*Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Departamento de História. São Paulo, SP, Brasil.
Durante as décadas de 1950 e 1960 uma geração de jornalistas que vivia na cidade do Rio de Janeiro se preocupou em comentar e analisar de maneira sistemática diversos aspectos da formação da música popular urbana no Brasil. Profundamente interessados no assunto que fazia parte também de suas próprias experiências de vida, eles ultrapassaram os limites da crônica jornalística e trataram de realizar exaustivos inventários, organizaram admiráveis coleções privadas e reuniram bibliografia sobre o assunto. O jornalista Lúcio Rangel (1914-1979) estava no centro desse processo. Sua trajetória de vida carioca foi importante na constituição de certa memória em torno do fenômeno, e seu trabalho jornalístico ocupou lugar de destaque na formação da crítica especializada sobre música popular. Este artigo tem como objetivo examinar de modo crítico aspectos desse conjunto para compreender melhor o papel de Lúcio Rangel na construção de certa narrativa historiográfica sobre a música popular.
Palavras-chave: Lúcio Rangel; historiografia; música popular; narrativas; historiadores
During the 1950s and 60s, a generation of journalists living in the city of Rio de Janeiro became engaged in systematically commenting on and analysing various aspects of the origins of Brazil’s urban popular music. Deeply interested in the subject, which also formed part of their own life experiences, they pushed beyond the limits of newspaper columns and produced exhaustive inventories, organized remarkable private collections and compiled bibliographies on the subject. Journalist Lúcio Rangel (1914-1979) was at the heart of this process. His life experience in Rio de Janeiro was important in building a memory around the phenomenon and his journalistic work had a major role in the development of specialized reviews of popular music. This article aims to critically examine aspects of this process so as to better understand Lúcio Rangel’s role in building a historiographic narrative on popular music.
Keywords: Lúcio Rangel; historiography; popular music; narratives; historians
VIU E OUVIU
O jornalista Lúcio Rangel (1914-1979) publicou em 1954 na revista Manchete uma curiosa crônica em que comenta sua extensa e rica atividade como crítico da música popular. Ele inicia o texto com esta afirmação: “afinal, nestes 40 anos, o cronista viu e ouviu muita coisa que vale a pena rememorar” (Rangel, 2007, p.60). E segue relembrando os pequenos fatos vividos por ele. É extraordinário como o texto ecoa as concepções presentes em um conjunto de cronistas que compartilhava visões de mundo, experiências cotidianas e práticas intelectuais muito semelhantes (Moraes, 2007). A frase inicial da crônica contém alguns aspectos interessantes. Em primeiro lugar, sua vida biológica se confunde com a atividade de cronista e o interesse pela música popular: para quem nasceu em 1914, olhar e rememorar o passado em 1954, os “40 anos” transcorridos representam exatamente a vida toda! O que importa de fato não é a extravagância numérica da afirmação, mas o recurso retórico do autor: ele quer mesmo realçar seu envolvimento desde sempre com a música popular, e que sua vida se confunde completamente com ela. Sendo assim, ele viu e ouviu boa parte dos eventos ocorridos, credenciando-se para tratar deles com a autoridade da testemunha ocular. Relembrá-los é uma tarefa social importante, mas é também tratar da intimidade de quem acompanhou Noel Rosa comendo “ovos quentes no Chave de Ouro” (Rangel, 2007, p.60). Integrado ao meio musical, Rangel foi “estudando a matéria, ampliando paixão por artistas como Mário Reis, Pixinguinha e Cartola, entre outros, e dos quais me aproximei e com quem fiz sólida amizade”. O jornalista Sérgio Augusto, genro de Lúcio, relata outros exemplos da camaradagem de alguém que “frequentou a casa de Pixinguinha e Cartola, traçou incontáveis mulatas na cama de Paulo da Portela, no subúrbio de Osvaldo Cruz … e fez copioso xixi no jardim de Jacob do Bandolim” (Augusto, 2007, p.12 e 18). Essa proximidade afetiva com os artistas era fator de orgulho para esses cronistas e, do ponto de vista profissional, uma maneira de se qualificar para tratar do assunto. Duas décadas mais tarde Sérgio Cabral reforçaria essa condição ao dizer em conversa com Lúcio que ele tinha “aquele temperamento … que é aquele negócio de ficar amigo das pessoas que gostam da música popular. Quer dizer, você ficou amigo do Pixinguinha, do João da Baiana” (Eu beijei…, 1974, p.10).
Lúcio Rangel era filho de uma família aburguesada, que se revela até mesmo no extenso nome, Lúcio Cardoso do Nascimento Silva Goulart de Ataíde Arruda Câmara do Rego Rangel. Ele teve formação escolar e universitária de que se orgulhava, às vezes até com certa jactância ao dizer, por exemplo, que “aos 14 anos já tinha lido Machado, Flaubert em francês” e era um dos “maiores conhecedores de literatura francesa do século XVIII”. Fez curso de direito na antiga Universidade do Brasil e defendeu trabalho sobre a influência da filosofia alemã nas escolas de direito penal italiano.1 Apesar dessa formação, Lúcio resolveu viver plenamente a boêmia, o ambiente artístico e a crítica de música popular numa época em que ela “não tinha o menor prestígio … não atingia ninguém de formação universitária”. Portanto, aquela não era uma vida “digna de um neto do dr. Nascimento e Silva” (Eu beijei…, 1974, p.10).2 No entanto, ele jamais deixou de frequentar rodas de letrados e manter contato com dezenas de intelectuais reconhecidos, como Mário de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Vinícius de Morais, entre tantos outros. Não foi por outro motivo que o musicólogo Brasílio Itiberê disse que Lúcio era “um curioso caso de doublage, funcionando como popular e erudito” (Itiberê, 1962, p.8). Aliás, o jornalismo e a música popular eram universos culturais e sociais em que os rígidos limites entre a cultura de elite e a popular eram devassados e intercambiados.
