Por Leonor Bianchi
Ainda com o nome de Jazz Tabajara – em algumas matérias de jornais e revistas dos anos de 1940, encontramos também o nome de Batutas do Jaguaribe para o conjunto -, a orquestra em atividade a mais tempo no Brasil foi fundada em 1933, quando um industrial, cônsul e músico holandês que vivia em João Pessoa comprou diversos instrumentos e partituras nos Estados Unidos para formar a mesma. A intenção de Oliver Von Shosten era que a orquestra tivesse um maestro permanente e, para tanto, convidou, em 1935, o maestro e professor Olegário de Luna Freire para ser seu regente. Com o passar do tempo, a orquestra ganhou o nome de Tabajara e passou a ganhar popularidade e prestígio sendo chamada para tocar e animar muitas festas e bailes na Paraíba. O nome Tabajara seria dado apenas nessa época pelo professor Coriolano de Medeiros, que prestava, assim, uma homenagem aos índios que habitaram a região da Paraíba.
Contrato para tocar na rádio oficial do governo da Paraíba
Em 1937, com a inauguração da emissora de rádio oficial da Paraíba, a PRI-4, muitos locutores, redatores, técnicos e músicos foram contratados. Foi nessa primeira leva de músicos que a Tabajara passou a ser a orquestra oficial da ‘casa’.
Nesse período houve a primeira reformulação na composição da orquestra, pois vários de seus músicos foram convocados para o Exército. Desfalcada, o maestro Luna freire contratou músicos em Recife para que a orquestra permanecesse ativa. Foi nessa época, que um de seus regentes mais tradicionais e que assumiu o comendo da orquestra por 74 anos (1936 a 2006), o pernambucano de Limoeiro, Severino Araújo, entraria para o corpo de músicos da Tabajara tocando saxofone. De 1935 a 1936, a orquestra contou com três saxofones, um trombone, dois pistões, um piano, bateria, contrabaixo e guitarra.
Em 1938, o maestro Luna Freire faleceu repentinamente e a direção da rádio confiou a regência da orquestra ao saxofonista Severino Araújo. Para assumir a Tabajara, Severino, que apreciava o estilo das orquestras americanas, com uma sonoridade sólida e penetrante baseada nos metais, impôs como condição a contratação de mais um trombone, um saxofone e um pistão. Com a concordância da rádio, foram chamados seus irmãos Manoel e Jaime para o trombone e o saxofone, e um colega, Manuel Nunes, que atuara com Araújo em Recife, para pistonista. Mirtilo Cardoso passou a ser sax barítono, e os demais instrumentistas permaneceram os mesmos.
Em 1940, foi contratado um outro trombonista, Genaldo Medeiros, irmão de Geraldo Medeiros (pistão). Pouco tempo depois, substituindo músicos que haviam deixado a orquestra, entraram mais dois irmãos de Severino Araújo, Plínio, no pistão, e José, o Zé Bodega, no saxofone.
Chegada ao Rio de Janeiro e o contrato com a rádio Tupi
Em dezembro de 1944 a tabajara recebeu da Rádio Tupi um convite para se apresentar no Rio de Janeiro. A estreia da orquestra aconteceu no dia 20 de janeiro de 1945 e teve grande repercussão no país, pois fora transmitida em cadeia para toda rede associada de Norte a Sul do Brasil. O contrato com a Rádio Tupi duraria 10 anos.
Assim como seu maestro Severino Araújo, que chegou antes com o pistonista Geraldo Medeiros, todos os demais músicos da Tabajara foram para o Rio de Janeiro cumprir o contrato com a rádio Tupi. Nesse ano a orquestra já contava com 18 instrumentistas.
Nesse período aconteceu mais uma modificação na Tabajara com Severino Araújo deixando o saxofone para assumir definitivamente a clarineta, e com K-Ximbinho passando a ser o primeiro saxofonista. Plínio Araújo, irmão de Severino, deixou o pistão e entrou no posto de Jorge Aires como baterista, pois este desistira da profissão.
