Zé da Velha ou Velha do Zé


Por André Diniz e Diogo Cunha

“Um sujeito que se chama Zé da Velha só pode ser bom sujeito. O Zé é um patrimônio da cidade”[1].

(Sergio Cabral, pesquisador)

Manhã de domingo. Lila Lea arrasta orgulhosa o pequeno coroinha – liturgicamente vestido com túnica vermelha e sobrepeliz branca – à Igreja Nossa Senhora da Piedade. Depois da missa, religiosamente, a banda V de Novembro, dos marmanjos da cidade, esperava a saída dos fiéis e atacava um repertório dos diabos: dobrados, polcas, mazurcas, choros e xotes.

    O filho de Hélio Fonseca Pontes e Lila Lea não era o que podemos chamar de um papa-hóstias. Gostava das missas, mas também adorava sair de casa todo emperiquitado e, como um santo, ficar ouvindo, sentado na bancada dos trompetes, seu pai, ensaiar na banda V de Novembro. Depois dos ensaios, pai e filho batiam ponto no bar de Hélio de Sá e Dona Laurides, onde Helinho Pontes bebia cervejas com os amigos, comia tira-gostos da maior responsabilidade e o pequeno saboreava alguns picolés. Na rádio-vitrola de madeira, na entrada do estabelecimento, rolavam as bolachas de Paulo Moura, Pixinguinha, Abel Ferreira, Severino Araújo e outros nomes do choro. Certo domingo, o menino ouviu (e pelo visto nunca mais esqueceu) o pai cantar a seguinte pedra:

– Escuta, Véio, olha como é bom! Escuta… Esse é um grupo de choro lá do Rio. Olha o trombonista como toca bonito, cheio de contraponto[2].

     O “trombonista que toca bonito”, era o aracajuano José Alberto Rodrigues Matos. Esse chegou ao Rio no final dos anos 40 e encontraria, mais de 30 anos depois, o menino atento aos seus contrapontos apresentados pelo pai…

3- Ninho de Cobras (abertura)

Aracaju-Olaria

    Em 13 de agosto de 1949, o Correio de Aracaju relatou algumas belezas da administração do governador de Sergipe José Rollemberg Leite:  “O governador José Rollemberg Leite está fazendo uma administração que vai deixar seu nome nos anais da política de Sergipe. As repartições são viveiros de diaristas e mensalistas que não têm onde se sentar, tal o número deles que vai numa alarmante progressão. Por outro lado, os soldados da polícia caem de fraqueza, exâmines, famintos, na via pública. Sr. José Rollemberg quer ser agora o nosso Bismark de cartão postal e transformar o nosso Sergipe numa Prússia de presépio”[3].

Com esse Deus nos acuda na segurança pública Sergipana, não deu outra. No dia seguinte à matéria do Correio de Aracaju, em 14 de agosto de 1949, Humberto Vieira Matos e Maria Rodrigues Matos tiveram sua alfaiataria assaltada. Desgostosos, e com um grande prejuízo nas mãos, resolveram arrumar as malas e partir para a então Capital Federal, a cidade do Rio de Janeiro. O filho único do casal, José Alberto Rodrigues Matos tinha sete anos quando embarcou para o Rio. Na realidade, oito. José Alberto é o que chamamos no mundo do futebol de “gato”. Ele veio ao mundo no dia 1 de junho de 1941, mas foi registrado dez meses depois, em 4 de abril de 1942. Dito isso, passamos adiante.

A família embarcou num Douglas DC-3, uma espécie de avião “parador”, da companhia Cruzeiro do Sul, que aterrissou no Rio sete horas depois de levantar voo. Hoje, sem sustos, o tempo de viagem é de duas horas de meia. Ao desembarcar, os Matos foram para a rua Antônio Rego, 1179, esquina com a rua Paranhos, em Olaria. Uma casa pequena com sala, cozinha, banheiro e um quarto. Eram seis pessoas morando debaixo do mesmo teto. Mas engana-se redondamente quem pensa que o bairro de Olaria era uma terra de ninguém. Pelo contrário. Em 1886, o bairro ganhou a Parada de Olaria, recebendo oficialmente o status de estação ferroviária em 1917. Treze anos depois, em 1930, a estação foi rebatizada com o nome do prefeito do Rio de Janeiro Pedro Ernesto, primeiro alcaide carioca a patrocinar, em 1935 o fuzuê das escolas de samba do Rio de Janeiro. Foi grande brasileiro, mas como nome de estação não cabalou os votos dos moradores da região. A estação voltou à denominação original e o prefeito passou a emprestar o seu nome a hospitais, escolas, praças, ruas etc, etc.