Embora tenha tido contato com a música desde a infância nas retretas da Praça Afonso Pena e ter arriscado ser cantor quando jovem,3 assim como seus colegas de geração, foi pelo jornalismo e pela boêmia que Lúcio Rangel se aproximou de fato da música popular do Rio de Janeiro e de seus artistas. Ele passou por dezenas de redações de jornais e revistas e escreveu centenas e centenas de artigos, construindo influência e ganhando importância como crítico musical. Lúcio foi também leitor e escritor incansável, além de boêmio inveterado. Isso significa que era um misto de trabalhador, intelectual e boêmio, perfil que de certo modo se coadunava com o universo dos artistas populares. Tudo indica que essa tripla condição criou dificuldades para ele se concentrar na escrita de uma obra rigorosa sobre o tema que o absorvia tanto. Apesar do enorme interesse pela literatura e pela música, Lúcio não se preocupou em escrever livros, e talvez sua postura evidentemente autocrítica e irreverente tenha colaborado também. A necessidade de escrever incessantemente na imprensa para sua sobrevivência, a leitura compulsiva e as noitadas regadas a uísque certamente tomaram muito do seu tempo e atenção (Augusto, 2014).
Sua única obra apareceu em 1962 e, mesmo assim, era constituída de uma pequena coletânea de textos já escritos e divulgados na imprensa. Ela ganhou o sugestivo nome de Sambistas e chorões, os dois gêneros centrais instalados pela crítica da época na origem da música popular urbana (Rangel, 1962). O outro livro apareceria postumamente em 2007, por esforço de seu genro, o jornalista e crítico Sérgio Augusto, intitulado Samba, jazz & outras notas (Rangel, 2007). Trata-se de uma nova coletânea de textos publicados em jornais e revistas, selecionados pelo genro. A apresentação feita por ele é elucidativa e consegue estabelecer um perfil do antigo jornalista, ao que parece, sempre muito resistente a esse tipo de reverência. O tom presente nesse livro é o mesmo do anterior: muita recordação dos bons tempos, lembrança dos amigos músicos, rememorações de fatos interessantes, reminiscências pessoais, crônicas do cotidiano e uma ou outra polêmica. Como novidade, uma seção com nove textos sobre jazz, outro interesse permanente do crítico. E, segundo Sérgio Augusto e Hermínio Bello de Carvalho, nesse universo ele também era um “purista” e só gostava do jazz tradicional feito por artistas negros.4
Os dois livros editados são na realidade extensão de seu trabalho jornalístico, uma vez que se trata de seleção de artigos publicados na imprensa carioca entre o final dos anos 1950 e o início da década seguinte. Sambistas e Chorões contém artigos mais interessantes e consistentes, tanto é que o tardio Samba, jazz incorporou mais da metade (oito) das 14 crônicas originalmente presentes em Sambistas e Chorões. Logo no início de sua principal obra são apresentados alguns traços intelectuais comuns daquela turma de críticos de música que estava se formando como novidade cultural e intelectual (Moraes, 2007). Em primeiro lugar reitera o argumento de autoridade de quem escreve sobre artistas que “conheci ou conheço de perto”. Mas também destaca que aqueles “que não cheguei a alcançar, são aqui tratados pelo que deles pude saber”. Além disso, repete a justificativa presente nos livros de seus colegas de geração, de que não escreveu um livro de “história da nossa música popular, mas apenas uma contribuição que poderá ser útil àquele que realizar futuramente tal história” (Rangel, 1962, p.9). Ou seja, aparentemente a obra pretende ser mais um registro memorialístico e depoimento testemunhal para que os futuros historiadores pudessem utilizá-lo como referência documental e crítica. Logo a seguir se verá, no entanto, que a obra vai um pouco além dessa despretensiosa condição memorialística. Por fim, a apresentação da obra é feita por um intelectual padrão e renomado na área: o professor da Escola de Música do Rio de Janeiro e folclorista Brasílio Itiberê. Curiosamente, ao final da apresentação o musicólogo escorrega ao admitir que não leu o livro, mas logo a seguir reconhece que de qualquer maneira ele “será uma valiosa contribuição para o estudo de nossa música popular”; e vai mais além ao destacar que “Lúcio é sem dúvida um dos melhores conhecedores da música popular carioca” (Rangel, 1962, p.8).
Os temas apresentados no livro são variados e revelam o vasto campo de interesse do jornalista carioca. Claro que estão presentes as pequenas e inevitáveis biografias e análises da trajetória e obra de músicos de sua preferência, como Pixinguinha, Vadico e Noel. Ele trata de assuntos díspares como as relações da literatura de cordel com a música e as primeiras “chapas de gramofone”, quando aborda aspectos da indústria fonográfica no Brasil. A questão discográfica sempre foi muito importante para Lúcio, que de algum modo queria educar a escuta do leitor por intermédio do disco. Ao final da obra ele apresenta um texto que acabou relativamente conhecido, a “discoteca mínima da música popular brasileira”, originalmente publicada em 1960 no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Nela enumera e descreve os discos que considera mais importantes para a formação do bom ouvinte da música popular, dividindo-os entre os de autores e os de intérpretes. Essa discoteca de algum modo está relacionada também com o projeto malogrado da “Antologia da música popular”, analisada mais adiante. A discoteca tem aquele sentido prescritivo e, como uma espécie de juiz, classifica e hierarquiza os discos que devem ser escutados, pressupondo também uma forma de consumo simbólico. E nesse caso o tom geral do simbolismo é dado pela valorização dos “tempos heroicos”, da genuinidade da “velha guarda” e da “boa e autêntica” música de antigamente. Ou seja, ele quer convencer o leitor e principalmente o ouvinte de que “o passado era muito bom, sabe?” (Eu beijei…, 1974, p.10).
