Leonor Bianchi
Este ano, em julho, mês que vem, faz oito anos que lancei a Revista do Choro. Em concomitância lancei também o ‘Mapa do Choro‘, e pretendia com ele fazer o que o próprio nome já diz, ou seja, um mapeamento do Choro do chorões, das pesquisas, das produções fonográficas, um mapeamento de toda a ciranda produtiva do Choro no Brasil e fora do país, onde o choro já está consolidado há muito tempo, desde que os Oito Batutas pisaram na França, há 100 anos, e se apresentaram no Cabaré Shéhérazade, sendo o primeiro conjunto de músicos brasileiros e negros a pisar naquele país, que era, então a capital cultural do mundo. O site www.mapa dochoro.wordpress.com criado por mim em 2014 não tinha uma ferramenta que permitisse com que os próprios usuários se cadastrassem e escrevessem a sua apresentação, registrando-se no Mapa. Sem patrocínio, acabei não conseguindo levar o modelo proposto adiante, e precisei eu mesma inserir as informações que os chorões que estavam descobrindo o Mapa me enviavam por email. Tendo em vista que também preciso fazer as pesquisas de conteúdo e a produção de conteúdo para Revista do Choro além de uma série de outras atividades profissionais que desenvolvo, como editora de livros, assessora de imprensa, e mais recentemente, jornalista correspondente na imprensa francesa, não tive como levar adiante o intento de fazer esse mapeamento do Choro, o que agora pretendo realizar de outra forma, através de entrevistas.
Hoje inicio a série é O CHORO PELO MUNDO, onde entrevisto músicos e produtores culturais brasileiros e de diversos outros países, que trabalham levando o choro mundo à fora.
Quem abre a série é o violonista e produtor musical de São José dos Campos (SP/ BR), Abdallah Harati, que atualmente reside na Alemanha, em Munique, onde criou, com outros amigos, o Clube de Choro de Munique. Integra a entrevista também um vídeo que está sendo produzido pelo Clube do Choro de Munique onde eles tocarão e se apresentarão para os leitores da Revista do Choro.
Com um regional integrado por músicos brasileiros e alemães, o Clube do Choro de Munique promove rodas regularmente em diversos lugares da cidade. Uma atividade cultural que conquistou o coração dos alemães.
As entrevistas da série ficarão disponíveis por sete dias na Revista do Choro após sua publicação. Depois este conteúdo será fechado e poderá ser acessado apenas por assinantes da revista. Clique aqui para assinar a Revista do Choro. A série dá origem ainda ao livro homônimo à mesma, com selo e produção editorial da Flor Amorosa. Cada entrevista também será publicada separadamente em formato digital pela Coleção Notas Musicais Ebooks Sonoros.
Leia agora a entrevista
Mas antes, FOMENTE!
CLIQUE AQUI E ASSINE A REVISTA DO CHORO!
FOMENTE a produção desta série.
Caso não queira assinar a revista, faça uma doação através de PIX ou transferência bancária para a redação.
No mesmo link da assinatura você encontra informações de como fazer doações para a revista.
Toda forma de apoio é muito bem-vinda!
A Revista do Choro é uma publicação independente, sem patrocínios e anunciantes, que se mantém do fomento dos leitores e dos apaixonados pelo choro, pela cultura brasileira e pelos que valorizam este trabalho de resistência cultural.
Revista do Choro: Abdallah, você é brasileiro nascido onde?
Abdallah: Sim, sou brasileiro, 47 anos (quase 48), nascido em São Paulo e cresci em São José dos Campos.
Como você começou seu contato com a música, especificamente com violão, que é o instrumento que você toca?
Meu avô materno era músico violonista, e nasci com ele tocando serestas e cantando com a minha avó. Tenho tios músicos e um deles era contrabaixista da banda de baile Biriba Boys, que foi bastante conhecida nos anos 60 e 70. Minha inspiração vem do meu avô, nas festas na casa da minha mãe, que quando eu era pequeno, dormia no chão, escutando ele tocar, como pessoal todo cantando Nelson Gonçalves, Ataulfo Alves, Orlando Silva e etc. Me colocaram no conservatório musical, iniciando com percussão, flauta doce e piano, mas eu queria mesmo era a “bagunça” do violão. Por volta dos 12 anos, eu já estava com o “pinho”, estudando violão erudito, e tentando acompanhar de ouvido as belas serestas que sempre aconteciam na minha casa.
Revista do Choro: Como você chegou na Alemanha? Há quanto tempo mora aí? Você mora onde aí?
