Conhecida como ‘A voz tropical’, ela foi a primeira intérprete do choro ‘Murmurando’
Por Leonor Bianchi
Há 100 anos nascia a cantora Odete Amaral (Niterói, 28/ 04/ 1917 – Rio de Janeiro, 11/ 10/ 1984), diva da Era de Ouro do Rádio no Brasil, intérprete de grandes sucessos da música popular brasileira durante as décadas de 1930 e 1970.
Foi através do samba que Odete chegou ao rádio e foi cantando sambas famosos que ela fez sucesso em sua carreira. Contudo, o único choro que interpretou deixou para sempre sua voz imortalizada na letra do maior sucesso do compositor Mário Rossi (Petrópolis, 23/ 05/ 1911 – Rio de Janeiro, 12/ 10/ 1891) para a melodia do maestro Otaviano Romeiro Monteiro, mais conhecido como Fon Fon (Santa Luzia do Norte, 31/ 01/ 1908 – Atenas, 10/ 08/ 1951), em ‘Murmurando’. Aliás, seu maior sucesso também. A música foi gravada em 1944 por Odete, na Odeon e depois só fora interpretada em outra gravação fonográfica, em 1968, na voz da imortal Elizeth Cardoso, no show clássico com Zimbo Trio e o Conjunto Época de Ouro, que ainda tinha em sua formação Jacob do Bandolim. Aos regionais de choro ficou a enorme responsabilidade de transmitir às novas gerações sua melodia, e neste contexto, o cinquentenário Conjunto Época de Ouro acabou sendo o grande responsável por sua popularização nas últimas cinco décadas.
A letra de Murmurando, escrita pelo então famoso compositor Mário Rossi, fala do revés da felicidade que nos traz o amor onde o mal vence o bem e a traição é capaz de matar um amor verdadeiro. Contudo, como o amor sempre tem de vencer, uma vez que ele é algo sagrado, somente o arrependimento do traidor diante de Deus poderia imortalizar esse amor vítima de uma traição…
“Murmurando esta canção
Eu sei que o meu coração
Há de suplicar amor
Vem matar tanta dor
Já não há luas-de-mel
Nem mais estrelas no céu
Um anel de ambições envolveu irmãos
E será um poder fatal
Se o bem não vencer o mal
Amor, tanta dor há de chegar
Ao fim
É melhor, é bem melhor
Viver sem imitar Caim
Por que mentir, trair, matar
Em vez de amar?
[REFRÃO]
Será que a negra escuridão
Pode apagar a luz do Sol?
Será que o nosso coração
Pode viver sem um crisol?
Se Jesus ao levar a cruz além
Não deixou de pregar o amor a alguém
Além de todas as razões
Quero mostrar aos meus irmãos
A lição de perdão do grande rei, o criador
Que ao expirar sobre o tabor
Quis imortalizar o amor”
Uma carreira explosiva!
Em 1936, ela gravou seu primeiro disco, embora já estivesse no ambiente da música e das rádios desde 1935, ano e que sua irmã, que adorava ouvi-lá cantar, a levou para fazer um teste na Rádio Guanabara, importante emissora da capital federal daquele tempo, e que na época era dirigida por Alberto Manes. Acompanhada pelo grande chorão e violonista Pereira Filho e pelo pianista Felisberto Martins, Odete interpretou a música ‘Minha embaixada chegou’, de Assis Valente, que sempre emplacava todas as suas composições. Ao final do teste ela havia conquistado todo o juri, que a escalou para um programa dominical da rádio; o ‘Suburbano’.
Odete era a filha caçula de uma família de humildes agricultores das várzeas de Niterói. Com um aninho de vida, o pai, Alfredo Amaral, que também foi motorista de caminhão, e a mãe, Albertina Ferreira do Amaral, mudaram-se para o Rio de Janeiro e foi lá que ela cresceu. Quando mocinha trabalhou como bordadeira na América Fabril e estudava no período noturno. Foi a irmã que a levaria para o mundo artístico no início em 1935.
