Leonor Bianchi
Quem imaginaria que o cantor de lundus e modinhas, chulas e choros, descendente de escravos do Rio de Janeiro, Eduardo das Neves, fosse frequentador assíduo da cidade serrana de Nova Friburgo, no interior do estado.
De fato Nova Friburgo sempre foi escolhida pelos intelectuais da capital como um lugar aprazível para repousar, mas também fora o hospital natural para curar muitos desses mesmos intelectuais das pestes e da pneumonia que assolavam a sociedade carioca no final do século XIX.
Rui Barbosa era frequentador de Nova Friburgo; o pernambucano Joaquim Nabuco, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, também frequentava a cidade; Machado de Assis passou uma longa temporada em Friburgo, que também foi muito visitada por outros dois escritores de épocas bem diferentes, Casimiro de Abreu e Carlos Drummond de Andrade. Também o maestro Heitor Villa-lobos fizera seu primeiro concerto em Nova Friburgo, em 1915, pois tinha uma relação próxima com o lugar em função da irmã de seu pai, a tia Zizinha, morar na cidade.
Mas o que traria o ‘Palhaço Negro’, um dos cognomes de Eduardo das Neves, ou também Dudu das Neves, para Nova Friburgo não seriam problemas de saúde, mas sim a arte.
O ‘Crioulo Dudu’, como ele mesmo se autointitulava, fazia parte da cultura circense e veio para Nova Friburgo acompanhando uma companhia de artes que se apresentara na cidade. O ano exato em que ele esteve na pela primeira vez em Nova Friburgo eu não sei dizer, mas o fato é que, apaixonado pelo lugar, passou a visitar Friburgo sempre.
Sua relação com a cidade foi tão íntima, que ele chegou a escrever um teatro de revista encenado na cidade, o ‘Costumes de Friburgo’, e compôs ainda a peça ‘Friburgo na Ponta’. Essa expressão ‘na ponta’ significava na época algo arrojado, moderno, de vanguarda. E de fato Nova Friburgo sempre esteve entre as cidades de mais infraestrutura no estado do Rio de Janeiro. Isto agregado à qualidade de vida que o clima ameno da serra proporcionava fizeram da cidade um polo central de muita efervescência e produção cultural na virada do século XIX para o XX.
Eduardo Sebastião das Neves (1874 – 1919/ Rio de Janeiro) foi descendente de escravos e se tornou um grande artista e militante pelos direitos dos negros no Brasil pós-abolição.
‘Diamante Negro’, ‘Crioulo Dudu’, ‘Dudu das Neves’, ‘Palhaço Negro’… Ele era múltiplo como seus apelidos. Trabalhou na Estrada de Ferro Central do Brasil e também serviu ao exército, como soldado, mas não durou muito tempo na função, pois sua vida boêmia não condizia com a rígida disciplina exigida no cotidiano militar. Compositor, o poeta, como o próprio apelido diz, foi também palhaço circense, algo muito comum para um artista de seu tempo. Mas o que mais marcou sua biografia foram suas canções de lundu e suas modinhas, as quais ele tinha muito orgulho de compor e cantar em público. Destacado, Eduardo foi contrato pela gravadora Casa Edison, em 1906, e, segundo alguns pesquisadores, foi o primeiro cantor negro a gravar um disco no Brasil.
Quem muito bem observou a crítica social expressas nas modinhas, choros e lundus compostos pelo genial Diamante Negro foi o pesquisador da música popular brasileira José Ramos Tinhorão. Para ele, Eduardo das Neves tinha um poder de comunicação muito forte, dinâmico e amplo através de suas músicas, sempre criticando a condição miserável e subhumana imposta pelo Estado ao negro e aos mais pobres. Ele fazia músicas, rimas, pequenas trovas colançonetas sobre os assuntos do momento, como o aumento do preço da passagem do bonde, o aumento do preço do pão… O bom humor atrelado ao fato de estar sempre na estrada viajando com o circo fazia com que suas músicas viajassem junto com ele, fossem cantadas por onde ele passasse e fossem sempre um sucesso. Ele foi uma artista popular de grande sucesso no seu tempo, embora também sofresse discriminação. Para termos ideia de sua genialidade e sua pluralidade de saberes, em 1902, em um Brasil absolutamente analfabeto, Eduardo das Neves escreveu e publicou o livro ‘Trovador da Malandragem’, hoje um clássico raríssimo de ser encontrado nos sebos mais bem frequentados da internet. No prefácio, o Palhaço Negro escreveu um relato indignado onde conta que há muitos que duvidavam ser ele o compositor das músicas que cantava pelo fato de ser ele pobre, simples e preto.
O dia em que a Câmara proibiu o circo de ser armado
Em uma dessas vezes em que o circo e a companhia teatral e circense da qual Eduardo das Neves fazia esteve em Nova Friburgo, a Câmara Municipal, pressionada pelo dono do teatro localizado em frente à Praça 15 de Novembro – hoje Praça Getúlio Vargas, local onde eram armados os circos que passavam pela cidade -, não autorizou que a companhia montasse o circo ali. Uma nota oficial foi publicada na principal folha da cidade normatizando a instalação do circo apenas na Praça do Suspiro.
A imprensa local, que sempre dava destaque à presença de Eduardo das Neves na cidade quando este se fazia presente em Nova Friburgo logo criticou e denunciou a medida. Mas não houve jeito; o circo não pode ser montado em frente ao Teatro Dona Eugênia, na praça principal da cidade, a 15 de novembro.
Não tendo relatos de situações semelhantes na cidade, o fato acaba tornando quase inesquecível a passagem deste grande artista negro que foi Eduardo das Neves em Nova Friburgo.