No livro aparece também um texto em que aborda a questão do samba carioca e a perspectiva de Mário de Andrade, que acabou alcançando certa notabilidade por motivos evidentes: menciona as delicadas e tensas relações do musicólogo paulistano com o samba urbano carioca. Nele Lúcio reclama da superficialidade geral das obras que tratam do gênero e não poupa nem seus pares, ao asseverar que Samba de Orestes Barbosa não é “científico”, e que Brasil Sonoro de Mariza Lira tem “visão ampla, mas pouco profunda” (Rangel, 1962, p.32). Em outro texto da coletânea ele volta ao assunto e faz a crítica geral de maneira mais clara: “Muitos dos nossos musicólogos e folcloristas, quando falam do samba carioca, música que, queiram ou não, é a mais difundida e a mais bela do Brasil, perdem-se numa desconcertante série de afirmativas não se sabe onde encontradas, tirando delas conclusões as mais estapafúrdias. Raras as exceções” (Rangel, 1962, p.54).
Diz que as origens de boa parte dessas dificuldades e confusões poderiam ter sido evitadas se Mário de Andrade não tivesse resistido tanto em estudar o samba urbano em profundidade. Ele esperava que o musicólogo escrevesse o “estudo definitivo sobre a mais popular música do Brasil”. Na realidade, ele, Mário e Vinícius de Morais chegaram a projetar um livro traçando panorama estético e social do gênero, mas que ficou apenas “nas conversas inconsequentes” (Rangel, 1962, p.22). Mas alguns passos nessa direção parecem ter sido dados após a morte do modernista, pois há uma pequena e curiosa nota presente no cabeçalho da página oposta ao índice da primeira edição, informando a existência de um livro no prelo intitulado Cancioneiro geral da música popular carioca, escrito em colaboração com Vinícius de Morais. Ocorre que, como se sabe, ele nunca foi publicado, provavelmente em razão da vida atribulada e desregrada dos dois autores (Augusto, 2014).
As relações de Lúcio com Mário de Andrade, contadas pelo jornalista em várias ocasiões, permanecem ainda um tanto obscuras. Tudo indica que começaram indiretamente em 1933, com o contato do paulistano com os jovens cariocas da Revista Acadêmica, criada naquele ano por alguns estudantes da faculdade de direito da Universidade do Brasil. A revista tinha pretensões literárias modernistas e era engajada politicamente, opondo-se a Getúlio e a toda sorte de autoritarismo, posicionando-se numa esquerda não partidária, embora alguns de seus membros, como Lacerda e seu primo Werneck de Castro, tivessem ligações com o PCB. Seus organizadores foram Murilo Miranda (diretor), Moacir Werneck de Castro, Carlos Lacerda e, claro, Lúcio Rangel, secretário em seus primeiros números e considerado por Werneck o “menos ostensivamente político”. Com a mudança de Mário para o Rio, esse grupo passou a se encontrar periodicamente na Taberna da Glória, a poucos passos da nova residência do escritor paulistano, “um bar-restaurante com cadeiras na calçada, de freguesia nada canônica, sobretudo de madrugada, quando recebia grupos de farristas e mariposas da noite, egressos dos cabarés e prostíbulos das cercanias” (Castro, 1989, p.22). A estada carioca de Mário entre 1938 e 1941 foi bastante complicada do ponto de vista pessoal e profissional. Desanimado e descrente, tudo indica que a convivência boêmia com os jovens era para ele de certo modo revigorante, apesar dos sucessivos abusos com a bebida. Um tanto arredio às tradicionais rodas intelectuais cariocas, ele se entusiasmava com os rapazes: “Como vocês são informados! Como vocês sabem coisas! Como vocês leem livros que eu não leio! Como vocês descobrem, nos mesmos jornais que eu leio, artigos e notícias que eu não consigo descobrir!” (Castro, 1989, p.78). Mas havia seguramente uma troca, pois os jovens tinham atração pelo intelectual renomado e o forte desejo de “assimilar seu caudal de conhecimentos de literatura, estética, etnografia e música” (Castro, 1989, p.69). De certo modo, apesar da evidente hierarquia entre o mundo dos “mandarins” e da “boêmia literária”, nessas ocasiões de alguma maneira essas fronteiras eram devassadas (Darnton, 1987, p.30).
Não resta dúvida de que foi essa turma que aprofundou o interesse do jovem Lúcio – que contava apenas 24 anos à época – pela literatura e pela vida boêmia carioca. Foi a partir dela também que estabeleceu ligação com Mário, sempre mais próximo pessoal e intelectualmente de Murilo Miranda e Moacyr Werneck. Mas alguma intimidade foi estabelecida, pois Lúcio chegou a viajar com Murilo Miranda e esposa para acompanhar o musicólogo a um encontro, em 1939, com estudantes e jovens literatos de Belo Horizonte (Jardim, 2015, p.165). E anos mais tarde seria um dos convidados do prefeito interino de São Paulo Willian Salem5 para as comemorações da morte de escritor paulistano (O Jornal, 20 mar. 1954, p.12). De acordo com Lúcio, Mário de Andrade, apesar de mais velho, era sempre o mais animado nas mesas do Taberna ou do Brahma. E após muita conversa sobre variados assuntos e “depois de mais de cinco chopes tomados”, o grupo geralmente terminava a noite cantando alegremente, mas não um samba rural paulista, como disse irônica e provocativamente. De acordo com ele, Mário “era um enamorado do samba malicioso e cheio de ritmo” (Rangel, 1962, p.23) e gostava mesmo de cantar o “urbaníssimo Mangueira, samba de Assis Valente, que ele achava lindo” (Rangel, 2007, p.85).
