema por Carmem Miranda, no filme ‘Alô, Alô, Carnaval’, de Adhemar Gonzaga, em 1936, são só alguns dos sucessos emplacados por Benedicto Lacerda durante duas décadas de atuação do chorão na cena do Carnaval do Rio de Janeiro. Só para o Carnaval, Benedicto Lacerda compôs centenas de músicas, tendo mais de 60 premiadas em tradicionais concursos de compositores e músicos carnavalescos.

Benedicto em tese de doutorado fora do Brasil

Extasiada com o que ouviu depois de ganhar de presente, em sua casa, nos Estados Unidos, um disco onde Altamiro Carrilho interpretava Benedicto Lacerda, a flautista norte-americana Julie Koidin, veio conhecer de perto a cultura musical brasileira. Seu encanto pelo trabalho de Benedicto Lacerda foi tamanho, que ela o escolheu para ser o objeto de seus estudos.

A tese de doutorado ‘Benedicto Lacerda and the gold age of choro’ (Benedicto Lacerda e os anos dourados do choro), defendida na Northwestern University, em Evanston, Illinois, em 2001, enfoca a maneira única como Benedicto Lacerda tocava sua flauta, tendo, com isto, influenciado uma mudança na forma de se tocar o gênero. No texto, Julie Koidin fala sobre as referências musicais desta ‘nova e diferente forma de tocar’ de Benedicto e faz uma análise estilística do trabalho dele e de outros flautistas de choro.

Entrevista com o biógrafo de Benedicto Lacerda, Sidney Castello Branco

Economista especializado em comércio exterior, Artista plástico e pesquisador, Sidney Castello Branco passou a se interessar pela obra de Benedicto Lacerda após seu casamento com uma das netas de Benedicto. Em 2009, começa a pesquisar a vida do flautista com a finalidade de escrever sobre sua vida, mas não em busca de depoimentos pessoais, e sim, tendo como base, registros históricos e fatos publicados em jornais, revistas, livros e documentos do período em que viveu Lacerda. Atualmente o autor dedica-se ao estudo das legislações sobre o direito autoral.

Revista do Choro: Conte-nos sobre seu envolvimento com a estória de Benedicto Lacerda:

Sidney Castello Branco: Comecei a me interessar sobre a vida de Benedicto, tão logo me casei com uma de suas netas.

Revista do Choro: Como foi o processo de pesquisa que originou o livro Benedicto Lacerda, o flautista de ouro: um gênio na orfandade, lançado em 2014?

Sidney Castello Branco: O processo de pesquisa para o livro que eu escrevi, Benedicto Lacerda – flautista de ouro – Um gênio na orfandade levou basicamente quatro anos.

Revista do Choro: Como você vê a memória estabelecida sobre Benedict Lacerda?

Sidney Castello Branco: A memória de Benedicto está viva e presente ao mesmo tempo em que a sua obra não é devidamente conhecida e reconhecida como deveria, isto é, falta conhecimento sobre a trajetória efetiva da vida de Benedicto Lacerda e o livro que escrevi foi justamente visando preencher esta lacuna.

Revista do Choro: Você trata muito bem as polêmicas que envolveram o nome de Benecicto Lacerda. Fale-nos um pouco sobre o mais lhe surpreendeu neste sentido?

Sidney Castello Branco: A vida de BL está contada no livro, de forma objetiva, em cima de fatos, entrevistas concedidas a jornais, revistas, publicações e retirada de documentos de época, isto é, uma história contada sem estar romanceada, sem toques de ficção. Contei a vida de Benedicto de forma jornalística, apesar de não ser jornalista. Muitas de suas memórias me foram reveladas ao longo dos anos em que convivi com Myrthes Lacerda, que é a filha mais velha de Benedicto Lacerda e mãe da minha esposa.

O livro foi lançado oficialmente em Macaé durante o Festival Cultural Benedicto Lacerda, em outubro de 2014. Tratei de todas as polêmicas que envolvem o nome de Benedicto, sempre com os fatos devidamente comprovados. Há, como já disse, falta de conhecimento sobre a vida real de Benedicto. Autores que escreveram sobre Benedicto sempre repetiram certas informações equivocadas e não se deram o trabalho de checar o que era verdade e o que não era verdade.

Aprendi que sempre devemos confirmar as informações e dados, porém, o que acontece na realidade, de uma forma geral, é que quando uma pessoa influente ou formadora de opinião escreve ou diz algo, aquilo fica valendo como verdadeiro, quando, na realidade, algumas vezes, elas sem saber estão replicando dados e informações equivocadas. Porém, o que vale no final é o peso da sua palavra.

Revista do Choro: Como você percebe a vitalidade da obra de Benedicto Lacerda hoje em dia?

Sidney Castello Branco: A obra de Benedicto é vasta e rica, feita de choros, sambas, marchas carnavalescas e músicas para festas juninas. Sempre com êxito, foi um grande compositor. Porém lhe falta este reconhecimento de forma mais ampla. Posso dizer que Jardineira é o seu maior sucesso. É um grande sucesso comercial e a obra que dá o maior retorno financeiro. Sendo uma das 10 músicas mais executadas durante o carnaval desde a data de seu lançamento (1939). Um a zero é o choro composto por Benedicto que é o mais gravado. Ainda falando sobre a falta de conhecimento da obra de Benedicto, vou dar um exemplo, a música “Um Caboclo Abandonado” é uma obra com pegada sertaneja, portanto, muito atual hoje em dia. Porém, absolutamente desconhecida do público e da crítica.

Revista do Choro: Você quem administra a obra de Benedicto Lacerda?

Sidney Castello Branco: Eu administro a obra de Benedicto Lacerda e posso afirmar que o interesse sobre ele é nacional. Porém, Rio de Janeiro e São Paulo são os maiores estados que possuem interesse sobre a vida e obra de Benedicto.

Revista do Choro: Onde você percebe hoje, há interesse pela obra de Benedicto Lacerda?

Sidney Castello Branco: A obra de Benedicto é gravada e executada no mundo inteiro e em todos os continentes. BL enfrentou diversas batalhas judiciais, sempre liderando movimento em favor dos direitos autorais, e suas questões eram contra as editoras, que sempre foram fortes em diversos aspectos. BL desempenhou esse papel na luta pela defesa dos direitos autorais paralelamente à música e isso durou quase 30 anos.

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Author: imprensabr

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