Por André Diniz e Diogo Cunha
Cláudio Lopes dos Santos, mais conhecido como Cláudio Camunguelo era pagodeiro de mão cheia e grande (que mais parecia uma raquete), enfiava sua flauta transversa na música que aparecesse pela frente. Virou uma figura lendária nas rodas de samba e de choro da cidade do Rio. O cabra mereceria um capítulo à parte. Nascido em Vaz Lobo, porém radicado na Estrada da Água Grande, em Vista Alegre, “Camunga” pegou gosto pela música quando era “dimenor”, graças a um amigo de seu pai, que tocava em conjunto de música caribenha, gênero muito propalado nos subúrbios cariocas nos anos 60. O pai, vendo que o filho levava jeito para a coisa, presenteou-o com uma flauta de bambu. Mas sua mãe, depois de um rififi com o cachorro da vizinha, quebrou a flauta na cabeça do totó. Paciência! A flauta, no fim das contas, ficou em petição de miséria. Tempos depois, quando entrou para Aeronáutica, jazeu em um dormitório em cima da banda da escola de cadetes. Logo, porém, fez amizade com o sargento Paulo, que lhe emprestou uma flauta de ébano: “Acho que ele já deve ter morrido (o sargento Paulo). Esse pessoal de banda bebe demais”[1]. Ao dar baixa, o flautista jogou nas onze: “Quando eu saí da Aeronáutica, a única coisa que eu sabia fazer era ser polícia, dar porrada nos outros. Mas isso eu nunca fiz. Então tive que apreender a fazer de tudo um pouco”[2]. E Camunguelo era pau pra toda obra: ajudante de pedreiro, eletricista, instalador de letreiro luminoso, estivador, motorista de táxi, de ônibus e até da embaixada do Senegal, é mole!?
Camunga também realizava porrancas memoráveis em sua casa para homenagear o Santo Guerreiro. Que o diga o meu amigo e mestre Moacyr Luz: “O saudoso Camunguelo, abria os portões da residência em Vista Alegre, já à meia-noite. Com o trompete de Silvério Pontes fazendo de clarim da banda militar, o rega-bofe dava início”[3]. O amigo Silvério Pontes participou algumas vezes do São Jorge do Camunga. Em uma dessas edições, o flautista, devidamente cheio de Marimbondo (sua cana predileta), levou Silvério para cima da laje. O nosso Silvério Pontes era o responsável pelo toque da alvorada. Disso ele sabia, e concordou, sem ressalvas. Mas uma coisa Silvério não sabia: que o show pirotécnico estava armado na mesma laje em que ele estava. Ao executar a alvorada, veio uma saraivada de fogos de artifício. Silvério quase caiu da laje com seu instrumento e tudo. Moacyr Luz continua: “Amanhecia com os primeiros adeptos dosados de Marimbondo, cachaça nordestina de 52°, recepcionando os vermelho-e-brancos da alvorada. Os acepipes, providos do famoso livro de ouro, mantinham a categoria de pé-sujo oficial: siris ao molho de tomate, moelas e outros miúdos de galinha, e um feijão gordo temperado à base de pé e garganta suínos. O samba já batia ponto na varanda improvisada. Quem conheceu este ‘terreiro’ sabe do que estou falando…[4] Nesta série de músicas que venho fazendo com meu parceiro Aldir Blanc, homenageando essas grandes figuras da nossa vida carioca, temos um samba ainda inédito chamado ‘Camunga’ que, infelizmente, por conta do destino, ele não pode ouvir”:
“Quando uma flauta cruza a noite igual a um dardo,
Ferindo o peito do bardo
Com um som humilde, mas belo,
Eu já sabia que só poderia fazer melodia
Desse jeito singelo:
Era o meu Camunguelo.
Era o meu Camunguelo magro, de boné branco…
Um São Jorge, da Estiva…”
Além de festeiro, Camunguelo era também armador, estivador e amante da pesca. “Um dia resolveu dar uma de armador. Não! Não é armador de trampolinagens não, nada disso, 1-7-1!. É armador mesmo, construtor de barcos”[5], diz o mestre Nei Lopes. O barco Camunguelo I seria o pioneiro de uma série. Rebocado pela Avenida Brasil para o traslado até a Praia de Ramos, o Camunguelo I causou um puta engarrafamento na via; mas quando a embarcação ganhou as águas da Praia de Ramos, teve choro, soco na areia, Marimbondo a rodo … Enfim, um sucesso!
