CULTURA NO BRASIL: 50 ANOS DE AVANÇOS, PANCADAS E RECOMEÇOS


Por Cristina Sabino

Vamos falar a real: a história da política cultural no Brasil nos últimos 50 anos é um verdadeiro samba do artista doido. Teve censura, teve maquiagem institucional, teve abandono, desmonte, chantagem fiscal, e, aqui e ali, lampejos de esperança e reconstrução. Se fosse um roteiro de novela, a cultura seria a protagonista injustiçada – mas teimosa, resistente, sempre de pé.

Ditadura: Censura com verniz cultural

Lá nos anos 1970, a ditadura militar resolveu “abraçar” a cultura criando a FUNARTE. Mas não se engane: isso foi em pleno governo Geisel, com porrete em uma mão e edital na outra. A Funarte servia tanto pra bancar show quanto pra vigiar artista. Era cultura com coleira, controlada, vigiada. O Projeto Pixinguinha até botava bons músicos na estrada, mas era dentro dos limites do que o regime deixava tocar. Viva a arte, desde que não desafinasse com o governo.

Redemocratização: Esperança e… Collor

Com a redemocratização, veio o Ministério da Cultura, graças à articulação de figuras como José Aparecido. Parecia que a coisa ia andar. Mas aí veio Collor e extinguiu o MinC! Sim, ele simplesmente apagou o ministério como quem desinstala um app. Tudo virou ruína de novo. A única luz veio da cabeça brilhante de Sérgio Paulo Rouanet, que criou a lei que leva seu nome – o tal mecenato cultural. Mas sejamos sinceros: o modelo, até hoje, é falho. Tira do Estado pra agradar empresa que patrocina só o que é bonitinho e vendável.

FHC: O marketing da cultura privatizada

Na era Fernando Henrique, a cultura virou um ativo da economia criativa. Tradução: virou produto. A Lei Rouanet virou o carro-chefe do fomento cultural, com foco no setor privado. Se tivesse logomarca bonita, projeto cheiroso e base em São Paulo ou no Rio, passava na frente. O resto que fosse pedir bênção. A cultura deixou de ser direito pra virar vitrine de empresa. Claro que teve coisa boa — o Programa Monumenta, por exemplo — mas FHC apostou mesmo foi na iniciativa privada. O resultado? Um país enorme e diverso concentrando dinheiro em meia dúzia de projetos na Avenida Paulista. E o Estado? Sumido, tímido, burocrático.

Lula (2003–2010): O Brasil canta de novo

Aí sim, a virada. Lula presidente, Gilberto Gil ministro. O Brasil respirou cultura como nunca antes. Gil sacudiu a poeira e colocou cultura no coração da cidadania. Criou os Pontos de Cultura, fortaleceu os povos tradicionais, deu voz a quem nunca tinha microfone. O Programa Cultura Viva foi uma revolução: financiava o que já existia nas periferias, no interior, nos quilombos. Sem exigir que virassem “empresa”. Foi quando o Brasil descobriu que cultura não era só teatro chique ou sinfônica em palácio. Era também maracatu, ciranda, grafite e rap.

Dilma: Entre continuidade e tropeços

Com Dilma, o MinC manteve os trilhos, mas o trem perdeu velocidade. Juca Ferreira tentou manter a chama acesa. Ana de Hollanda apagou algumas. Houve tensões, retrocessos em cultura digital, tropeços em licenciamento aberto… mas as estruturas resistiram. Ainda havia diálogo. Ainda havia escuta. Ainda havia projeto.

Temer: Retrocesso com verniz técnico

Aí veio Temer, e com ele o tapa na cara da cultura. Primeiro, extinguiu de novo o Ministério da Cultura (depois recuou por pressão). Nomeou gente sem noção, cortou verbas, esvaziou Funarte, travou a Ancine, acabou com editais. Conselhos de participação social? Esquecidos. Cultura virou problema, não solução. O que se viu foi a ocupação dos prédios do MinC como forma de resistência. O povo da cultura não se calou, mesmo sendo ignorado.

Bolsonaro: Guerra declarada contra a arte

Se Temer deu o primeiro chute, Bolsonaro pisoteou. Acabou com o MinC de vez, jogou a cultura no Ministério do Turismo! Nomeou secretários caricatos, caçou artistas como se fossem inimigos da nação. A Ancine travou, a Funarte virou piada, o Iphan virou guerra ideológica. A Lei Rouanet foi vilipendiada em rede nacional. E veio a pandemia — com ela, o colapso. O governo lavou as mãos. Só não foi pior porque o Congresso e a sociedade civil criaram as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Lula não estava no Planalto, mas a cultura resistiu como se ele já tivesse voltado.

