Madrinha do Samba e do Choro


Leonor Bianchi

Hás seis meses, a Sony Music disponibilizou nas plataformas digitais alguns dos principais títulos, até então fora de catálogo, da extensa e preciosa discografia da cantora Beth Carvalho, falecida no último dia 30 de abril, no Rio de Janeiro, aos 72 anos. Entre os discos da cantora, dois que podem ser considerados seminais para o samba, De Pé no Chão (1978) e No Pagode (1979), produzidos por Rildo Hora. Além destes Beth (1986), com composições de nomes que ela ajudou a tornar conhecidos (Almir Guineto e Zeca Pagodinho), Ao Vivo em Montreux (1987) e mais duas coletâneas.

No primeiro álbum está com a turma do bloco Cacique de Ramos no segundo repete a dose, e populariza no país o termo “pagode”, sinônimo de festa de samba, que acabou batizando o meloso samba romântico. Ressalte-se que há 40 anos, não havia necessidade de se acrescentar um “de raiz” ao gênero para que se entendesse que se tratava de samba autêntico. Em De Pé no Chão o grande sucesso foi Vou Festejar (Jorge Aragão/Dida/Neoci), e No Pagode, foi Coisinha do Pai (Jorge Aragão/Almir Guineto/Luiz Carlos da Vila).

Beth Carvalho foi a cantora mais popular do Brasil, entre 1971 a 79, quando levou o samba às paradas do país inteiro, tornou a música do subúrbio carioca palatável a todas classes sociais. Mas até então era popular por Andança (Danilo Caymmi/P Tapajós/ Eduardo Souto), uma “toada moderna”, que defendeu no Festival Internacional da canção de 1969, com o conjunto de iê-iê-iê The Golden Boys. A música foi um dos maiores sucessos do ano, e deu nome ao primeiro álbum de Beth Carvalho, lançado há 50 anos.

Um ano antes de Andança, ela era vocalista de um grupo à Sergio Mendes, o Conjunto 3 D, de que participavam, entre outros, Antônio Adolfo, Hélio Delmiro, e Eduardo Conde. Andança estourou, é tocada até hoje, virou obrigatória em repertório de cantor de barzinho, mas foi com o samba de compositores de escolas, ou da Zona Norte carioca que marcou época. Frequentadora das rodas do Cacique de Ramos, revelou o grupo Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Sombrinha, e Zeca Pagodinho. Além destes popularizou músicas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Nei Lopes.

Beth Carvalho começou, em 1965, gravando bossa nova, um compacto, na RCA, com as obscuras Namorinho (Mário de Castro/Athayde), e Por quem Morreu de Amor (Menescal/Bôscoli). Mereceu inclusive um tratamento de primeira. O arranjador nesta sua estreia foi Eumir Deodato e Roberto Menescal toca violão em Por quem Morreu de Amor. Seu LP de estreia é de uma fase de entressafra da MPB, com censura batendo forte, muita gente no exílio. Canções de metáforas obscuras tentavam driblar os censores. Influências dos arranjos do pop americano de Jimmy Webb ou Burt Bacharach. Predominavam as canções de Taiguara, Edmundo Souto, Tibério Gaspar.

No começo dos 70, Beth Carvalho descobriu que podia agradar com o samba do subúrbio. Em 1973, ela tocou no Carnaval com o samba-enredo Mangueira em Tempo de Folclore (Jajá/Preto Rico/ Manoel). No ano seguinte, Beth emplacaria seu primeiro grande sucesso no samba com 1800 Colinas (Gracia do Salgueiro).

Começando com o sucesso arrebatador de Andança até chegar a Marte com Coisinha do Pai, Beth traçou uma trajetória vitoriosa laureada por vários prêmios, inclusive um Grammy pelo conjunto da obra. Assim que possível, informaremos sobre o sepultamento. Página oficial de Beth Carvalho.