CURANDEIROS, FEITICEIROS, BRUXOS E MÉDICOS: A REVISTA DA MÚSICA POPULAR
Como se percebe, a obra intelectual de Lúcio Rangel não foram seus livros sobre a música popular, mas sua atuação na imprensa, o que de certo modo relativiza sua atuação – mas não sua influência – na construção de uma escritura historiográfica da música popular. De qualquer modo, nesse horizonte a criação e publicação da Revista da Música Popular ganha mais sentido e destaque. Durante 2 anos, entre outubro de 1954 e setembro de 1956, foram lançados 14 números da Revista6 em que a música popular teve papel central e exclusivo. As publicações de sucesso de público da época, como Carioca e Pranove, vinculadas diretamente a emissoras radiofônicas, Nacional e Mayrink Veiga respectivamente, e Radiolândia e Revista do Rádio, estavam mais próximas da dinâmica da indústria radiofônica e fonográfica, e das fantasias criadas em torno do glamour do mundo do espetáculo. O universo musical e conteúdos expostos nelas eram vistos como simples peças de promoção das emissoras ou de “baixo nível artístico, futilidade”, voltadas às “macacas de auditório … e aos escândalos da vida pessoal dos cantores” (Lenharo, 1995, p.8). Lúcio pensou em uma revista na qual a música popular tivesse tratamento culturalmente mais elevado, negando-se exatamente a “publicar notícias e artigos visando a vida particular de artistas ou … fatos escandalosos”, não aceitando “matéria nem fotos pagas”, enfim, uma publicação que lutasse contra “os setores que comercializam a música brasileira … como plagiadores de boleros, os fabricantes de sambas”.7
Talvez seja inevitável uma aproximação cuidadosa da Revista da Música Popular com a Revista Acadêmica, pois este periódico literário está no cerne da formação intelectual de Lúcio, além de ter sido sua primeira experiência com a prática do mundo da impressão e da escrita analítica. Mas principalmente porque ela apresentou a possibilidade do exercício da crítica especializada, que muito provavelmente ele transportou da literatura para a música popular. Mesmo com seus integrantes já bem distantes da vida universitária, a Revista Acadêmica continuou sendo publicada, embora de maneira muito irregular, até 1948. Ao falar dela, Moacir Werneck de Castro dá algumas indicações dessas possíveis influências involuntárias entre as duas revistas: “Prodígio de improvisação, irregular na periodicidade, modestíssima na tiragem, precária nas fontes de receita, sobrevivia quase por milagre. Ganhou, contudo, projeção como veículo de ideias novas, como órgão de vanguarda numa época de intensa busca de identidade nacional brasileira” (Castro, 1989, p.69).
Esse tom de engajamento político, literário e estético vanguardista certamente influenciou a postura comprometida que Lúcio imprimiu à Revista da Música Popular,8 dedicada exatamente à busca do reconhecimento da “identidade nacional brasileira” por meio da melhor música popular. Essa música deveria ser rememorada, respeitada, resguardada e difundida, ocupando o lugar da música radiofônica massificada do Pós-guerra. Ocorre que a “boa música” que estabelecia as relações mais profundas com nossa formação cultural e identidade nacional estava cravada no passado e sufocada pela comercialização musical contemporânea. Contraditoriamente, para Lúcio e seus colegas de geração, a defesa das “ideias novas” e a postura de “vanguarda” estavam invertidas, pois relacionadas à recuperação do passado da música popular.9 É bem provável que todos esses princípios tenham criado limitações no universo de leitores, uma vez que era evidentemente voltada para certa “elite ilustrada”, conhecedora e apaixonada por um tipo de música popular.
Seguindo nesse horizonte, a abordagem dada à RMP inclinou-se por um caminho mais transcendente, o do bom gosto estético e musical e do comprometimento com os valores da cultura nacional. Porém, ao mesmo tempo, ela se dirigia a um público interessado nas coisas do mundo da radiofonia e da fonografia, também seduzido pela vida dos seus artistas profissionais e estrelas preferidas que, tal como nas outras revistas, estampavam suas capas, de Pixinguinha, no primeiro número, a Orlando Silva no último. Essa questão era muito presente entre os analistas da música popular, tensionados pela aspiração premente de dar valor à música popular e pelo “propósito de construir” algo mais elevado e fazer um “serviço meritório” (RMP, 2006, p.25), justamente em universo um tanto frívolo e banal como o das artes do entretenimento. No caso específico de Lúcio Rangel, essa aspiração era mais vigorosa em razão de sua trajetória vinculada ao mundo literário modernista que se desloca para a música popular, realizando a intermediação entre esses dois mundos aparentemente antitéticos, como destacou Brasílio Itiberê. E a boêmia era um dos lugares extraordinários para o desenvolvimento de sociabilidades que devassavam esses limites e onde as intermediações ocorriam de maneira natural. Da “Taberna” modernista dos anos 1930 e 1940 às rodas de sambistas, chegando ao glamouroso mundo noturno carioca dos anos 1950 e 1960, o “boêmio encantador” (Augusto, 2007, p.11-27) foi se estabelecendo, jogando seus laços de simpatias, mas também produzindo uma série de conflitos conceituais e pessoais e até enfrentamentos físicos.
É extraordinário como esses elementos da trajetória pessoal e da personalidade de Lúcio se apresentam na RMP. Ela pode ser vista como um lugar privilegiado para analisar as ideias em fermentação e combate em torno da música popular, mas era também um espaço de sociabilidade onde as relações afetivas se desenvolviam claramente (Dosse, 2011, p.28-29). Assim como na Acadêmica, a RMP reunia uma patota de amigos e de conhecidos com afinidades múltiplas, cuja convergência central era a “boa música” popular, fosse a brasileira ou o jazz. A maior parte desse grupo frequentava com assiduidade a noite carioca que por isso recebeu na revista uma coluna própria intitulada “Música dentro da noite”, escrita por Fernando Lobo. O compositor e radialista era boêmio incorrigível, e sua coluna comentava a vida noturna relacionada diretamente com a música e os músicos. Claro que as fofocas, as histórias inusitadas, as atividades que ocorriam nos bares, boates e casas de espetáculos ganhavam observações. Vários outros amigos boêmios de Lúcio faziam parte da revista ou frequentavam suas páginas, como seu sobrinho e amigo Sérgio Porto, que ficaria conhecido como Stanislaw Ponte Preta. Uma foto presente em matéria de janeiro de 1955 revela de modo eloquente esse perfil da revista. No Maxim’s, “elegante bar de Copacabana, local predileto de jornalistas, compositores, artistas, cantores, gente da noite”, festejavam os integrantes da RMP José Sanz, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e, claro, Lúcio Rangel, ao lado de Sílvio Caldas e Ary Barroso, entre outros artistas abordados pela revista (RMP, 2006, p.201). Ary, aliás, manteve durante 5 meses em 1955 uma coluna em O Jornal com título ostensivamente boêmio e etílico, “Scotch e soda”. Nela comentava exatamente o cotidiano farrista da noite carioca, em que essa patota – citada permanentemente pelo compositor – tinha presença habitual (O Jornal, 1955). A esse respeito, vale destacar ainda que uma boa parte dos anunciantes da RMP era composta por estabelecimentos vinculados a esse modo de vida, como o Maxim’s e a conhecida “Casa Villarino. A rainha do whisky”, sobre quem Lobo escreveria um livro (Lobo, 1991). Além disso, há registros recorrentes de propagandas do Juca’s Bar, do Parque Recreio e até do paulistano Captain’s Bar, localizado no Hotel Comodoro.