Lula (2023 – 2025): Reconstrução com crítica da classe

Com a eleição de Lula em 2022, o setor cultural finalmente respirou após anos sufocado por obscurantismo, censura disfarçada de moralismo e desmonte institucional. O retorno do Ministério da Cultura não foi apenas um gesto simbólico – foi um grito de dignidade. Programas como Cultura Viva voltaram com força, a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) prometeu descentralizar 15 bilhões, a Ancine destravou editais congelados há anos, o Iphan retomou a salvaguarda da nossa memória. Enfim, o trem da cultura estava de volta aos trilhos.

Mas aí a gente olha pra base… e vê o buraco.

É impossível ignorar: enquanto o Governo Federal tenta reconstruir com responsabilidade, planejamento e participação social, estados e municípios seguem tropeçando nas próprias pernas — ou melhor, na própria inoperância. Uma parte significativa das prefeituras e governos estaduais parece ter descoberto a palavra “cultura” no dicionário só depois de 2023. Não têm conselhos ativos, não têm plano de cultura, não têm fundo, não têm equipe, não têm nada. E, quando têm, é uma salada de indicações políticas, apadrinhamentos e assessores sem qualquer formação ou vínculo com a área cultural. A palavra do momento é “despreparo”.

Algumas prefeituras, mesmo com recurso em conta da PNAB, não conseguiram fazer absolutamente nada. Não por culpa de Brasília, mas porque não sabem nem lançar um edital. Confundem fomento com evento. Acham que política pública se resume a show no aniversário da cidade com artista de fora e palco inflável. Enquanto isso, coletivos locais, mestres da cultura popular e fazedores de base continuam invisíveis, esperando o tal “apoio” que nunca chega.

E tem mais: há estados e municípios que usam os recursos como moeda política, trocando apoio cultural por votos, ou tentando agradar as bancadas conservadoras que ainda enxergam a cultura como ameaça à moral e aos “bons costumes”. Muitos gestores — alinhados à extrema-direita — fazem corpo mole, sabotam a execução, atrasam processos, e depois apontam o dedo dizendo que o MinC é lento. É o cinismo institucionalizado.

Mas nem tudo é terra arrasada. Em meio a esse cenário de desgoverno, surgem focos de resistência. Alguns gestores públicos, mesmo sob prefeitos conservadores ou governos estaduais alinhados à ultradireita, têm feito o impossível para garantir a aplicação correta dos recursos, montar equipes técnicas, abrir diálogo com a sociedade civil e manter viva a chama da política cultural pública e estruturante. São poucos, é verdade — mas são potentes. São as “ilhas de lucidez” num oceano de improviso e ignorância.

Há municípios pequenos com secretarias aguerridas, organizando conferências, mobilizando conselhos, criando editais com critérios justos e executando ações inclusivas com o pouco que têm. Há estados com equipes técnicas que lutam diariamente contra ingerências políticas, defendendo a cultura como direito e não como vitrine de vaidade. Esses exemplos não são exceção de manual — são a prova de que é possível, mesmo em ambientes adversos, fazer a coisa certa.

No entanto, a pergunta que fica é: por que a exceção não vira regra? Por que tantos gestores locais tratam cultura como estorvo e não como estratégia de desenvolvimento, cidadania e identidade? Até quando a cultura será jogada no porão dos orçamentos municipais, enquanto se torram fortunas com propaganda institucional e show pirotécnico?

O Governo Federal está fazendo sua parte. Reestruturou o MinC, recompôs orçamentos, reativou conselhos, lançou editais, construiu políticas estruturantes e ofereceu capacitação técnica. Mas não dá pra fazer milagre sozinho. A descentralização exige compromisso. A PNAB não é um pix cultural: é um pacto federativo. E pacto se faz com responsabilidade, não com amadorismo.

E agora?

Chegamos em 2025 com a PNAB exigindo mais maturidade institucional. O dinheiro está vindo, mas os municípios precisam saber o que fazer com ele. É hora de fortalecer conselhos, fundos, planos de cultura. É hora de parar de só “denunciar desmontes” e começar a montar de fato. A cultura está, de novo, no centro do projeto de país. E não podemos perder essa chance.

