Por Leonor Bianchi
Em janeiro de 1915, há cem anos, o compositor, bandolinista, violonista e chorão gaúcho Octávio Dutra causou grande ‘espanto’ no meio musical e à imprensa carioca. O motivo teria sido o registro de 30 músicas de uma só vez na Sessão de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. De 200 músicas que apareciam numa relação do Diário Oficial de 30 de janeiro de 1915, 30 eram do chorão Octávio Dutra. O fato chamou atenção, pois naquela época não era comum músicas serem gravadas e registradas.
Octávio Dutra foi destaque na primeira página do jornal A Noite de quinta-feira, 4 de fevereiro de 1915, uma semana após os registros terem sido publicados no DO da então capital federal. No jornal, a manchete dizia assim: ‘O interessante record! Vence longe um autor de composições para phonographos’. O texto começa com uma máxima do autor (que não assina a matéria), onde este diz: “Não só Edson foi imortalizado pelo phonographo. O rastilho da pólvora não propaga tão rapidamente o fogo, como o phonpographo propaga uma música”.
E por aí segue o autor lamentando os dias que se aproximam com a chegada do aparelho tecnológico que gravava e reproduzia músicas à hora que se bem entendesse e em quantos números fossem sem cansar a garganta do cantor.
O chorão Octávio Dutra vira figura diferente por ter ocupado duas colunas no Diário Oficial com o registro de suas composições. Este fora o espantoso record de Octávio Dutra.
A relação das 30 músicas, com seus respectivos gêneros e número de chapa publicada há cem anos tinha em sua maioria músicas gravadas pelo grupo de Octávio Dutra que nascera um ano antes com o nome de Terror dos Facões.
O registro dessas músicas na Biblioteca Nacional foi feito no sentido de passar os direitos das mesmas para Frederico Figner, na época responsável pelas gravações realizadas pela Casa Edson, a primeira gravadora fonográfica do Brasil.
Algumas das composições registradas foram relacionadas pelo jornalista d’A Noite em sua matéria crítica. Dentre elas estão Carinhos de mãe, Olha o poste!, Sempre teu, Vagabunda, Pinhão quente, Chave de ouro, Amor em segredo, Orvalho de lágrimas, Como há de ser? e Mágoas do violão.
Escrita num momento em que o fonógrafo começa a ganhar espaço frente ao teatro, que até então era o maior propagador de músicos e compositores, matéria expõe supremacia anunciada do phonographo, mas aponta uma luz no fim do túnel para o repertório brasileiro da época. “Com isso vão sendo suplantadas as músicas importadas, que para aqui eram trazidas nas peças teatrais. A música do teatro está sendo desbancada pela do phonographo”, concluiu o crítico d’A Noite.
O jornal A Noite
O vespertino A Noite foi fundado em 18 de julho de 1911 por Irineu Marinho, no Rio de Janeiro (RJ), logo depois que este jornalista deixou a Gazeta de Notícias, onde era secretário-geral. Acompanhado de treze antigos funcionários, Irineu Marinho instalou o novo periódico no sobrado de nº 14 do Largo da Carioca, com impressão feita na rua do Carmo.
Considerado um dos primeiros jornais populares do Rio de Janeiro – fora lançado a preços baixos, com circulação diária e grandes tiragens – o jornal teve várias donos e fases, a mais importante das quais nas décadas de 1920 e 1930. Foi em A Noite que Lima Barreto publicou, de março a julho de 1915, em folhetos, o romance satírico Numa e a Ninfa. O jornal também emprestou seu nome ao moderno edifício de 24 andares, construído em 1928 na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. No “prédio d’ A Noite” também funcionou a Rádio Nacional.
A Noite tratava principalmente da política nacional e de questões da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para o noticiário policial. Tornou-e assim um dos primeiros a valorizar os fatos do cotidiano e, desta forma, os gostos do grande público, da chamada massa urbana que se ia formando nas grandes cidades do país. Costumava dar o resultado do jogo do bicho na primeira página, o que cessou a partir do momento que a direção do jornal decidiu iniciar campanha contra jogos e cassinos clandestinos. Ficou famosa reportagem feita em maio de 1913, pelos repórteres Eustáquio Alves e Castellar de Carvalho, a propósito da declaração do chefe de Polícia do Rio de Janeiro de que o jogo estava liberado enquanto o governo não se pronunciasse. Como se fossem banqueiros de jogo, instalaram no Largo da Carioca uma roleta, com um cartaz: “Jogo franco! Roleta com 32 números – só ganha o freguês.” Mas quem apareceu foi a polícia que prendeu os jornalistas e populares que os defenderam. No dia seguinte o jornal criticava duramente o chefe de polícia em matéria que terminava com uma provocação: “E cá está a roleta para uma nova ‘fezinha’, se o dr. chefe de polícia continuar a fazer declarações tão patetas”. Quatro anos depois o acontecimento era lembrado, pelos autores de “Pelo telefone”, o maxixe que é considerado o primeiro samba gravado: “O chefe de polícia, pelo telefone/ mandou me avisar/ Que na Carioca/ tem uma roleta para se jogar (…)”. Os dois repórteres instalaram uma roleta no centro da cidade, com um cartaz que dizia: “Jogo franco! Roleta com 32 números – só ganha o freguês.” Já no seu primeiro ano de vida, o diário promoveu o voo do piloto francês Edmund Planchut em 22 de outubro de 1911, realizado no Rio de Janeiro (na sua redação, aliás, foi inaugurado o Aero Clube do Brasil).