Apesar das resistências às “influências estranhas do progresso” – no caso representado pelo rádio – “que penetra nas camadas mais pobres” (RMP, 2006, p.49), o dia a dia da radiofonia e o mundo dos discos também tinham bom destaque na ordem da revista. Eram colunas fixas que obviamente davam tratamento diverso daquele oferecido pelas revistas populares. O amigo Nestor de Hollanda, misto de jornalista boêmio, escritor e compositor,10 era o responsável pela coluna “O Rádio em 30 dias”. Nela pregava em favor de um rádio inteligente e combatia seu comercialismo e a vulgaridade excessiva. Dizia haver homens bem-intencionados na radiofonia e bons programas, mas ambos eram cada vez mais raros no panorama cultural radiofônico. Acontece que se o indivíduo bom quisesse “dar certo”, ser “elogiado” e receber “cartinhas perfumadas” das ouvintes, deveria “mudar de pensar” e se adaptar. Reclamava também que os programas baseados somente no locutor que tocava discos e dizia “vamos ouvir” e “acabaram de ouvir”, entremeados com “textos de propaganda de casas de retalhos” e “informativos compilados de jornais diários”, eram como “oferecer uma peixada de sardinha em lata num almoço de domingo” (RMP, 2006, p.50 e 214). Para ele, as emissoras nacionais deveriam seguir os bons exemplos de outros países, “nos quais os homens de cultura são mais prestigiados”, e deveriam divulgar “antes de tudo, nosso folclore, nossas músicas” ao invés da profusão de “mambos, congas, boleros, tangos e foxtrotes”. Provavelmente ele tinha como referência também os programas do radialista Almirante, lembrados várias vezes pela coluna (Lima, 2014; Paes, 2012). Na realidade, o que se reapresenta nessa coluna é aquela antiga questão de fundo da radiofonia, de que a “educação musical do povo, pelo rádio, devia ser um fato” (RMP, 2006, p.39). Curiosamente, ultrapassados o fervor educativo e o crivo classificatório, o ambiente das emissoras de rádio com seus artistas, eventos, programas e assim por diante aparece nas páginas da RMP, de maneira similar às suas congêneres, inclusive com fotos das cantoras e compositores favoritos e bastidores das emissoras e o “disse que disse” dos artistas. Aparentemente, o nó da questão não era o meio, mas seus agentes e conteúdo, que nos anos 1950, de acordo com a revista, passavam por evidente crise criativa.
A produção fonográfica era considerada da mesma maneira. Havia aspectos importantes na fonografia que deviam ser debatidos e informados, por isso a abundância de informações e análises nas colunas da revista. Lúcio era um melômano inveterado e colecionador de discos obsessivo, que construiu um imenso acervo discográfico, como se verá mais adiante. Ele ambicionava fazer de sua audição – e também da de seus colegas de RMP – a escuta padrão da sociedade. Por isso a revista queria se constituir também como “o guia de uma imensa legião de fãs, de interessados, de colecionadores de discos existentes em nosso meio” (RMP, 2006, p.25). Várias colunas colaboravam para a realização desse propósito, geralmente de responsabilidade do próprio Lúcio, apesar de muitas delas não receberem assinatura ou serem assinadas em pseudônimo. “Estes são raros”,11 mais voltados aos colecionadores de discos, comentava a importância das chapas antigas e raras de 78 rotações, naquela perspectiva já salientada de que o “passado era melhor”. Já “Discos do mês” tinha sentido inverso: apresentava os últimos e mais importantes lançamentos, de acordo com o julgamento do colunista, com pequenas ementas seguidas de comentário crítico. Associadas ao mesmo tema, apareciam matérias mais orgânicas publicadas em série em vários volumes, como a imensa “Discografia mensal da indústria brasileira”, organizada por Cruz Cordeiro, e um curioso “Dicionário de marcas de discos (A-Z)”, escrito mensalmente por Sylvio Tullio Cardoso. De modo mais independente e livre apareciam as “discografias completas” de artistas como, por exemplo, as de Jacob do Bandolim, Ataulfo Alves, Francisco Alves e Mário Reis. Além disso, havia ainda duas colunas com preocupações fonográficas relacionadas ao jazz. “Um disco por mês”, sem autoria, fazia comentários de discos de jazz recém-lançados e/ou aqueles julgados mais importantes para a compreensão do gênero. Já “Discografia selecionada de jazz tradicional” era de responsabilidade do milionário e playboy internacional Jorge Guinle, conhecido por sua coleção trazida diretamente dos Estados Unidos e que, como sugere claramente o título, dava preferência à discografia básica do jazz clássico. Aliás, o gênero era considerado na RMP de maneira similar à música popular brasileira. No gênero afro-americano haveria uma linhagem que deveria ser dignificada e divulgada: o jazz tradicional e autêntico feito por negros. E bem provavelmente ele entra também como elemento que reforça aquela aura de bom gosto estético e musical da revista. É curioso observar como as matérias analíticas, históricas e fonográficas sobre o jazz foram ocupando cada vez mais espaço na revista nos seus últimos números, sem que houvesse uma explicitação clara para disso.