Sou, talvez, aquela definição de cidadão do mundo. Sai de casa aos 17 anos para estudar em Bauru (acredite se quiser, sou formado em Engenharia Eletrônica) e desde que me formei no início de 1997, nunca mais parei. Desde então, moro fora do Brasil, com alguns retornos a nossa pátria amada. Para ser preciso, já morei na Guatemala, México, Estados Unidos, Suécia, Emirados Árabes, Vietnã, Quênia e Alemanha. Já estou na minha segunda experiência em Munique, Alemanha. A primeira foi de 2007 até 2009. Depois, voltei pra cá desde 2015. Todas a minhas mudanças eram relacionadas ao meu trabalho “diurno” na área de tecnologia, mas eu sempre consegui, de alguma forma, conciliar a música.
Revista do Choro: O que fez com que você buscasse fazer uma ponte cultural entre Brasil e Alemanha a ponto de criar o Clube do choro?
Abdallah: Um dos meus objetivos de vida sempre foi propagar a música brasileira, aquela talvez menos comercial e menos presente nas grandes mídias. A minha preferência pessoal – e gosto realmente não se discute – são músicas com estruturas melódicas, harmônicas e rítmicas talvez mais elaboradas e podendo ser cantadas, mas com letras de cunho mais poético. Eu traduzo tudo isso para o Choro, Samba e os mais diversos ritmos regionais do Brasil como Baião, Frevo, Boi e etc. Apesar de tocar outros gêneros não brasileiros, eu optei por duas “escolas” culturais, musicais e como filosofia de vida na minha vida: o Choro e a Capoeira.
Somando tudo isso, era natural que eu buscasse outros músicos interessados em qualquer país que eu estivesse vivendo, como foi o caso. Aqui na Alemanha (e em outros lugares do mundo), eu comecei a descobrir muitas pessoas (brasileiros ou não) interessadas no Choro, mas com acesso limitado às tradições do gênero, como por exemplo, participar de uma autêntica roda de Choro. Eu tive uma grande oportunidade na vida de morar no Rio de 2002 até 2005 fazer parte das Oficinas de Choro na Lapa, que logo depois se tornaram a EPM (Escola Portátil de Música, e que eu saiba, a única escola do mundo que tem o Choro como enfoque principal). Muitos grupos se formaram, inúmeras rodas aconteceram e eu queria repetir isso na Alemanha.
É importante mencionar o conjunto local Bavaschoro, que teve seu primeiro álbum gravado em 2016. Um conjunto formado por alemães bávaros (Munique fica no estado da Baviera, que tem um dialeto próprio e um estilo de música regional bastante interessante) e brasileiros, que fazem uma mescla de música Bávara com Choro. O resultado é extraordinário.
Além dos músicos do Bavaschoro, comecei a encontrar um músico ali, outro aqui e devagar começamos o movimento. As rodas aconteciam uma vez por mês e em algumas ocasiões, a cada dois meses. Como não tínhamos local, muitas delas aconteceram na minha casa. Em um evento promovido pela Casa do Brasil de Munique, eu mencionei minha vontade de ter uma roda de Choro por aqui, mas o problema é que não tínhamos local. Gentilmente, eles cederam uma sala da própria Casa do Brasil e aí tivemos, o que eu posso chamar, da primeira roda pública e em local neutro de Munique. Isso foi em 2018. Conseguimos fazer uma vez por mês, e na maioria das vezes só tinha eu de brasileiro. Isso me emocionava! Tantos alemães, holandeses, americanos e outras nacionalidades interessadas pelo Choro!
A coisa se intensificou depois de alguns ocorridos. O primeiro deles, durante a pandemia, foi um encontro inusitado por conexões do Instagram com quem é hoje, um dos meus grandes parceiros musicais: João Poeta (João Araújo), poeta, compositor, violonista e pandeirista de Recife. A sintonia foi imediata. João também esteve em algumas oficinas promovidas pela EPM e vem da mesma escola que eu. Além do mais, tem vontade e energia para ajudar na organização da roda. Sempre o primeiro a chegar e o último a sair. A segunda, foi um festival de Choro organizado pelo Bavaschoro no começo de 2022. Nesse festival, além de diversos workshops e apresentações, terminamos com uma roda maravilhosa. No final da roda, João chegou pra mim e disse: “rapaz, o trem do Choro está passando em Munique, e não podemos perder essa oportunidade”. Decidimos embarcar!
Ainda não posso dizer que temos um “Clube do Choro” aqui, mas as atividades chorísticas estão intensas, com vários músicos e rodas acontecendo quase que semanalmente.
Revista do Choro: Apresente para nós o regional que forma o Clube do Choro de Munique. Tem músico brasileiro nesse regional? Onde esses outros músicos estudaram e qual a relação deles com o choro?