O jornal também fez campanha contra o charlatanismo e de denúncia de irregularidades nos cartórios, tipos de matéria que, segundo a cientista política Maria Alice Rezende de Carvalho, autora do livro “Irineu Marinho – imprensa e cidade”, revelavam a preocupação desse jornalista com a cidade e a cidadania.
Quanto à política nacional, o primeiro jornal de Irineu Marinho abraçou no início a causa civilista da candidatura de Rui Barbosa nas eleições presidenciais de 1910. Com a derrota dos civilistas, A Noite ficou na oposição ao governo de Hermes da Fonseca. Crítico e severo, o diário combatia o autoritarismo do presidente e a chamada política de “salvações” (intervenções militares em alguns estados com fins de moralizar costumes políticos oligárquicos, mas que, no fim, levaram à simples substituição de oligarquias no poder). Tal postura ocasionou a suspensão da circulação do jornal e a prisão temporária de seus diretores.
Nas eleições presidenciais de 1918, A Noite voltou a apoiar a candidatura Rui Barbosa, desta vez derrotado por Epitácio Pessoa. Mantendo-se na oposição, o jornal viveu bons momentos na década de 1920. Um deles foi a cobertura favorável às revoltas tenentistas de 1922 e 1924, o que lhe valeu a dura repressão dos governos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes e a prisão, por quatro meses, de Irineu Marinho.
A direção passou a Antônio Leal Costa e a Herbert Moses, vice-presidente da empresa, a Sociedade Anônima A Noite. Também preso Leal da Costa, em 1925 assume o seu lugar Vasco Lima, antigo sócio de Marinho. Libertado nesse mesmo ano e com problemas de saúde, Marinho deixou o país, não sem antes caucionar a maioria de suas ações na sociedade anônima em favor de Geraldo Rocha. Este, em uma reunião com os acionistas do jornal, rompeu os vínculos que ainda prendiam A Noite ao controle de Marinho e constituiu uma nova diretoria, formada por Eustachio Alves (presidente), Vasco Lima (gerente) e Castellar de Carvalho (secretário)- o primeiro e o terceiro, autores da famosa reportagem sobre o jogo. Em julho do mesmo ano, já de volta da Europa,Irineu Marinho fundaria
O Globo
Nessa nova fase, A Noite deixou a oposição, passando a apoiar o governo de Washington Luís, e iniciou a construção de sua nova sede, o moderno prédio de 23 andares na praça Mauá. Com a mudança para lá em 1929 e a compra de novas impressoras (linotipos), também se modernizou o aspecto gráfico do jornal. Em setembro de 1930, lançava a revista semanal Noite Illustrada, impressa em rotogravura.
Nas eleições presidenciais de 1930, depois de ensaiar possível neutralidade, o jornal, ainda sob o comando de Geraldo Rocha, aderiu à candidatura governista de Júlio Prestes. As denúncias de fraude na vitória de Júlio Prestes não abalaram o alinhamento do jornal, que chegou a publicar entrevistas e pronunciamentos de líderes moderados da Aliança Liberal contra a solução armada. Um exemplo é o texto “Pela ordem”, de Antônio Augusto Borges de Medeiros, que conclamava a aceitação dos resultados eleitorais.
Com a vitória do movimento liderado por Getúlio Vargas, os revolucionários empastelaram o jornal e prenderam Rocha. A sede foi depredada e incendiada, e o jornal deixou de ser editado por alguns dias. Ao voltar a circular, em 4 de novembro, a empresa se defrontaria com o desgaste político resultante do apoio às oligarquias derrotadas e, principalmente, com as dívidas originárias da construção do prédio da praça Mauá e da compra de novas máquinas. Sem ter como saldar os compromissos financeiros com o grupo do empresário norte-americano Percival Farquhar, proprietário da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, Geraldo Rocha, já livre, assinou uma confissão de dívida, que o levou a perder todos os seus bens e a totalidade das suas ações do jornal. Curiosamente, no entanto, desde a eclosão da Revolução, a São Paulo-Rio Grande esteve ocupada por tropas revolucionárias, o que acabaria determinando o futuro do periódico.
Nessa terceira fase, agora como propriedade de grupo estrangeiro representado no Brasil por Guilherme Guinle, o jornal passou a direção de Manoel Cardoso de Carvalho Netto e adotou linha política mais amena, livre de ataques pessoais. Adotou também uma disposição gráfica mais arrojada, com destaque para fotos e manchetes. Também foi mantido o suplemento Noite Illustrada.
