Leonor Bianchi
Ano que vem, no dia 7 de abril, completar-se-ão 100 anos que Pixinguinha e os Oito Batutas apresentaram-se pela primeira vez. O fato se deu na sala de espera do cinematógrafo Cine Palais, localizado no coração do centro histórico da então capital federal, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na região da Cinelândia, Av. Rio Branco, N 145/ 147, a convite do gerente do cinema, sr. Isaac Frankel. Deste dia em diante a música (popular) brasileira nunca mais seria a mesma.
Ernesto Nazarteh, e Pixinguinha com os Oito Batutas são personagens recorrentes no contexto das salas aristocráticas de exibição de cinema, mas inúmeros chorões se apresentavam em salas de espera dos antigos cinematógrafos.
Nazareth apresentava-se na sala de espera do Cine Odeon, que ficava em frente ao Cine Palais. Começou suas apresentações ali no em 1909 tendo composto inclusive um choro muito conhecido com o nome do cinema, oferecida aos donos da empresa Zambelli & Cia.”, proprietários do cinema, que na época era o mais luxuoso do Rio.
“Odeon, tango brasileiro publicado em 1909 pela Casa Mozart (E. Bevilacqua & Cia.) em edição custeada pelo autor, dedicado “à distinta empresa Zambelli & Cia.”, proprietária do Cinema Odeon. Desde 1909 Nazareth tocava na sala de espera do referido cinema, o mais luxuoso da cidade. Muitas pessoas frequentavam o Odeon só para ouvir Nazareth tocar, deixando inclusive de assistir aos filmes.
Durante a vida de Nazareth, Odeon não foi uma peça de especial destaque, tendo sido gravada apenas em 1912, pelo próprio compositor juntamente com Pedro de Alcântara ao flautim. Porém algumas décadas após a morte do compositor, Odeon tornou-se seu maior sucesso, especialmente depois que recebeu letra do poeta Vinícius de Moraes na década de 1960. Também possui uma letra anterior, de Hubaldo Maurício, raramente cantada. Até 2012, alcançou a impressionante marca de 325 gravações comerciais, feitas em diversos países.
A famosa melodia da primeira parte é construída de uma maneira engenhosa, tocada pela mão esquerda do pianista, enquanto a direita pontua com acordes. Nazareth utiliza este padrão em outras peças como Fon-Fon!, Retumbantee Tenebroso. É interessante também notar que tanto no manuscrito autógrafo como na gravação do próprio Nazareth, a parte B é repetida novamente no final da peça, gerando a forma extendida ABACABA (em vez do tradicional ABACA). Sabemos também que o compositor chegou a tocá-la diversas vezes em sua turnê por São Paulo em 1926/1927 e também no Rio de Janeiro.
Hoje Odeon figura no imaginário coletivo sendo um dos choros mais conhecidos do Brasil e do mundo, ao lado de Apanhei-te, cavaquinho e Brejeiro.
Embora Nazareth tenha composto esta música sem parceiros, é comum encontrarmos em contracapas de CDs a coautoria erroneamente creditada a Ubaldo Sciangula Mangione, presidente da atual Mangione, Filhos & Cia Ltda., segundo informação levantada pela jornalista Daniella Thompson“. (1)
Letra de Vinícius de Moraes
1ª Parte
Ai quem me dera
o meu chorinho
tanto tempo abandonado,
e a melancolia que eu sentia
quando ouvia
quem me fazer tanto chorar.
Também me lembra
tanto, tanto,
todo o encanto
de um passado,
que era lindo,
era triste, era bom
igualzinho a um chorinho
chamado Odeon.
Terçando flauta e cavaquinho
meu chorinho se desata.
Tira da canção do violão
esse bordão
que me dá vida
e que me mata.
É só carinho
o meu chorinho
quando pega e chega
assim devagarzinho
meia-luz, meia-voz, meio-tom
meu chorinho chamado Odeon.
2ª Parte
Ah, vem depressa
chorinho querido, vem
mostrar a graça
que o choro sentido tem
quanto tempo passou
quanta coisa mudou
já ninguém chora mais por ninguém.
Ah, quem diria que um dia,
chorinho meu, você viria
com a graça que o amor lhe deu
pra dizer “não faz mal,
tanto faz, tanto fez,
eu voltei pra chorar com vocês.”
3ª Parte
Chorinho antigo, chorinho amigo
eu até hoje ainda persigo essa ilusão
essa saudade que vai comigo
e até parece aquela prece
que sai só do coração.
Se eu pudesse recordar
e ser criança
se eu pudesse renovar
minha esperança
se eu pudesse me lembrar
como se dança
esse chorinho
que, hoje em dia,
ninguém sabe mais.
1ª Parte (para finalizar)
Chora bastante meu chorinho
teu chorinho de saudade.
Diz ao bandolim pra não tocar
tão lindo assim
porque parece até maldade.
Ai, meu chorinho
eu só queria
transformar em realidade
a poesia
ai que lindo, ai que triste, ai que bom
de um chorinho chamado Odeon.