Esse vivo compromisso fonográfico na RMP de algum modo ficaria sintetizado no lançamento do projeto “Antologia da música brasileira”, cujo objetivo era preservar regravações de velhos discos esgotados ou a gravação de novos autores preocupados com “toda a pureza tradicional dos temas e formas brasileiros” de nossa música mais autêntica. Desvinculada da revista, a “Antologia” era projeto autônomo, composto por uma coleção editada em “discos de 12 polegadas, contendo uma média de 6 músicas em cada face … e será acompanhado de um folheto com um estudo crítico sobre autor, intérprete e músicas” (RMP, 2006, p.49 e 151). Ela não seria comercializada, distribuída exclusivamente aos poucos “sócios devidamente inscritos”, aproximadamente 200. A seleção e organização das músicas “folclórica e popular” seria de responsabilidade do musicólogo Mozart Araújo e dos líderes da RMP José Sanz e Lúcio Rangel. Dois anos após o lançamento da ideia, o projeto ainda não se havia materializado. Na seção “Escreve o Leitor” seus idealizadores justificavam que “ainda é nosso pensamento fazer a publicação dos discos anunciados. Temos, entretanto, que remover algumas dificuldades que nos têm surgido. Aguardem notícias” (RMP, 2006, p.712). Ocorre que esses obstáculos jamais foram ultrapassados e o projeto da antologia malogrou completamente.12 Mas a tentação ao anacronismo histórico neste caso é irresistível: sua semelhança com aquela que seria a coleção da História da música popular, lançada pela editora Abril nos anos 1970, é extraordinária.
A antologia revela também outro elemento que se apresenta de maneira recorrente na RMP: a preocupação com a autenticidade e originalidade das músicas populares, como expressão da “alma brasileira” e nossa nacionalidade mais profunda. E uma forma de enquadrar a música urbana nesse horizonte social e político, e esteticamente positivo, certamente foi aproximá-la do folclore. Essas relações, entretanto, sempre foram um tanto opacas e indefinidas, dependendo das circunstâncias e necessidades táticas de seu uso (Certeau, 1994). Rigorosamente, a revista apresenta apenas um ou outro texto mais diretamente relacionado aos temas tradicionais do folclore ou que assume claramente a percepção folclorista, como os que tratam da indumentária no “Candomblé da Bahia”, dos grupos de “Pastoris”, dos “Curandeiros, feiticeiros, bruxos e médicos”, do “Teatro folclórico brasileiro” ou ainda da relação da “folcmúsica com a música popular brasileira”. Isso ocorre porque a RMP não era uma revista destinada ao folclore, mas apenas preocupada com ele e seus destinos numa sociedade que se modernizava rapidamente. Na realidade, o que existia eram aproximações com alguns dos ideários do folclore que poderiam colaborar para a valorização e nobilitação da música de entretenimento feita originalmente para dançar, tocar no disco e no rádio. Essas relações eram sempre explicitadas nas matérias internas e editoriais. A coluna de Mariza Lira, denominada “História Social da Música Popular Carioca”, era uma espécie de referência nesse sentido. Nela aparece seu empenho em estabelecer vínculos entre as manifestações urbanas tradicionais e alguns dos gêneros musicais surgidos nas grandes cidades na passagem do século XIX para o XX, dando corpo mas, sobretudo, alargando aquela noção indefinível de “folclore urbano”. Importante destacar, entretanto, que Mariza Lira era uma folclorista diferente, tensionada entre as posições mais tradicionais e a forte atração pela música urbana (Moraes, 2010, p.227-237). Na realidade, ela vivia entre os dois mundos. Em 1950, por exemplo, fez programa radiofônico de caráter educativo chamado Brasil Folclórico. Mas antes disso, entre 1938 e 1940, ela manteve na revista Pranove, “órgão official da PRA-9”, a conhecida e popular Rádio Mayrink Veiga, uma ativa coluna intitulada “Galeria Sonora”, na qual escrevia pequenas biografias de músicos e artistas do rádio (Pranove, 1938, 1939, 1940).
Assim, elementos como originalidade, autenticidade e enraizamento serviam de indicação da relevância social e cultural da música urbana, que possibilitaria também a sublimação artística e musical, colaborando adicionalmente para distanciá-la do simples entretenimento e do comercialismo. A associação desses fundamentos no tempo teria criado e já solidificado tradições urbanas nos anos 1950 que podiam ser identificadas e deveriam ser preservadas diante do avanço desenfreado dos interesses mercantis nos meios de comunicação. Ao contrário dos textos exclusivamente folclóricos, eram inúmeros os artigos e temas que tratavam do assunto por essa ótica, relativos à música popular brasileira ou estadunidense. O tom geral de abordagem era a identificação e a defesa intransigente da “boa e autêntica” música popular, sobretudo em seus gêneros mais importantes, o samba e o jazz. Provavelmente esse timbre folclorista servia também para dar uma tonalidade de seriedade acadêmica à revista feita pela “patota carioca boêmia”, embora vários de seus membros tivessem outra origem.
Apesar da presença dessa perspectiva folclorizante, impossível limitar a revista nesses princípios. Como se procurou sublinhar, se a RMP tinha a direção geral da defesa da “boa e autêntica música popular”, os seus agentes imprimiram a essa orientação um colorido bem diversificado. Uma pluralidade incrível de jornalistas, críticos, musicólogos, folcloristas, radialistas, boêmios e playboys participaram dela, seja como colunistas ou colaboradores eventuais, apresentando suas inúmeras posições e análises. Havia uma notável multiplicidade de “curandeiros, feiticeiros, bruxos e médicos”13 apresentando uma infinidade de conhecimentos e temas, fazendo da RMP uma experiência muito singular à época, difícil de se enquadrar em concepções intelectuais muito rígidas, sobretudo a do folclorismo. Uma leitura da materialidade de seu volume 3 talvez ofereça um registro eloquente desse perfil variegado. Tal como nas revistas comuns de entretenimento, nas páginas originais 30 e 31 a RMP apresenta o glamouroso e alegre mundo do entretenimento, representado nas fotos das “mais lindas mulheres” com sumários biquínis na “piscina do Copacabana” e também das belas “cabrochas do Jupira” presentes no espetáculo de Carlos Machado, Este Rio moleque, uma revista musical de sucesso em 1954. Impactado pelas informações visuais, ao virar para a página imediatamente seguinte o leitor encontra, no entanto, a continuação do denso e antigo texto de Mário de Andrade sobre Ernesto Nazareth. Ao continuar folheando, ele depara com artigo sobre “temas do folclore afro-norte-americano”, de José Sanz, seguido pelo texto do historiador e crítico argentino de jazz Nestor Ortiz Oderigo. A página seguinte é integralmente ocupada por propaganda da “Casa Villarino. A rainha do whisky”, frequentada pelos membros da revista. Algumas páginas mais à frente o leitor encontra texto sobre jazz escrito pelo playboy Jorge Guinle, com foto de smoking e gravata-borboleta. Essa era a desconcertante e fragmentária variedade que marcava a RMP (RMP, 2006, p.158-173).