Porque, afinal, cultura não é só palco, tela ou aplauso. É política pública, é direito, é território. É luta. E a luta, como diz o samba, ainda não acabou.

E a classe artística? Todo mundo quer verba, mas poucos querem construir junto

Enquanto o Governo Federal tenta retomar o fio da história com políticas estruturantes, descentralização de recursos e retomada dos espaços de participação social, a classe artística parece estar dividida entre dois mundos: o da oportunidade histórica e o do ego inflado.

Vamos aos fatos. O Ministério da Cultura está promovendo fóruns, seminários, oficinas, escutas territoriais, plataformas colaborativas e ciclos de capacitação como nunca antes. Nunca foi tão possível se informar, participar, propor. O MinC está dizendo em alto e bom som: “venham construir junto”. Mas o que se vê em boa parte desses espaços é um desfile de lamúrias individuais, de vaidade institucional e de um corporativismo sufocante.

A maioria das falas nos encontros públicos começa com “no meu projeto aconteceu…” ou “na minha instituição o edital errou em…” — como se o Brasil cultural fosse um espelho de umbigos. Poucos chegam com propostas sistêmicas, diagnósticos coletivos, visões de futuro. A construção coletiva está na boca de raríssimos. O resto está ali pra resolver “seu problema”. Não há pacto, há uma romaria de demandas desconectadas.

Há quem ainda trate política pública como balcão. E cultura como moeda de troca. A lógica do “eu quero meu edital aprovado” grita mais alto que qualquer ideia de sistema, território, ou equidade. É como se o artista exigisse do Estado tudo o que ele não se dispõe a fazer nem com o colega da sala ao lado.

Isso sem falar na falta de preparo de muitos que se autodeclaram “representantes culturais”, mas sequer sabem o que é PNAB, como funciona um conselho de cultura ou por que um plano municipal de cultura é essencial. Querem os direitos, mas torcem o nariz para os deveres. Rejeitam a burocracia, mas não se dispõem a entender a máquina pública — e depois culpam o MinC por tudo, como se ele fosse um mágico e não uma instituição com engrenagens que precisam de esforço conjunto pra funcionar.

Não dá pra continuar assim. O tempo do “me dá meu” precisa dar lugar ao “como construímos juntos”. Chegou a hora da classe artística sair do discurso do ressentimento e entrar no campo da corresponsabilidade. O MinC sozinho não dá conta de consertar anos de desmonte, municipal por municipal, edital por edital. É preciso colaboração qualificada, articulação em rede, disposição para pensar o todo.

Se a cultura é mesmo um direito de todos, como tanto se afirma, então a responsabilidade por garanti-la também é de todos — e isso inclui artistas, produtores, gestores, coletivos, técnicos e público. Chega de “público espectador” também nos fóruns: é hora de ser parte ativa da engrenagem.

Ou a gente constrói política pública juntos, com generosidade, visão de país e compromisso com o outro — ou vamos continuar mendigando soluções individuais num sistema que só funciona com coletividade. E a cultura brasileira, essa potência que sobrevive apesar dos pesares, merece mais do que isso.

Conclusão: entre o desmonte e a reconstrução, a escolha é coletiva

Chegamos a 2025 com a cultura de volta ao centro das políticas públicas, após anos de ataques, omissões e desmontes. O Ministério da Cultura está reestruturado, programas fundamentais foram retomados, e recursos estão chegando onde nunca antes haviam chegado. Mas a reconstrução só será completa se estados e municípios fizerem sua parte com seriedade e se a classe artística compreender que o momento pede menos individualismo e mais ação coletiva. Cultura não se faz só com projetos aprovados — se faz com participação, escuta, articulação e compromisso com o todo.

Ainda assim, o cenário é de esperança. Há gestores públicos corajosos nadando contra a maré conservadora, há coletivos atuando com generosidade e inteligência política, há espaços sendo reocupados com afeto e potência criativa. O Brasil tem todas as ferramentas para fazer da cultura um direito pleno e uma força viva para a democracia. Basta que cada um — do artista ao gestor, do técnico ao militante — escolha construir junto. O tempo da lamúria passou. Agora é tempo de fazer.

 

Cristina Sabino – Produtora cultural com 37 anos de experiência, parecerista, especialista em gestão pública, gestão social e gestão cultural.

 

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Author: imprensabr