Em 1938, Odete Amaral, ainda bem no início de sua trajetória artística, casou-se com uma das maiores vozes do Rádio do seu tempo; o cantor Cyro Monteiro, que nesta época também estava no começo da carreira. Foi um casamento de muita exposição já que ambos eram celebridades do rádio. Tiveram um filho único que herdou o nome do pai, mas mesmo com essa união para o resto de suas vidas, o casamento não resistiu e em 1949 separaram-se.
‘A voz tropical’ das rádios foi sucesso também no cinema, nos cassinos e no teatro
A alma de artista de Odete a levou para outras performances e ela atuou também, além dos estúdios das rádios gravando discos, no teatro, cinema e cassinos.
No metiê do Rádio, onde ela transitou com mais intensidade, ficou conhecida como ‘A voz tropical’; cognome dado pelo radialista César Ladeira, na Rádio Mayrink Veiga. E em se tratando de apelidos, teve ainda o de ‘Empadinha’; maneira brincalhona pela qual era chamada pelos amigos da emissora.
A voz tropical de Odete foi emprestada durante quatro décadas para quase todas as grandes gravadoras do seu tempo: Odeon, Victor, Columbia, Star, Todamérica, Polydor e Copacabana.
As músicas de maior sucesso interpretadas Odete Amaral foram o choro “Murmurando”, o samba “Vem, amor”, o samba-canção “Carteiro”, de Lupicínio Rodrigues, “Colibri” e “Foi de madrugada”, de Ary Barroso.
Odete atuou muito nos coros das rádios. Os músicos gostavam do seu timbre e do seu tom sempre muito afinado. E foi por causa da boa afinação que sempre recebia convites para integrar os coros de gravações de cantores famosos contemporâneos seus, como Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Carmen Miranda e Dircinha Batista.
O encontro com Almirante foi muito importante para sua carreira. Através da influência do radialista, em 1936, Odete começou a cantar também na Rádio Clube e na Rádio Ipanema, além de fazer o programa Suburbano na Guanabara. O cassino mais badalado do Rio – o Cassino Atlântico -, estava sendo inaugurado em 1936 e também nessa ocasião Odete se apresentou.
No teatro estreou numa revista encenada no João Caetano, cantando “Ganhou, mas não leva”, de Milton Amaral.
Atuou ainda em várias emissoras, dentre as quais a Sociedade, a Philips e a Cruzeiro do Sul.
Em 1936, gravou seu primeiro disco na Odeon interpretando os sambas “Palhaço”, de Milton Amaral e Roberto Cunha e “Dengoso”, de Milton Amaral. Em seguida, foi levada por Ary Barroso para a RCA Victor onde estreou com a batucada “Foi de madrugada” e a marcha “Colibri”, ambas de Ary Barroso. Neste ano ainda, Odete assinaria seu primeiro contrato com uma rádio; seria com a Mayrink Veiga.
Em 1937, participou da inauguração da Rádio Nacional, onde permaneceu por dois anos. No mesmo ano gravou o samba “Sorrindo”, de Cyro Monteiro e L. Pimentel e a rumba “Terra de amores”, de Gadé e Valfrido Silva.
Nesse ano, Odete deu uma entrevista para a Revista Carioca, que foi publicada na edição de 30 de outubro de 1937. Ao jornalista ela disse: “Nasci em Niterói. Comecei a cantar quando tinha três anos de idade. Estreei há dois anos na Rádio Guanabara. Durante um ano conheci os microfones de todas as estações da cidade; durante outro ano, cantei exclusivamente para a Cruzeiro do Sul. Contratada agora pela Nacional, pretendo que ela me prenda por muitos anos (…). O samba-canção é o gênero que prefiro. O cinema é grande, mas o rádio é maior”.