Durante seus 2 anos de existência a RMP enfrentou muitos problemas com relação às fontes e receitas financeiras que deveriam garantir a periodicidade e a tiragem, mesmo que modesta, da revista. Rigorosamente se pode afirmar que apenas em 1955 ela teve vida ativa regular, iniciada em outubro do ano anterior. Em novembro e dezembro de 1955 ela só apresentou um número, retornando apenas em abril do ano seguinte. A partir do volume 12 começou a claudicar, aparecendo novamente em junho e setembro (número 14), quando desapareceu definitivamente. Esse fato talvez reforce a limitação do seu impacto, principalmente se comparado, por exemplo, ao mesmo esforço missionário realizado por Almirante em seus programas de rádio na mesma época (Lima, 2014; Paes, 2012). A revista manteve anúncio pago para divulgação na imprensa, como n’O Jornal, e os colunistas da grande imprensa sempre comentavam com muita satisfação a publicação de mais um número. O editorial do segundo número dá uma pequena pista da receptividade da revista ao anunciar o “entusiasmo que despertou” o primeiro número, esgotado na “maioria das bancas do Distrito Federal e de São Paulo, apesar da tiragem elevada para uma publicação especializada” (RMP, 2006, p.77). É preciso considerar apenas o caráter um tanto cabotino e interessado da informação, já que comunicada pelo editorial de uma publicação recém-lançada que procurava seu espaço comercial e de divulgação. Além disso, apesar de contar com autores de diversas origens e tratar de temas variados, a RMP foi uma revista que expunha sobretudo o ambiente artístico, boêmio e o modo de vida carioca, estampados tanto nos comentários sobre o cotidiano ou no “disse que disse” da cidade, como nas reportagens e anúncios de bares, espetáculos e assim por diante. Nesse sentido, talvez seja prudente olhar com mais cuidado para a influência que ela possa ter exercido à época. Provavelmente foi a comunidade de jornalistas quem consagrou para a revista, com razão, a condição de fixadora da crítica musical que nascia e a partir de então passou a ser realizada de maneira mais profissional e permanente nos jornais e revistas. Porém, talvez se tenha superestimado sua atuação e influência. Possivelmente o prestígio de Lúcio, de intelectuais e dos outros críticos que apareceram com força cultural na época tenha projetado para a publicação uma importância que estava bem mais circunscrita a certa comunidade, interpretação a que a historiografia da música popular que aparece no início do século XXI parece ter se subordinado de maneira um tanto inadvertida. Na realidade, pouco se sabe ainda da sua recepção e influências mais abrangentes.
ARQUIVOS IMPLACÁVEIS
Essa vida completa e intimamente ligada à música popular desenvolveu em Lúcio Rangel outros interesses derivados, como a prática de preservar e arquivar suas lembranças musicais. Ele “aliou a paixão pela música popular brasileira a um espírito de conservação e pesquisa”, associação que era uma peculiaridade entre alguns críticos da música popular da época, como salientou colunista d’O Jornal em 1955: “hoje Lúcio Rangel possui, com Almirante, a abnegação de mais uns poucos devotados, os ‘arquivos implacáveis’ de nossa música popular, principalmente do nosso samba” (O Jornal, 26 ago. 55, p.7).14 Ocorre que seu acervo era um pouco distinto do de Almirante, pois voltado quase que exclusivamente ao universo fonográfico.
É certo que o disco na época era fator de atração simbólica e material que fascinava os ouvintes, e os lançamentos sucessivos induziam a formação de série e acompanhamento permanente. Audiófilos requintados como o milionário Guinle guardavam, colecionavam e falavam com propriedade sobre a música presente nos discos e os contextos da produção (Maisonneuve, 2001; 2009). Mais ruidosos, “fonófilos, fonômanos e discômanos” (Koshiba, 2013) como Lúcio participavam ao seu modo e ativamente do universo da “música mecânica”. Todos eles tratavam de “tocar” seus discos nos aparelhos: “tocar um disco” passou a ser equivalente a “tocar música”, produzindo uma nova categoria de “especialista”, retirando a prática musical do plano exclusivo dos artistas (Iazzetta, 2009). Salientou-se, aliás, que a RMP estimulava e reforçava esse encantamento, tanto acompanhando os lançamentos, como destacando o resgate das bolachas do passado.
Em entrevista no ano de 1970, Lúcio revelou que o início de sua coleção e fascínio material pelo disco começou ainda muito jovem, embaralhando inteiramente sua vida pessoal com esse universo: “Em 1925, com 11 anos, deixava de ir ao cinema para comprar discos. Era o início de uma paixão que me levou a conviver com intérpretes e compositores do cancioneiro e a escrever sobre eles, em mais de 2 mil artigos, e a criar, em 1954, a Revista da Música Popular” (Os guardiães…, 22 abr. 1970, p.3).