Uma canja e dois copos
Fora do mar e em terras seguras, o mestre dos mestres Nei Lopes, como pesquisador de cultura negra, foi procurar nos idiomas africanos algo parecido com camunguelo. Num dicionário da Nigéria ele encontrou a palavra ‘camundele’, que quer dizer ‘branquinho’. É claro que ninguém conhecia isso. Mas Camunguelo sabia que Silvério era fã de carteirinha de Zé da Velha. Certo dia, no bar Boca da Noite (rua do Mercado, 32, Centro do Rio), improvisou uma conversa: – Silvério, eu conheço o Zé da Velha. Ele toca todo sábado em São Cristóvão. Um dia eu trago ele aqui para dar uma canja. Silvério não acusou o golpe do amigo sonhador:
– Zé da Velha vem dar canja aqui!? Tá maluco, Camunguelo!?
Ala do Pagodinho
Apesar de ser “do peito” de Camunguelo, Silvério Pontes não conhecia o lado mestre de cerimônias de Camunga. Ele apresentou Zeca Pagodinho a Arlindo Cruz, num bar na Praça de Quintino chamado C.. da Mãe. E ainda por cima “criou” o apelido “Pagodinho” para o Zeca: “Eu vivia em Irajá”, versa Zeca Pagodinho. “Na casa dos meus tios, que era um lugar muito musical, com bons sambistas. Havia o bloco Boêmios de Irajá, e o meu primo, Beto Gago, tinha uma ala em que eu era mascote, quando tinha 13, 14 anos, chamada ‘Ala do Pagodinho’. Minha fantasia era costurada pela minha tia com o que sobrava da fantasia dos outros e eu saía no bloco com eles. Uma vez, meu irmão arranjou 50 pessoas de Del Castilho para sair no bloco, todo mundo na Ala do Pagodinho, e os caras ficaram nos chamando de pessoal do Pagodinho. Minha primeira música foi com o Claudio Camunguelo, um negão grande para caramba, que trabalhava no porto como estivador e era flautista. Nós concorremos no Fest Samba em 1982, na Portela, e estávamos à procura de um nome: Jessé Silva, Zeca Silva, Seca Silva – meu apelido em família é Seca, não Zeca. Um dia, estava indo para casa com ele, em Del Castilho, e quando descemos do ônibus um cara disse: ‘Fala, Pagodinho!’. O Camunguelo achou aquele nome bom e o colocou, mesmo contra a minha vontade”.[6] E tem mais. Em 1983, Zeca Pagodinho (em parceria com Cláudio Camunguelo), teve sua primeira música gravada: “Amargura”. A faixa entrou no segundo elepê do grupo Fundo de Quintal: “E que vale a vida se eu não tenho a sorte \ Se a alma é fraca pra que corpo forte”.
Vamos tocar uma gafieira?
De repente, numa sexta-feira de 1986, entra no Boca da Noite um camarada bem vestido, de bigodinho fininho, cabelinho preto, penteado para trás, e uma maletinha na mão. Senta à mesa e pede um chope. Camunguelo cutuca Silvério. Silvério estica o pescoço, aperta os olhos e custa a acreditar: “Eu pensei com os meus botões: ‘Só pode ser ele’”.[7] Era. Nove anos depois desse encontrão. Em 2005, no primeiro elepê, da Menor Big Band do Mundo, intitulado Só Gafieira. Essa big dupla grava o choro do cupido: “Camunguelando” de Cláudio Camunguelo e Júlio Costa. Mas dezembro de 2007, o nosso Camunga foi oló. E “Meu Gurufim” de J. Carioca (uma das pérolas do repertório Camunguiano) foi cantada, bebida a rodo (com direito a cana Marimbondo) e choro cantou pra subir:
“Eu vou fingir que morri
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça …”
[1] PIMENTEL, João. Camunguelo: flautista versador e andarilho do samba carioca começa a ser reconhecido para além das rodas. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2001. Matutina, Segundo Caderno, p 1.
[2] PIMENTEL, João. Camunguelo: flautista versador e andarilho do samba carioca começa a ser reconhecido para além das rodas. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2001. Matutina, Segundo Caderno, p 1.
[3] Blog do Moacyr Luz. Disponível em: http://youpode.com.br/blog/blogdomoa/tag/claudio-camunguelo/
Acesso em: 14 de junho de 2016.
[5] LOPES, Nei. 171: Lapa-Irajá: casos e enredos do samba. Rio de Janeiro: Folha Seca, 1999, p. 107.
[6] Entrevista de Zeca Pagodinho. Disponível em: http://osomdovinil.org/2013/12/19/zeca-pagodinho-zeca-pagodinho/ Acesso em: 20 de dezembro de 2015.
[7] Entrevista de André Diniz e Diogo Cunha com Zé da Velha e Silvério Pontes no dia 4 de novembro de 2015.