Odete Amaral teve como um de seus maiores produtores musicais a figura de Ricardo Cravo Albim. Segundo seu Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira, “em 1938 ela gravou de Ataulfo Alves e Alcebíades Barcelos os sambas “Ironia” e “Não mando em mim” e de João da Baiana o samba “É melhor confessar do que mentir”. Em 1939, participou do filme da Cinédia “Samba da vida”, e foi contratada pela Rádio Cultura de São Paulo, onde atuou durante uma ano e meio, percorrendo com Cyro Monteiro, nos intervalos dos programas , vários estados do Brasil. Ainda em 1939 gravou com Cyro Monteiro os sambas “Sinhá, sinhô” e “Bem querer”, ambos de Aloísio Silva Araújo. Em 1940 gravou a marcha “O gato e o rato”, de Wilson Batista, Arnô Canegal e Augusto Garcez, a batucada “Eu já mandei”, de J. Cascata e Leonel Azevedo e o samba “Quando dei adeus”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista. Em 1941 retornou para a Rádio Mayrink Veiga e lá ficou por seis anos. No mesmo ano gravou a marcha “Serenata”, de Felisberto Martins e Sá Róris, o samba “Pode chorar se quiser”, de Roberto Cunha e o frevo canção “Não sei o que fazer”, de Capiba. No mesmo período passou a gravar na Odeon, onde estreou com a valsa “Minha primavera”, de Gadé e Almanir Grego e a fantasia “Minha voz”, de Eratóstenes Frazão. Em seguida, gravou “Não quero dizer adeus”, samba-choro de Laurindo de Almeida. Em 1942 gravou os sambas “Quem não chora não mama”, de Laurindo de Almeida e Ubirajara Nesdem, “Caminhar sem destino”, de Felisberto Martins e Henrique Mesquita e “Por causa de alguém”, de Ismael Silva. No ano seguinte, registrou o fox canção “Primavera em flor”, com música de Georges Moran sobre versos do poeta J. G. de Araújo Jorge e os sambas “Favela morena”, de Estanislau Silva e João Peres e “Resignação”, de Geraldo Pereira e Arnô Provenzano. Em 1944 gravou de Geraldo Pereira e Ari Monteiro, o samba “Carta fatal”, com o Quarteto de Bronze, a valsa “Toureador”, de Georges Moran e Osvaldo Santiago e o choro “Murmurando”, de Fon-Fon e Mário Rossi, seu maior sucesso. Em seguida lançou de Haroldo Lobo e Eratóstenes Frazão a marcha “Quem tem mágoa bebe água”. Passou um período em que realizou poucas gravações fazendo alguns registros no selo Star, entre eles, a marcha “A moleza do faquir”, de Dênis Brean e Osvaldo Guilherme e o samba “Por que mentir?”, de Luiz Antônio e Ari Monteiro. Em 1951 retornou para a Odeon com os choros “Bichinho que rói”, de Dênis Brean e “Mais uma vez”, de K-Chimbinho e Delore. No mesmo ano, assinou contrato com a Rádio Tupi. Em 1952 gravou o clássico samba canção “Ai Ioiô”, de Henrique Vogeler, Luiz Peixoto e Marques Porto. No ano seguinte gravou “Carneirinho de São João”, marcha de Luiz Vieira. Em 1954 gravou os sambas “Nasceu pra sofrer”, de Arnô Provenzano, Isaias Ferreira e Oldemar Magalhães e “Vem amor”, de Enésio Silva, Isaias Ferreira e Jorge de Castro. Em 1957 assinou contrato com a gravadora Todamérica na qual estreou com os sambas “Dedo de Deus”, de Raul Marques e Ari Monteiro e “Tô chegando agora”, de Monsueto Menezes e José Batista. No meamo ano lançou seu primeiro LP com arranjos do maestro Guio de Moraes, “Tudo me lembra você”. Em 1959 lançou o samba “Enquanto houver Mangueira”, de Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr. Em 1962, assinou contrato com a Copacabana. Nesse ano, lançou um de seus trabalhos mais interessantes foi o LP “Do outro lado da vida – Os que perderam a liberdade contam assim sua história”, gravado com Cyro Monteiro Jr., no qual interpretou composições de presidiários do então estado da Guanabara e de São Paulo, entre as quais, “Luar de Vila Sônia”, valsa de Paulo Miranda, “Nos braços de alguém”, samba canção de Quintiliano de Melo e “Silêncio! É madrugada”, samba canção de Wilson Silva. Em 1968, participou, juntamente