Como é comum na prática colecionista, com o tempo as pequenas séries se tornam um conjunto mais volumoso, dando contornos a uma coleção maior. Colecionador voraz, Lúcio aumentou sua coleção também com novas aquisições e doações, como os 16 mil discos oferecidos por seu amigo Chico Wright (Rangel, 2007, p.52-54). Com o crescimento desmedido, uma coleção exige organização e arquivamento racional para o colecionador ordenar seu universo de consulta privada e tomar posse das centenas de informações ali contidas. Além disso o cuidado e o acúmulo físico do material, sobretudo os discos, torna-se problema para a vida privada, exigindo alternativas dispendiosas. A solução costumeira sempre foi a venda ou doação do acervo. No caso da coleção de Lúcio, ela foi vendida ao Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), mas, diferentemente do arquivo de Almirante, pouco se sabe ainda como foi repassada, em que condições, e como foi organizada.
Frequentemente o colecionista desenvolve instintos extáticos em torno de seu tema e coleção, gerando algumas obsessões. Uma dessas fixações é pelo detalhamento da informação e sua exatidão absoluta, que acabam produzindo o conhecimento minucioso e uma erudição específica. Nesse sentido, Lúcio era “capaz de informar quem era o violão na primeira gravação de Sinhô, quem compôs o coro de um samba da Rádio Sociedade” (O Jornal, 26 ago. 55, p.7). Por esses motivos, Lúcio entrou em conflito meticuloso em 1955 com outro colecionador de discos que começava sua carreira, Ary Vasconcelos (1926-2003). A disputa ocorreu em torno da leitura das etiquetas e da numeração dos discos da Casa Edison e começou, claro, com as dúvidas sobre o pioneirismo do samba “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, e qual gravação teria sido a primeira. Ela se manifestou por meio de artigos com o sugestivo título de “A linguagem das etiquetas” (tema e título que provavelmente daria inveja aos historiadores da “terceira geração dos Annales” nos anos 1970 e 1980), publicado nas colunas dos dois jornalistas – de Lúcio no Jornal do Commercio, e de Ary em O Jornal. 15Outra compulsão comum do colecionista é a necessidade inadiável da busca integral de “todo” material existente sobre o tema. Lúcio, por exemplo, chegou a dizer, talvez exageradamente, que, por garantia, tinha tudo em duplicata quando repassou seu acervo para o MIS-RJ (Eu beijei…, 1974). Esses elementos associados concedem ao acervo alcance e sentidos inimagináveis, e é comum que os próprios criadores e seus usuários criem uma espécie de veneração incondicional à coleção, gerando mitos, atração e curiosidade (Blom, 2003, p.193-201).
Segundo Lúcio Rangel, a formação de sua coleção foi central para o desenvolvimento de sua carreira de crítico e historiador da música popular. E ambos se tornaram referências de informações para todos aqueles que trabalhavam com música popular. Para os estudiosos, profissionais e interessados no assunto, nos anos 1950 e 1960, “sua discoteca supre os desastres da RCA Victor em matéria de arquivo, e a sua informação é que vale aos redatores de programas” (O Jornal, 26 ago. 1955, p.7).16 É por isso que a jornalista Eneida – autora de História do carnaval carioca – disse que Lúcio sabia “os nossos sambinhas que ninguém conhece” e tinha “uma discoteca dentro da cabeça” (RMP, 2006, p.176). Essa reverência à memória e aos conhecimentos de Lúcio Rangel e a seu acervo discográfico adquiriu consistência e se consolidou no imaginário dos estudiosos da música popular. Na entrevista dada a O Pasquim, Millôr, Sérgio Cabral e Albino Pinheiro insistiam nesse aspecto, destacando sua importância e influência, que ele sempre negava.17 A consideração de Lúcio como referência de informações críveis chegou a tal ponto que Sérgio Augusto sugeriu de maneira criativa e muito bem-humorada que ele teria sido à época uma espécie de “google bípede” (Augusto, 2014).
COMO CONTAR UMA HISTÓRIA
É admirável como a história pessoal e profissional de Lúcio Rangel molda e se confunde com certa geração de memorialistas, jornalistas e críticos de música popular que preservou a memória e ao mesmo tempo construiu e inventou uma história para esse fenômeno social e cultural recente ainda em meados do século XX. A dinâmica cultural que se estabeleceu entre Lúcio, esse grupo e o fenômeno é bem curiosa. Mesmo não sendo artistas profissionais – muito embora alguns o tenham sido circunstancialmente -, eles participaram ativamente, por dentro, da formação do fenômeno em criação na primeira metade do século XX. Isso significa que as memórias deles são extraordinárias para capturar as impressões diretas ou indiretas desse processo formativo. Nesse universo fragmentário em tensão, as reminiscências adquiriram um caráter ainda mais parcial e inacabado, pois ainda em ação. Assim, as memórias de si confundem-se com a história que querem contar e construir. Tal fato marcou profundamente suas perspectivas, tendo relação direta com a posterior formulação de uma narrativa e história da música popular. Essa dinâmica teve papel relevante de afirmação e reafirmação da cultura nova em composição, que associava práticas musicais e culturais tradicionais com concepções e produções já marcadas pela tecnologia e a lógica nos meios de comunicação eletrônicos. E certamente tal dinâmica também gerou inúmeros dilemas e contradições, como visto na trajetória de Lúcio, muitas vezes difíceis de serem compreendidas e captadas, gerando uma série de incompreensões, uma vez que essa “cultura do povo” fragmentária e diversa apareceu como novidade às margens da cultura oficial, resistindo mas, ao mesmo tempo, incorporando e negociando com ela. Gradativamente esse circuito estabeleceu uma memória social construindo certa tradição, transformada depois em memória de papel (reminiscências escritas, arquivos e livros), criando assim parâmetros historiográficos para um discurso sobre o passado dessa cultura musical. Quando esse processo se estabilizou e as narrativas alcançaram certa unidade discursiva e de sentido, elas se institucionalizaram, consolidando e oficializando uma interpretação do que deveria ser a história da música popular brasileira. E essa história foi contada e recontada, e reproduzida até hoje.
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Recebido: 23 de Maio de 2017; Aceito: 19 de Setembro de 2017
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On-line version ISSN 1806-9347
Rev. Bras. Hist. vol.38 no.77 São Paulo Jan./Apr. 2018
https://doi.org/10.1590/1806-93472018v38n77-06