Abdallah: Temos vários integrantes do que chamamos “Roda de Choro de Munique”. Alguns deles, mais frequentes, mas sempre aparecem visitantes, músicos esporádicos. Muitos deles são imigrantes no Choro, mas cada vez estão captando bem a linguagem. Além desse que vos escreve e o João:
Márcio Schuster (brasileiro), saxofone e flauta
Henrique Rebouças (brasileiro), violão 7 cordas
Luis Holz (alemão/português), violino, cavaquinista e guitarra portuguesa
Xaver Himpsl (alemão), flugelhorn
Ludwig Himpsl (alemão), percussão
Hermann Kerher (alemão), cavaquinista
Herbert Schmelz (alemão), flautista
Jana Crivelli (brasileira), percussão
Andreas “Queijo” Ehrlein (brasileiro), percussão
Federico Tiziani (italiano), pandeiro
Fabricio Cavalcante (brasileiro), violão 7 cordas
Gonçalo Mortágua (português), saxofone
Johannes Teuto (alemão), cavaquinho e bandolim
Pedro Aguiar (brasileiro), violão
Tem outros músicos também, e já peço desculpa por não mencionar todos os nomes.
Revista do Choro: Onde vocês se apresentam aí?
Abdallah: A Roda de Choro de Munique tem vários locais, dependendo muito da estação do ano. Alguns deles:
Diba Cafe Bar – esse seria o equivalente ao Bip Bip
Alte Utting
Restaurante Portugal
Revista do Choro: O Clube do Choro é uma entidade jurídico, uma associação? Como vocês escolheram se associar?
Abdallah: Ainda não somos um clube do choro e por enquanto, decidimos manter a informalidade. Somos um grupo de amigos que mantém uma constância em se reunir para fazer a tradicional Roda de Choro e sempre estamos abertos a qualquer pessoa que queira tocar com a gente, da mesma forma que uma autêntica roda no Brasil. Tocamos sempre de forma voluntária, com quem estiver disponível e com vontade.
Revista do Choro: Como funciona aí a cena do choro e da música instrumental brasileira? Vocês conhecem outros músicos chorões onde vivem?
Abdallah: A música brasileira instrumental na Europa tem muito espaço. O Choro é apenas uma delas. O público aprecia bastante e as apresentações são constantes. Existe uma “rede” de Choronas e Chorões na Europa e de alguma forma, estamos associados. As conexões com a Itália, Espanha, França e outras cidades da Alemanha são muito comuns. Sempre buscamos uma forma de nos juntar, aproveitando as atividades musicais profissionais de cada pessoa e buscando espaços para rodas. Menciono aqui as grandes conexões que temos com o pessoal do Choro de Bologna (Itália), através do Marco Ruviaro; Düsseldorf (Alemanha), através do Flávio Nunes; Toulouse (França), que tem uma escola e muitas atividades, através do Olivier Lob; Barcelona (Espanha), através do Zé Luis; Madrid (Espanha), através do Fernando de La Rua. E muitos outros que ainda estão por vir, como na Holanda, Áustria, Inglaterra e Bélgica.
Revista do Choro: Existem lugares para a prática de choro ao ar livre, rodas de choro?
Abdallah: O Alte Utting é um local aberto, que é muito bom para tocar. Porém, ficamos limitados aos dias de verão, fim de primavera e início de outono, que não estão chovendo e dependemos muito da temperatura. As condições climáticas dificultam bastante, portanto, temos que nos adaptar. Quando o tempo está bom, temos muitos parques e os tradicionais Biergartens, que nos acolhem.
Revista do Choro: Existem escolas de choro aí, oficinas? Como funciona a parte do estudo fora da prática de conjunto na roda em si quando o Clube do Choro se apresenta?
Ainda não temos escolas de choro em Munique. De meu conhecimento, existem a versão holandesa da EPM e a escola de choro de Toulouse, na França. Tivemos oficinas durante o primeiro Festival de Choro de Munique deste ano e nossa intenção é evoluir nos anos seguintes. Queremos usar a fórmula e metodologia similar à EPM das oficinas de instrumentos e prática de conjunto.
Alguns dos músicos da Roda, como o João e o Márcio, são professores atuantes e ensinam Choro para os alunos interessados. Eu auxilio instrumentistas que têm interesse em conhecer mais, tanto por aulas, grupos no Telegram e na prática de conjunto.
Na sua fanpage no Facebook tem uma foto sua com Dino 7 Cordas, nosso grande mestre e inovador nas técnicas do sete cordas no choro, herança de Tute. Qual é a sua grande referência no choro tanto na composição quanto na interpretação?