Como contou Severino Araújo em uma entrevista concedida à Revista do Rádio em setembro de 1949, já há quatro anos na Cidade Maravilhosa:
– A orquestra nunca teve sorte com seus bateristas. Elemento principal do ritmo, a bateria é a única coisa que faz parar um conjunto. Mais preciosa do que o piano, o contrabaixo, o pandeiro ou a guitarra, a bateria da Orquestra estava sempre me preocupando. Saía um baterista e daqui que eu conseguisse ensaiar outro ao nosso modo levava um tempo imenso e tudo com prejuízo do conjunto. Plínio sempre tocou bateria por diletantismo e, sendo meu irmão, resolvi entregar a ele esse instrumento do ritmo. Ele topou e hoje é o nosso baterista, e posso declarar que foi o melhor baterista que já encontrei.
O contrato com a Continental e o início das gravações dos choros de Severino Araújo
A apresentação grandiosa de “Um chorinho na aldeia” com seu famoso solo de clarinete fez de Severino Araújo uma celebridade e, ainda em 1945 ele é contratado com a Orquestra Tabajara com exclusividade pela Continental, recebendo no ato da contratação a encomenda de quatro músicas para um novo disco da gravadora.
No mesmo ano, a orquestra gravou seu primeiro álbum, interpretando o choro “Um chorinho em Aldeia”, de Severino Araújo, e o samba “Onde o céu azul é mais azul”, de João de Barro, Alberto Ribeiro e Alcir Pires Vermelho.
É de Severino também outro clássico desse período, que acabou tornando-se um grande sucesso da MPB; o choro “Espinha de bacalhau”.
“Espinha de Bacalhau” foi escrita originalmente em 1937 e em 1981 ganhou letra de Fausto Nilo e com esta foi gravada nesse ano por Ney Matogrosso e Gal Costa. Uma das histórias desse choro é a de que o maestro Severino Araújo quis desafiar o fôlego do clarinetista K-Ximbinho. É considerado um choro difícil de tocar, pois é uma composição que quase não deixa o solista respirar dada sua melodia muito extensa.
Veja a letra de Fausto Nilo para Espinha de Bacalhau
Eu também sei desconsolar num tom difícil de cantar
É meu talento além do som daquela onda eu fui dançar
Dancei tão bem adocicando o teu batom como um bombom
Te lambuzei com a minha frase mais redonda
Atriz atroz da insensatez, fui traduzindo em português
O amor que fez tua falsidade mais profunda
E corro atrás da vida fácil em que você quer me levar
Quero morar num bangalô, chorar na mesa nunca mais
Saxofone ou Satanás me intoxica com teu gás
O lado bom do coração que nos separa dos metais
Se a vida é cara, gigolô, só meu amor conhece a cor
Das harmonias da Orquestra Tabajara
Sei que é difícil respirar quando a paixão quer sufocar
Meu coração, por isso eu canso na garganta, ah meu amor
O nosso veneno é no caroço da canção
É como um vício e tem sabor que a fala presa não desfaz
Não sei quem pintou tua cor, tua tez, teu sabor
Com a mocidade onde eu pecava
Minha emoção já não dava essa voz
Talvez sonhando dancei nu ao lado do abajur
Devo ter te beijado com paixão
Foi quando um popular me despertou , me deu notícias
Que esse amor de gafieira não tem mais
Apresentei o meu sorriso e alguém de lá me perguntou
Onde é que eu estou que não agarro essa morena pra dançar
E eu lhe falei não é preciso padecer na solidão
Meu coração, a solidão não vale a pena
Sei que é difícil respirar quando a paixão quer sufocar
Meu coração, por isso eu canso na garganta, ah meu amor
O nosso veneno é no caroço da canção
É como um vício e tem sabor que a fala presa não desfaz
Em 1946, Severino e a Orquestra Tabajara gravaram vários choros, dentre eles: “Brejeiro”, de Ernesto Nazareth, “Sonoroso”, de K. Ximbinho e “Molengo”, de Severino Araújo e Aldo Cabral. Este último ganhou letra e foi interpretado por Ademilde Fonseca, a Rainha do Choro, no início de sua carreira.