Letra de Hubaldo Maurício
Ó que saudade das «Soireés» e «Matinês« lá do Odeon…
E lá o saguão, o pianista muito sério, o seu piano a dedilhar…
Os namorados, no intervalo, passeavam a se olhar!
Bilhetes mil, tinham asas, voavam era o jeito de amar.
E, mais tarde, na sala de projeção
O «mocinho» lutava contra o «vilão» era luta, luta dura
Soco, tapa, ponta-pé, bofetão…
A «mocinha» chorava e torcia, em vão…
A platéia gritava com emoção
Pega, bate, pisa, mata, mata, esse grande «vilão«!
E na saída, pra amenizar as emoções
No saguão põe-se a escutar
Ágil pianista tocando tangos,
Choros brejeiros, valsas lentas bem dolentes,
Encantados, embalados, num repente
O pianista vão cercando,
Se chegando, se chegando, quase, quase, quase a dançar, ah!…
Letra em francês gravada por Georges Moustaki em 2003:
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Blottis à deux dans un fauteuil
Les amoureux suivaient d’un oeil
Indifférent
Tout ce qui se passait dans
La salle ou sur l’écran
Je me souviens de ce ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Parfois
On découvrait de vrais trésors
« Hôtel du Nord » et « Les enfants du paradis »
Les écoliers séchaient leurs cours
Pour y aller rêver d’amour
En regardant le corps transi
Les dentelles noires d’Arletty
Dans l’ombre le monde
Semblait si pur
Sans misère sans guerre
Sans rien de dur
Tarzan Zorro
Pancho Villa
Robin des Bois
Triomphaient des salauds
Nous étions des royalistes
Devant Garbo
Nous devenions marxistes
Façon Groucho
Nos héros étaient des héroïnes
Qui mataient les machos
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Tous les Jouvet tous les Chaplin
« Le jour se lève », « Helzapoppin »
Et « Casque d’or »
Nous en mettaient plein le cœur
Et c’était le bonheur
Seul dans son coin
Un musicien
Accompagnait les drames et les comédies
Si son piano
Jouait un peu faux
Aucun de nous n’en faisait une maladie
Jolies valses de grand-mère
Mazurkas d’avant la guerre
Il connaissait
Tous les succès
Qui avaient fait
Pleurer Margot
Cher musicien
Tout ça est loin
Mais ma mémoire me fredonne tes refrainsEet je revois
Le cinéma
Où chaque jour se retrouvaient tous les copains
Compagnon de ma jeunesse
Je te garde ma tendresse
Tout ça est loin
Mais jamais jamais jamais jamais jamais jamais jamais
Je ne t’oublierai
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Les amoureux y sont toujours
Les écoliers sèchent leurs cours
Pour y aller rêver d’amour
La vie n’est qu’un « Eternel retour »”
Ambiente frequentado pelas elites, esses cinemas não eram similares aos cine poeiras, ou cine pulgas, ou às tendas onde eram realizadas as projeções de pequenos filmes, logo nos primeiros anos em que o cinema chegara ao Brasil trazido pelos irmãos Segretto, em 1896.
Entre 1896 e 1907, as exibições de cinema aconteciam de forma ambulante, pois ainda não havia um público formado para recepção, digamos assim, desta arte.
Contudo, com a inauguração do Salão de Novidades Paris, no Rio de Janeiro, em 31 de maio de 1897 o cinema passa a ter sua primeira sala com uma programação regular de exibição na cidade. Os proprietários dessa ‘sala’ eram os empresários desbravadores da família de imigrantes italianos Segreto e José Roberto Cunha Sales, um português e grande investidor na implantação de uma indústria de entretenimento no Brasil, já nos primeiros anos do século XX.
Cunha Sales era médico, teatrólogo, prestidigitador, fundou primeiro museu de cera de Portugal e inventou uma fórmula de sabão e de um remédio contra todas as moléstias e bicheiro. Pode-se afirmar que seus recursos financeiros, os que lhe rendiam milhões, vinham de negócios e transações escusas.
Uma imprensa racista que acabou se enforcando e gerando MKT espontâneo aos Oito Batutas
Embora o conjunto de Pixinguinha tivesse feito bastante sucesso na ‘temporada’ em que tocou no Cine Palais, por estarem apresentando-se num ambiente elitizado, a presença de um grupo de músicos pobres e negros causou polêmica e a imprensa carioca mantida pela aristocracia logo se posicionaria mostrando a face reacionária de uma elite brasileira espelhada no modo de vida europeu. Representando então os interesses dos messenas, seus patrocinadores inclusive, os jornais iniciaram uma campanha preconceituosa contra os Oito Batutas. Campanha esta que apenas serviu para impulsionar ainda mais a fama do conjunto além mar, pois da sala do Cine Palais foram os Batutas para os salões franceses, sendo os primeiros instrumentistas brasileiros a fazerem um espetáculo na Europa, no caso deles, em Paris (França), em 1922.
Foto: Livro Os Oito Batutas: História e Música brasileira nos anos 1920, de Luiza Mara Braga Martins.
(1) Site Ernesto Nazareth 150 anos. (https://www.ernestonazareth150anos.com.br/works/view/136)
Segue… o artigo. Acompanhe a Revista do Choro.