com Cartola, Clementina de Jesus, Nélson Cavaquinho e Carlos Cachaça, do LP “Fala Mangueira!”, lançado pela Odeon, no qual interpretou os sambas “Enquanto Houver Mangueira”, de Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior; “Tempos Idos”, de Carlos Cachaça e Cartola; “Alvorada no Morro”, de Carlos Cachaça, Cartola e Hermínio Bello de Carvalho; “Quem Me Vê Sorrindo”, de Carlos Cachaça e Cartola; “Alegria”, de Cartola, este último, em dueto com o cantor Zezinho; “Sei Lá Mangueira”, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho; “Folhas Caidas”, de Nelson Cavaquinho e César Brasil, e “Despedida de Mangueira”, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral. Em 1969, lançou, com Silvio Viana e seu conjunto, o LP “Sua majestade Odete Amaral – A rainha dos disc jockeys”, no qual interpretou as músicas “Julgar É Missão Divina”, de João Machado e Hélio Simões; “Quem Volta” , de Ubirajara Nesdan eTrigueiro Jr.; “Sou Feliz”, de A. Solano, S. Pina e A. Luz; “Amargura”, de E. Lemos e Samuel Perna; “O Que Passou”, de A. Mesquita e Célio Settimi; “Vem Vai”, de Talvi Vilaró; “É Só Recordação”, de S. Pina, A. Solano e A. Luz; “Erro Sem Perdão”, de Hélio Simões, Dilson Dória e César Caligula; “Se Não Tem Felicidade”, de S. Magalhães e A. Santos; “Foi o Pesadelo Que Voltou”, de Talvi Vilaró; “Samba Que Fala de Samba”, de A. Costa e F. Alves, e “Duelo”, de A. Amaral. Em 1975, participou da série “M.P.B. 100 ao vivo” irradiada pelo projeto Minerva, Rádio MEC, em cadeia nacional de emissoras. Ao lado de Paulo Marques, cantava os grandes sucessos dos anos 1930. A série de 30 programas deu origem a oito LPs criados por seu produtor Ricardo Cravo Albin. Dois anos mais tarde, participou do show “Café Nice”, ao lado de Paulo Marques e Altamiro Carrilho, com direção e narração de Ricardo Cravo Albin. Em 1977, lançou, pelo selo Olympic/ Crazy, com produção de Nelson Trigueiro, o LP “A tropicalíssima” no qual interpretou “Por Que Você Mentiu”, de Nelson Trigueiro e José Neder; “Peço Silêncio”, de Nelson Trigueiro e Guilherme de Almeida; “Triste Canção”, de Walter Paiva e Arati Lacoste; “Fases da Vida”, de Olavo Santana; “Preciso Falar”, de Zilda B. de Abreu; “Por Quanto Tempo Ainda”, de Luis de Souza e Canhete Jr.; “Samba Em Tom Jobim”, de Luis Antônio; “Balançando Meu Bem”, de Ormindo Fontes “Toco Preto” e Helinho; “Deixa Passar o Meu Samba”, de Nelson Trigueiro e Fausto Farias; “Mal De Amor”, de Cacilda de Assis, J. Guerra Peixe e Nilton Silva, e “Eu Quero Ser” e “Quantas Vezes”, ambas de Ruy Afrânio Peixoto. Em 1987, suas interpretações para os sambas “Triste fim de um coração” e “Respeita a cadência”, de Amaro Silva, com acompanhamento do Conjunto Regional Cruzeiro do Sul, e para a marcha “Não chora pirerot”, de Nelson Ferreira e Fernando Lobo, com acompanhamento da Orquestra Columbia do Rio de Janeiro foram incluídos na coletânea “Grandes cantoras” lançada pelo selo Revivendo. Em 2011, foi lançado pelo selo Descobertas em convênio com o ICCA – Instituto Cultural Cravo Albin a caixa “100 anos de música popular brasileira” com a reedição em 4 CDs duplos dos oito LPs lançados com as gravações dos programas realizados pelo radialista e produtor Ricardo Cravo Albin na Rádio MEC em 1974 e 1975. Nesses CDs estão incluídas suas gravações para a marcha “Taí”, de Joubert de Carvalho, para o samba “Feitiço da Vila”, de Noel Rosa e Vadico, e para o samba-canção “Último desejo”, de Noel Rosa”.
MIS/ RJ preserva o acervo
A memória preservada da obra e da vida desta grande cantora da música popular brasileira está preservada hoje no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Na coleção há fotografias, partituras, discos – dentre os quais 73 interpretados pela cantora –, documentos textuais e objetos pessoais da cantora, entre outros.