Letra do choro ‘Molengo’
Meu coração tem sido escravo de paixões,
Porque não sabe reagir às emoções,
Meu coração é um molengo enfim,
Sempre a sonhar, dentro em mim,
De vez em quando se apaixona por alguém,
E não se abala, por saber, se lhe convém,
E mesmo sendo sonhador,
Vive a sofrer de amor,
E eu também !
Eu já cansei desta ilusão,
De atender ao coração,
Outra vida quero viver,
Pois no amor quem não é forte,
É que vive a sofrer,
Mas eu agora vou mudar,
O destino, que é meu,
Vou dominar este molengo,
Que há de o conduzir, sou eu!
Meu coração tem sido escravo de paixões,
Porque não sabe reagir às emoções,
Meu coração é um molengo enfim,
Sempre a sonhar, dentro em mim,
De vez em quando se apaixona por alguém,
E não se abala, por saber, se lhe convém,
E mesmo sendo sonhador,
Vive a sofrer de amor,
E eu também.
Os choros “Malicioso”, de Geraldo Medeiros, e “Um chorinho para clarinete”, de Severino Araújo, foram gravados no ano seguinte.
Nesse mesmo ano, orquestra gravou um de seus maiores sucessos: o choro “Um chorinho pra você”, de Severino Araújo. O disco tornou-se o mais vendido nos meses que se seguiram.
Com o compositor, cavaquinsta e violonista Claudionor Cruz no vocal, a Tabajara gravou, em 1949, o choro “Cintilante”, composição de Claudionor Cruz e José de Freitas.
Em 1952, Severino gravou com a Orquestra Tabajara os choros “Saxomaníaco”, “Mirando-te” e “Um chorinho em Cabo Frio”, de sua autoria.
Em 1960 a Tabajara gravou pela Continental o disco 12 Chorinhos de Severino Araújo com as músicas: Um chorinho pra você, Um chorinho na aldeia, Um chorinho em Montevidéo, Puladinho, Oh! Clarinete gostoso, Um chorinho em Pinhal, Um chorinho delicioso, Mirando-te (a única música do disco que teve parceria de Severino com Aldo Cabral; todas as demais composições são assinadas apenas por Araújo), Pensando em você, Espinha de bacalhau, Um chorinho para clarinete, Um chorinho em Cabo Frio.
Em 1977, a Continental lançou o LP “A Tabajara de Severino Araújo”, trazendo regravações de antigos sucessos, além de novas gravações, como a do choro “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu.
Em 2000, Severino Araújo completou 60 anos à frente da Orquestra Tabajara, e lançaram um CD da com músicas de vários compositores e da chorona Chiquinha Gonzaga.
Em 2007, a gravadora Som Livre lançou uma série com 14 CDs especiais, sendo um dos destaques o disco dedicado a Orquestra Tabajara com 14 faixas, todas verdadeiros clássicos da música popular: “Eu sei que vou te amar” e “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, “As rosas não falam”, de Cartola, “Nervos de aço”, de Lupicínio Rodrigues, “Matriz ou filial”, de Lúcio Cardim, “Meu bem, meu mal”, de Caetano Veloso, “Dois pra lá, dois pra cá”, de João Bosco e Aldir Blanc, “Travessia”, de Milton Nascimento, “Samba do avião”, de Tom Jobim, “Dora”, de Dorival Caymmi, “Sentimental demais”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha, e “Asa branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e o choro “Carinhoso”, de “Pixinguinha e João de Barro.
Em 2010, as gravações dos choros “Peguei a reta”, de Porfírio Costa; “Sonoroso”, “Meiguice” e “Mais uma vez”, de K-Ximbinho e Del Loro; “Oh Clarinete Gostoso”, “Um chorinho em Cabo Frio”, “Um chorinho pra você”, e “Um chorinho delicioso”, de Severino Araújo; “Molengo”, de Severino Araújo e Aldo Cabral; “Chorinho na Gafieira”, de Astor Silva, e “Cinco malucos”, de Waldir Azevedo, foram incluídas no CD 4 da coletânea “Chorinho do Brasil – Vol. 2” da Warner Music.