Os grandes mestres Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Ernesto Nazareth são minhas referências no choro. No violão, Baden Powell, Dino, Meira e Rafael Rabello. Tive a honra de passar anos recebendo os ensinamentos de grandes mestres da atualidade como Maurício Carrilho, Luciana Rabello, Celsinho Silva e Pedro Amorim. Tive a honra e benção de fazer parte do conjunto de Álvaro Carrilho durante minha estada no Rio de Janeiro, e posso dizer que “bebi diretamente da fonte” do choro. Os ensaios, noitadas e o tempo que passei com seu Álvaro foram memoráveis.
Sigo muito a linha de Maurício Carrilho (que vem do Meira), o que significa uma atenção constante nas levadas do violão para manter o gênero do choro que estamos tocando. Isso ajuda muito aqui em Munique e na Europa, pois não é sempre que temos instrumentistas que “seguram” a roda de choro. Na minha forma de tocar existe uma influência muito grande das levadas do cavaquinho de Luciana Rabello. Como também sou solista, tenho como base de ambos Baden Powell e Rafael Rabello.
Como tenho formação erudita no violão e também jazzística, minha técnica de tocar segue muito a linha de Marco Pereira e Paulo Bellinati. Tive a fantástica oportunidade de aperfeiçoar minha técnica com Ulisses Rocha e logo depois, aprimorar meus estudos teóricos de harmonia através do jazz, na Berklee College of Music.
Revista do Choro: Quais são seus planos em nível profissional como músico e também enquanto um chorão?
Abdallah: Além de músico, também sou produtor musical. Desde a pandemia, me inseri no mundo digital da música, fazendo lançamentos quase que todos os meses de singles e EPs nas plataformas digitais. De junho de 2020 até março de 2022, lancei quase 20 singles e um EP. Esse trabalho inclui choros, mas também outros gêneros da música brasileira, como Capoeira (misturando berimbau com violão), Sambas, Baiões e etc.
Faço parte do Duo Caiana (pandeiro e violão), com meu parceiro João e nos apresentamos com bastante frequência. Em breve estaremos trabalhando num álbum e turnês pela Europa.
Toco profissionalmente em diversas formações para eventos corporativos, públicos e privados.
Além de manter as rodas, espero poder realizar o próximo festival de choro em Munique com oficinas e práticas de conjunto. Quero que cada vez a roda fique menos dependente de uma pessoa e consiga sobreviver por si só. Um passo por vez, vamos construindo e propagando esse gênero da música brasileira que tanto admiramos.
Revista do Choro: Como são hoje os festivais de música instrumental na Alemanha?
Abdallah: A Alemanha promove diversos festivais de música instrumental. Tivemos um hiato grande durante a pandemia, mas as atividades estão voltando. Em diversas cidades, diversas organizações e parcerias do governo com entidades privadas promovem atividades culturais e a música instrumental faz parte de tudo isso. O governo alemão dá bastante suporte para a cultura.
Revista do Choro: Você acredita que existia espaço para um espetáculo de choro num festival de jazz aí? Existe público que apreciaria um concerto de choro?
Abdallah: Não há sombra de dúvida. Todas as Rodas de Choro desse ano foram lotadas de pessoas e existem bares e auditórios maravilhosos para choro e para o jazz. Com constância recebemos músicos de choro e jazz por aqui, e com muito público.
Revista do Choro: O que você percebe que as pessoas, músicos profissionais ou amadores, que querem tocar, estudar choro aí na Alemanha querem encontrar com mais facilidade sobre choro na internet: conteúdos de pesquisa sobre a história do choro, partituras, perfis dos compositores, história do repertório de choro, cursos online, livros?
Abdallah: Tive a grande oportunidade na vida de passar um tempo no sul da Espanha estudando flamenco. Os franceses organizaram o flamenco, escreveram métodos e permitiram que o mundo pudesse aprender o gênero de uma forma mais acadêmica. Logicamente existe uma discussão se é possível aprender flamenco “de verdade”, não sendo andaluz, mas hoje, é possível evoluir muito e tocar muito bem flamenco em qualquer parte do mundo. O material está disponível.
Com o choro, e com a música brasileira em geral, isso já é bem mais complicado. Ainda estamos muito no início da nossa organização acadêmica dos nossos gêneros. Existem pouco material didático, traduzido para outros idiomas e o processo é muito manual. Entender as nuances da linguagem, saber a hora de improvisar, a hora de dividir o solo, as diversas levadas de choro, como se “comportar” na roda são as grandes dificuldades.