No processo de reerguimento da sociedade editora de A Noite, Vasco Lima, que continuou na empresa, criou duas revistas – Carioca e Vamos Ler – ambas dirigidas por Raimundo Magalhães Júnior. Dedicada sobretudo ao cinema, rádio e teatro, e com farta ilustração, Carioca foi sucesso absoluto, rendendo tiragens de mais de 150 mil exemplares. Em 1936, o grupo, cuja ferrovia ainda era controlada indiretamente pelo governo federal, inaugurou uma emissora de radio, a Rádio Nacional. No dia 8 de março de 1940, o Decreto-Lei nº 2.073 legalizou o controle do governo sobre a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, passando à União todas as empresas a ela filiadas a esta, entre as quais o jornal A Noite e a Rádio Nacional, que assim passaram a pertencer às denominadas Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional. Iniciava-se a quarta fase do vespertino.
A partir de 13 de março de 1940, o jornal foi dirigido por José Eduardo de Macedo Soares, tendo Cipriano Lage como redator-chefe. A administração ficou a cargo do coronel Luís Carlos da Costa Neto, superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional, que não aparecia no expediente. Apesar do respaldo do governo, o jornal entrou em grave crise ocasionada por problemas administrativos, baixa receita, empreguismo e perda de leitores, cada vez menos atraídos por um órgão sob controle oficial
Com o fim do Estado Novo e a eleição de Eurico Dutra, e depois de uma curta experiência de arrendamento do jornal, em 1946, pelos funcionários, A Noite adentrou a década de 1950 sem solucionar seus problemas administrativos. Em 27 de dezembro de 1957 interrompeu sua circulação, para ressurgir, por iniciativa de seus funcionários, dois anos depois. E, ao que parece, por alguma razão jurídica, em apenas uma edição. Boa parte dessa edição, muito pobre, era tomada pela transcrição de uma ata da sociedade anônima. Organizados em sociedade anônima capitaneada por Manoel Cardoso de Carvalho Netto, os funcionários haviam adquirido seu título em hasta pública. Seria a quinta fase do periódico.
O jornal foi relançado em 26 de dezembro de 1959 em edição de apenas quatro páginas. Era então propriedade da Empresa Jornalística Castellar (o nome homenageava um antigo funcionário já falecido) e se apresentava como “equidistante de governo e oposição – compromissos apenas com a comunidade social, para resguardar a justiça de seus julgamentos”. O redator-chefe era Lincoln Massena, e a administração do jornal continuava, provisoriamente, no prédio da praça Mauá, enquanto as oficinas ficavam no nº 114 da rua do Riachuelo. O ressurgimento, novamente, durou apenas uma edição. A Noite só voltaria a circular quase um ano depois, em 20 de dezembro de 1960. O novo diretor era Celso Kelly e a redação agora funcionava na sobreloja do nº 2 da rua Francisco Serrador, na Cinelândia.
Em 16 de maio de 1963, o vespertino passou a ser dirigido por Eurico de Oliveira e tinha sucursais em Brasília, em São Paulo e Niterói. O novo diretor, que já já havia trabalhado em outros jornais, como o Correio da Noite, A Pátria, Jornal do Brasil e O Imparcial, tendo sido ainda colaborador na fundação da revista Pela Pátria e fundador do Diário Trabalhista em 1946, desde 1950 havia ingressado na política, elegendo-se, por diversas vezes, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ou pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN). Em 1962, foi eleito suplente de deputado federal pela Aliança Socialista Nacionalista, formada pelo PTB e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em abril de 1964, com as cassações feitas pelo governo militar, assumiria uma cadeira de deputado federal.
A Noite circulou provavelmente até 31 de agosto de 1964, data da última edição existente no acervo da Biblioteca Nacional. Uma das razões de seu fim, além da fragilidade financeira da empresa, pode ter sido o início do mandato de Oliveira. O deputado viria a se destacar pela tentativa de implementação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigasse acordos ilícitos entre a TV Globo, fundada em abril de 1965, e o grupo de mídia americano Time-Life.
Fontes
1. Acervo: edições do nº 2894, de 1º de janeiro de 1920 ao nº 4.782, de 18 de março de 1925; edição nº 6.804, de 23 de outubro de 1930; edição nº 6.805, de 4 de outubro de 1930; edição nº 7.222, de 2 de janeiro de 1932; edições do nº 10.084, de 8 de março de 1940, ao nº 10.198, de 2 de julho de 1940; edição 13.376, de 2 de janeiro de 1950; edição nº 15.807, de 26 de dezembro de 1959; edição nº 15.808, de 20 de dezembro de 1960; edição nº 17.216, de 16 de maio de 1963; edição nº 17.575, de 31 de agosto de 1964.
2. BIAL, Pedro. Roberto Marinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
3. FERREIRA, Marieta de Morais. “A Noite”. In: ABREU, Alzira Alves et al. (Coord.) Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930, vol. IV. Rio de Janeiro: Editora FGV; Cpdoc, 2001.
4. _____. Eurico de Oliveira. In: ABREU, Alzira Alves et al. (Coord.) Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930, vol. IV. Rio de Janeiro: Editora FGV; Cpdoc, 2001.
5. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Irineu Marinho – imprensa e cidade. Rio de Janeiro:Globo Livros/Memória Globo.2012.
Fonte: http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/noite