A casa do D’Áuria: um oceano Atlântico de memórias – Parte II


Leonor Bianchi

Impossível contar a história do choro, sobretudo, em São Paulo, sem falar do Conjunto Atlântico. Símbolo maior do gênero, o regional teve início nas reuniões promovidas no começo dos anos de 1950, às terças e sextas-feiras, na avenida Rudge, 944, no bairro do Bom Retiro; casa do violonista Antonio D’Áuria.

O pesquisador José Ramos Tinhorão considera o ano de 1952 como sendo o ano de surgimento do ‘Atlântico’, que de fato fez nesse ano sua primeira apresentação pública, em 18 de setembro, durante o Festival de Violões da igreja Nossa Senhora da Anunciação, que aconteceu no bairro de Vila Guilherme, na capital paulista. O líder do regional, Antonio D’Áuria, num depoimento dado a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 1976, disse que o surgimento do Conjunto Atlântico se deu por volta de 1951, 1952. Em 1950 ele estava no Rio, tocando na Lapa, na casa do Barão (Juracy Barreto Wey) e nas rodas que aconteciam na casa do Moacir, irmão do Barão. Não estava em São Paulo nas rodas que ocasionaram o início do Conjunto Atlântico.

Formador de opinião e crítico musical respeitado já à época, o jornalista Tinhorão fora o grande responsável, ao lado de Fernando Faro e Julio Lerner pela introdução do Conjunto Atlântico na mídia e no ambiente da música profissional.

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A década de 1970 foi marcada pelo ‘centenário do choro’ e a mídia soube aproveitar o mote promovendo e exaltando o gênero na televisão. A TV Cultura de São Paulo (canal 2) seria uma importante janela para o choro nesse período, e foi lá que o Conjunto Atlântico se apresentou por diversas ocasiões em programas como o “MPB Especial” e o “Choro das sextas-feiras”, que ficou durante anos no ar. Na onda midiática ganharam espaço também na TV Bandeirantes, quando de sua participação nos festivais nacionais de choro, nos anos de 1977 e 1978.  

Foi nessa década também que o Atlântico ganhou visibilidade nacional. Com mais de 300 músicas no repertório fez uma temporada de casa lotada no Teatro Franco Zampari, e do teatro iam todos para uma grande roda de choro na casa do D’Áuria após os espetáculos.

O regional teve algumas formações, mas sempre sob a liderança e organização de D’Áuria. Nesse repertório, inseriram composições de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, João Pernambuco, Luiz Gonzaga, Lupicínio Rodrigues, Lamartine Babo, Paulinho da Viola…

Já como um regional de choro consagrado, há mais de vinte anos tocando, o Conjunto Atlântico ganhou o prêmio de ‘Revelação do ano na Música Popular Brasileira’, em 1974, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Prêmio este dividido com o compositor Julinho de Adelaide. Dois anos depois, os integrantes do regional acompanhavam Chico Buarque interpretando ‘Meu caro amigo’, composição dele em parceria com Francis Hime, num especial de fim de ano da TV Bandeirantes. O sucesso do regional perdurou até 1976, quando pararam de se apresentar.

Rumos diferentes

Em 1977, no seu auge, o regional foi convidado a excursionar pelo interior de São Paulo através do Projeto Pixinguinha. Como o grupo era integrado por músicos não profissionais, ou seja, que mantinham fontes de renda em outras atividades que não a música, a oportunidade que tinham de se apresentar para um público maior e dentro de seu estado, que deveria ser um momento de satisfação e alegria entre os músicos do regional foi justamente o motivo da fragmentação do conjunto, que acabou tendo desfeita sua formação original, pois apenas D’Áureia e Jaime, cavaquinista do conjunto, já eram aposentados e poderiam ir com a turnê. D’Áuria encarregou-se de contratar substitutos e criou rapidamente uma formação para se apresentar no Projeto Pixinguinha (quem foram os músicos dessa formação?). Os demais integrantes do Atlântico não puderam deixar seus postos de trabalho e consequentemente, não foram na viagem, deixando o regional. Foram eles: Izaías, Waldir, Miro e Israel. Estes, para não deixar de tocar e manter o espírito do choro vivo, permaneceram organizados em torno da música sob o nome de regional ‘Izaías e seus chorões’, grupo em atividade até hoje, liderado pelo impecável bandolinista Izaías Bueno de Almeida, que ano passado completou 80 primaveras em pelo vigor ao instrumento.

Mas, embora o Conjunto Atlântico tivesse se diluído em 1976, em 1977 ainda fizeram algumas apresentações com a ‘antiga’ formação; dentre elas, no especial do Chico Buarque já mencionado, no ‘I Festival Nacional de Choro’ da TV Bandeirantes, no programa ‘Fino da Música’, da Jovem Pan e em apresentações promovidas no interior de São Paulo pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. O conjunto ainda tocou junto no II Festival Nacional de Choro da TV Bandeirantes, em 1978, a composição de D’Áuria,’Pingo d’Água’.

Novas rodas, novos músicos, novas memórias

O No final de 1978 consolidou-se a formação do regional Izaías e seus chorões, mas Antonio D’Auria não deixaria de manter as rodas de choro em sua casa recebendo os companheiros de sempre: Jaime, Walter Veloso, Renato Petra e Bitelli, e novos instrumentistas, como os violonistas Arlindo, Lula Gama e Marco Bailão 6 cordas, o flautista Luiz Henrique, Orival Silvestre, que tocava Timba, os bandolinistas Ayrton, Chiquinho, Fernando e Eduardinho Miranda, o zanfoneiro Zezinho, o clarinetista Berê, o cavaquinista Toninho Batateiro, e Altair,  pandeirista, neto do anfitrião.

O conjunto que D’Áuria havia formado permaneceu se apresentando até os anos de 1980, mas com menos intensidade. As rodas em sua casa também continuaram a acontecer, até meados dos anos de 1990, quando D’Áuria começou a desenvolver Alzeimer. Em 1999 o criador do Conjunto Atlântico e fomentador e inúmeras rodas de choro em sua casa, Antonio D’Áuria faleceu deixando um acervo valioso de documentos que narram a história de um dos mais representativos regionais de choro que já ouvimos.

O Instituto Moreira Salles adquiriu o acervo de D’Áurea com a ajuda do seu neto, o pandeirista Altair Miranda, que participou intensamente das rodas na casa do avô. Foram doados ao IMS, que considera este um dos mais importante acervos da história do choro em São Paulo, “centenas discos, partituras e recortes de jornais e revistas, destacando-se um grande número de fitas de rolo com as gravações das rodas de choro que realizava no estúdio improvisado na garagem de sua casa” (AMARAL, 2017).

 

Semana que vem segue o artigo, que teve como fonte o livro ‘Conjunto Atlântico: uma história de amor ao choro’, de José de Almeida Amaral Júnior, publicado no final de 2017.

A foto é do título que D’Áuria recebeu em 1986 de sócio Honorário da Sociedade Amigos do Bom Retiro. A insígnia foi concedida pelo “reconhecimento e gratidão daquela comunidade pelos serviços prestados à tecnologia nacional, como inventor que foi, sempre interessado nas coisas da mecânica e da ótica, igualmente pelos trabalhos como violonista, ilustre defensor do choro e genuína música brasileira”.

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Author: imprensabr