Rivalidade

Coincidentemente, na mesma época a mineira Clara Nunes, que começou nas hostes do iê-iê-iê, estourou com o samba Você Passa Eu Acho Graça (Ataulfo Alves/Carlos Imperial), que mudou o curso de sua carreira. No início dos anos 70, ninguém se lembrava mais de sua militância na Jovem Guarda. Agora era a Clara sambista. As duas sambistas ensaiaram uma rivalidade que lembrou a dos velhos da Rádio Nacional. Beth Carvalho, por exemplo, alfinetava Clara, atribuindo seu sucesso no rádio ao fato de ela ser casada com um produtor e radialista famoso, Adelzon Alves. Clara queixava-se que Beth vestia branco para imita-la.

Rivalidades à parte, o samba nunca esteve em melhor situação do que na época em que fazia sucesso com as duas. Embora tenha continuado a gravar, fazer shows, parado uma época por problemas de coluna, Beth Carvalho deixou de fazer sucesso a partir da implantação de uma monocultura musical no país, inclusive a do pagode romântica, daninha ao samba tradicional. Suas últimas gravações aconteceram em janeiro de 2019, ao lado de Nelson Sargento, uma participação no EP do jovem sambista, da Mangueira, Enzo Belmonte, e com seu produtor preferido, Rildo Hora.

Madrinha do samba e do choro

Beth Carvalho é conhecida como a Madrinha do Samba, mas é claro que em 50 anos convivendo com a nata do samba ela gravou e tocou também com inúmeros instrumentistas de choro. Nos anos de 1970, gravou Arrasta Pé, de Waldir Azevedo, e também tem interpretações para Carinhoso, de Pixinguinha.

Defensora da cultura popular brasileira

Mais recentemente, Beth desenvolveu um trabalho com um dos maiores bandolinistas de choro da atualidade, Hamilton de Holanda, que falou à Revista do Choro sobre a experiência de trabalhar com a ‘Madrinha’ e suas memórias desses momentos especiais ao lado da cantora.

Hamilton conta, que desde criança ouvia Beth Carvalho nos discos que seu pai botava para tocar na vitrola. Segundo ele, sua memória afetiva auditiva traz muitas referências da cantora sambista. Ele lembra, que as duas primeiras músicas que cantou na vida, e existe uma uma gravação feita pelo seu pai numa fita K7 deste momento, foi dele cantando uma música do João Nogueira e outra da Beth Carvalho: “ô  coisinha tão bonitinha do pai…”

Pessoalmente, o encontro entre Hamilton e Beth aconteceu no final dos anos de 1990, quando ele foi convidado pela cantora para participar de um projeto que ela estava fazendo em homenagem ao grande sambista Nelson Cavaquinho. Foi quando gravaram juntos pela primeira vez.

A memória que ele guarda da cantora é de uma artista generosa, sempre preocupada com os outros músicos, com a cultura popular brasileira, com o samba…

“Tenho a memória de uma pessoa sempre muito generosa e atenta aos novos compositores, aos músicos de uma maneira geral”, diz Hamilton, lembrando também que Beth esteve no hospital quando do nascimento de sua filha Rafaela.

Para Holanda, são vários os legados que a cantora deixa, a começar pelo seu cuidado com o samba.

“Ela era uma defensora da cultura popular brasileira e do samba, muito perfeccionista na hora de gravar, nos ensaios”, observa Hamilton.

Para o bandolinista, outra marca forte que Beth Carvalho deixa na história da música popular brasileira e do samba é sua voz, inimitável e forte.

Ouça o depoimento de Hamilton de Holanda sobre Beth Carvalho

Uma referência para as mulheres do samba e do choro

Nilze Carvalho, cavaquinista,  sambista e chorona carioca de berço falou sobre  Beth Carvalho, a quem conheceu no Clube do Samba com apenas 13 anos de idade, iniciando sua carreira musical.

Revista do Choro: Você conheceu pessoalmente Beth Carvalho? Como foi esse encontro, qual foi a situação,
quantos anos você tinha?