Uma vida que se confunde com a história da Orquestra Tabajara
O maestro Severino Araújo – que foi por 74 anos o nome por trás do sucesso da Orquestra Tabajara – faleceu Rio de Janeiro, aos 95 anos de idade, em 2012, de insuficiência respiratória.
Nascido na cidade pernambucana de Limoeiro, Severino Araújo aprendeu o ofício com o pai, José Severino de Araújo, o Mestre Cazuzinha, músico autodidata, compositor e regente de bandas de música.
Aos oito anos, Severino já ajudava o pai em suas aulas de música e com apenas 12 fez o seu primeiro arranjo. Logo se tornou um apaixonado pelas big bands americanas, que ouvia em lojas de discos ou através de rádios de ondas curtas.
Na adolescência, com 16 anos, Severino iniciou sua carreira artística tocando clarinete e fazendo arranjos para a banda da cidade de Ingá, para onde a família se mudara. Sua fama se espalhou, e, em 1936, foi convidado para integrar como primeiro clarinetista a banda da Polícia Militar de João Pessoa, para onde se mudou.
Em 1936, entrou para a Orquestra Jazz Tabajara. Músico jovem e talentoso, foi convidado a integrar o grupo, estreando ao saxofone. Com a morte de Luna Freire, em 1938, Araújo assumiu o comando do grupo, levando seus irmãos, o trombonista Manuel, o pistonista e depois baterista Plínio, e os saxofonistas Zé Bodega e Jaime.
Em 1943, Severino Araújo foi convocado para o Exército, indo servir durante um ano na cidade de Aldeia, no interior de Pernambuco. É dessa época sua composição “Um chorinho em Aldeia”, que se tornaria o seu primeiro sucesso popular.
No ano seguinte, o maestro foi convidado para se apresentar na Rádio Tupi, no Rio. Por seu perfil, que unia sofisticação e apelo dançante, e também pelo repertório abrangente, a Orquestra Tabajara — como ficou conhecida — passou a ser chamada para animar salões populares e de elite.
Nesse período, o grupo foi contratado pela gravadora Continental, através da qual gravou seus primeiros discos. Em 1946, a orquestra — que teve Jackson do Pandeiro como integrante — fazia cerca de 32 bailes por mês. Logo, ela se tornou um ícone nacional ao emprestar o sotaque musical brasileiro à formação clássica das big bands americanas. Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn Miller foram algumas das maiores influências do maestro.
Em 1951, Araújo e sua orquestra se apresentaram com o próprio Dorsey nas festividades de inauguração da TV Tupi e, no ano seguinte, a Tabajara viajou para a França, acompanhado do vocalista Jamelão para fazer uma apresentação de carnaval em Paris. O sucesso fez com que os músicos ficassem um ano na capital francesa.
Na década de 1960, a orquestra teve passagens pela Rádio Nacional e pela TV Tupi.
No livro “Orquestra Tabajara de Severino Araújo” (Companhia Editora Nacional), lançado em 2009, o escritor Carlos Coraúcci lembra que a orquestra passou por diversos movimentos musicais e momentos da MPB — Bossa Nova, era dos festivais, tropicalismo, rock etc — convivendo com eles e se adaptando.
Quando reduziu suas atividades, nos anos de 1970, a Tabajara cedeu músicos para gravações de várias estrelas da MPB, como Chico Buarque, Roberto Carlos e Tim Maia.
Nos anos 1980, a recuperação veio com as domingueiras no Circo Voador, que se tornaram bastante populares, atraindo um novo público para a música de Araújo e seus comandados.
Ao longo de sua trajetória, a Orquestra Tabajara lançou mais de 300 discos, entre discos de 78 rotações, LPs e CDs.
Os integrantes se orgulham de muitos recordes: é a orquestra mais antiga em atividade no país. Severino é o músico que mais tempo dedicou a uma só banda: 74 anos. Em 2006, seu irmão Jayme Araújo assumiu o comando do grupo.
Ouça
Um Chorinho para Clarinete
Mumbaba (Severino Araújo e André Luiz de Mattos)
Chorinho pra você
Sonoroso
Orquestra Tabajara – de Severino Araújo – Nivaldo do Choro
Choro do archanjo (Jards Macalé)
Açude velho
Paraquedista (de José Leocádio)