Levando a vida na gaita

Já em casa, devidamente alojados no bairro, Maria Rodrigues Matos presentou seu filho de dez anos com uma gaita comprada em Madureira. Em toda festinha em Olaria, José metia a boca na gaita. O menino, com bom ouvido, pegou rapidamente as músicas “Saudades do Matão” (Antenógenes Silva), “Asa Branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e “Brasileirinho” (Waldir Azevedo). Apesar da facilidade na gaita, o pai queria que o filho estudasse saxofone. Alfaiate de profissão e músico amador, Humberto tocava saxofone alto e um pouco de clarinete. Foi ele que deu as primeiras aulas de música para o filho, ensinando teoria e solfejo. Já as aulas, de trombone de pisto e saxofone não duraram muito tempo. Humberto ficava com a régua marcando o compasso e quando Zé errava… Reguada no aluno! Como “santo de casa não faz milagre”, o menino desistiu do aprendizado[4]. Porém, durante o carnaval de 1956, a batida foi outra. Vendo a banda estudantil do IAPC (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários) passar na rua Dr. Alfredo Barcelos, em Olaria, José sentiu que estava na hora de voltar a estudar trombone. Na quarta-feira de cinzas, pediu ao maestro da banda, Alcides Fernandes, para entrar na fileira da agremiação. Pois bem. A “bandinha” do IAPC de Olaria era, rigorosamente, pau para toda obra: tocava nos congressos da Frente Nacionalista Leopoldinense, em igrejas (como Nossa Senhora da Conceição, Santa Rita – em Ramos –, São Geraldo, São Sebastião – em Olaria – e São Roque – em Paquetá), no Dia da Bandeira, no Dia da Pátria e em muitos carnavais.

 Em pouco tempo, Zé ocupou o quarto trombone de piston da banda. Mas sua ideia fixa era o trombone de vara. Até que, certo dia, pintou a chance de trabalhar no baile de carnaval do Éden Clube, na rua Uranos, em Olaria. Zé tocou os quatro dias de Carnaval. Até que, na quarta-feira de cinzas, com um dinheirinho no bolso, comprou um trombone de vara, da marca Super-Moura, na Casa Clarin, localizada na rua Larga, 27 (atual Av. Marechal Floriano).

Metendo a boca no trombone

      Com a intenção de aprender a escala do trombone de vara recém-adquirido, o nosso Zé caminhava uns dez minutos pela rua Uranos e batia na porta do vizinho Vittor, músico que morava na rua Gomensoro. Zé tinha 16 para 17 anos, e “Seu” Vittor, um “boa praça”, ensinou a ele a escala do trombone de vara. Porém, em um domingo de 1958, enquanto Zé estava de folga e pelejava, aliás com vizinhos, uma partida de bola de gude.  Entre um “marraio” e “feridô sou rei”, Zé ouviu um: “Ô de casa”. Ao abrir a porta, veio o professor Vittor: 

– Zé, você pode me quebrar um galho, rapaz? Tô tocando com um conjunto no Bola Preta e pintou um probleminha para resolver. Você pode fazer no meu lugar?

Zé gaguejou:

– Mas, tocar no seu lugar, professor?

Vittor foi quase brutal:

– Lá é mole pra você, rapaz, eles tocam choro e samba, justamente o que você gosta!

Será que esse porrinha toca mesmo?

O baile iniciou às três da tarde, e o novato chegou quase às quatro, no Cordão da Bola Preta. Ao entrar no salão, José procurou o músico Bide da Flauta, que respondeu mais ou menos assim ao calouro:

– É você que vem fazer no lugar do Vittor? Mas ele não disse que o baile começava às 15 horas, menino, e você só chega agora?

Zé improvisou um discurso:

– Desculpe, Seu Bide, tive um problema no lotação.

Aroldo, que tocava surdo no grupo, mandou lá da cozinha:

– Será que esse porrinha toca mesmo?

Zé tirou o trombone do saco e executou o choro “Espinha de Bacalhau”, do maestro Severino Araújo. Quando terminou a primeira parte, Aroldo mandou à queima-roupa:

– Não é que esse porrinha toca!?!

Botando a boca no trombone, Zé estreou com o pé direito com o Grupo da Velha Guarda. E pelo visto, a “Espinha de Bacalhau” (Severino Araújo) desceu bem. Zé passou a tocar com o Grupo da Velha Guarda todos os domingos na matinê do Bola Preta.  A temporada começava no dia 15 de novembro e ia até um domingo antes do carnaval. Com pouco tempo de casa, o jovem Zé virou Zé da Velha Guarda. É o próprio músico que revela outra origem do apelido: “Quando eu parava de tocar, uma senhora sentada na mesa em frente ao palco do Bola Preta pegava o copo de cerveja e oferecia um brinde. O João da Baiana observou o fato e comentou: ‘Sei não, meu sobrinho, mas essa velha está querendo alguma coisa com você’. Quando a velha não ia, o povo do Velha Guarda dizia: ‘A velha do Zé não veio hoje’.”[5]

A partir daí, com 18 anos, Zé da Velha Guarda perdeu a Guarda e ganhou, definitivamente, a alcunha de Zé da Velha.

[1] Entrevista de Sergio Cabral aos autores em 8 de setembro de 2016.

[2] Contraponto é a melodia secundária que dialoga com a principal.

[4] Entrevista de Zé da Velha aos autores em 4 de novembro de 2015.

[5] Entrevista aos autores em 4 de novembro de 2015.

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Author: imprensabr