Nilze: Conhecia a Beth, sim. Não sei precisar qual foi o momento. Tenho uma lembrança
remota que acredito, tenha sido a primeira vez que estive com ela e foi uma noite no clube do samba, eu devia ter uns 13.

Revista do Choro: Você tocou com Beth Carvalho? Em quais situações?Gravaram juntas?

Nilze: Nossa! É curioso… apesar de nos cruzarmos toda hora nas rodas, show e
eventos eu nunca participei de nenhuma gravação dela. Na verdade houve  um convite mas eu não pude participar por estar viajando.

Revista do Choro: Beth Carvalho sempre foi cantora e também tocava cavaquinho, diferentemente de você, que durante um bom tempo preferiu trabalhar como instrumentista. Recentemente, você optou por cantar também. Neste Norte, de ser uma instrumentista e passar a cantar já com tantos anos de carreira, você teria algo a dizer no que tange às suas referências de cantoras de samba? Você, em algum momento se inspirou na figura de Beth Carvalho para desenvolver o seu trabalho como cantora, como sambista e agora como cantora de samba, especificamente
falando?

Nilze: Apesar de ter começado na música instrumental, aos 12 eu já começava a me arriscar no gogó kkk (aquela voz bem infantil.) Mas aos 15 quando eu viajei pra Europa, foi que comecei a cantar efetivamente e de lá prá cá venho me aprimorando. Sem dúvida a Beth Carvalho junto de Clara, Elizeth, Alcione, Elis, Leny foram e são inspirações até hoje. Não me canso de ouvi-las.

Revista do Choro: Para você,  qual o maior legado deixado por Beth Carvalho para o público e também para os instrumentistas e estudantes de cavaco, para as novas cantoras de samba e pessoas que aparecem na cena da música popular brasileira atualmente, mas mais especificamente no cenário do samba?

Nilze: Acho que além da voz sem igual que ela tinha, me chamava a atenção sua postura em relação ao samba, como ela o defendia, o tratava com enorme carinho, e também o respeito que ela tinha para com os compositores, sempre buscando dar luz a esses artistas que muitas vezes passam despercebidos. Acho que todos nós devemos nos ater a essência das coisas assim como ela fez, ser verdadeiro nos propósitos, cantando, tocando, vivendo.

Revista do Choro: Qual o trabalho da cantora que você mais gosta?

Nilze: Difícil dizer! Vou deixar três aqui: A chuva cai, Meu guri e Folhas secas.

Trinta anos ao lado da Madrinha
Amigo e parceiro profissional de Beth Carvalho por 30 anos, Carlinhos 7 Cordas é um de sobrinhos da madrinha. Já frequentando todas as rodas de samba que existiam no Rio, foi ‘descoberto’ pela cantora no início dos anos 90, num bar da Lapa, e com ela conheceu o mundo tocando.

Começou a trabalhar com Beth efetivamente em 1992, gravando todos os discos que ela fez desde então.  Nessa época, Beth estava fazendo algumas mudanças em sua banda, como por exemplo, substituindo o contrabaixo por um violão de 7 cordas, instrumento tipicamente do Choro.

Em sua memória, Carlinhos guarda com muito carinho a primeira viagem internacional que fez com Beth, quando ela, num dado momento da apresentação, parou o show para falar sobre ele e o violão de 7 cordas.

“Ela parou o show para falar quem eu era, para apresentar o meu instrumento, falou sobre o violão de 7 cordas. Isso foi muito importante! A Beth tinha essa relação de respeito muito grande com os músicos. Isso foi muito bacana para mim. Hoje eu conheço quase 30 países e em todos esses lugares eu fui tocando, acompanhando a Beth Carvalho”, conta o violonista.

Ouça o depoimento emocionante de Carlinhos 7 cordas sobre sua madrinha Beth Carvalho

 

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Author: imprensabr