No domingo 24 de janeiro de 2016, a Revista do Choro começou a publicar o livro Pensadores do Choro na íntegra para seus assinantes. A cada domingo um novo capítulo vem sendo publicado desde então. Após publicarmos o artigo Tudo Culpa do Choro, do autor Sergio Aires, contemplado pelo prêmio literário promovido pela Revista do Choro e e-ditora] (www.portaldaeditora.com.br), em 2014, estamos publicando o texto de Vanessa Trópico vencedor do edital: O choro marajoara de Adamor do Bandolim e um breve relato da história do choro no Pará. Leia hoje o sexto capítulo do texto de Vanessa Trópico.
Boa leitura!
A história do choro em terras tupiniquins começa a ser escrita a partir da vinda definitiva dos portugueses para o Brasil, em 1808.
Como reflexo da mistura de sotaques e estilos, a música brasileira fervilhou em um grande caldeirão cultural no seio da formação do nosso povo mestiço.
Nesse período, o Rio de Janeiro foi elevado à categoria de sede do Reino Unido do Brasil.
Na bagagem da corte portuguesa vieram, além de instrumentos, como o piano[1], as partituras e, por consequência da demanda, as casas editoriais de partitura.
Danças europeias, alguns gêneros e hábitos musicais, como o minueto, a quadrilha, a valsa e a schottisch começaram a formar, dentro do cenário musical da época, novas ebulições culturais advindas de longe, por meio das mãos dos músicos brasileiros e sua maneira singular de tocar.
O gênero choro possui influência direta do lundu que, como principal ritmo de origem africana, passou a ter força na produção musical brasileira pelo seu contorno percussivo.
No cenário das festas populares, nos salões da classe média do Brasil Colônia, por volta de 1845, a polca tornou-se uma febre. A dança de rosto colado e corpos próximos, somado ao lundu já cristalizado à cultura brasileira no período, fora sendo abrasileirada em sua forma de tocar e, por consequência, moldou forma, estilo e características próprias ao novo gênero.
Os chorões do século XIX, no Brasil, não tocavam visando remuneração, mas sim boa comida e bebida nas festas que frequentavam, como casamentos, batizados e aniversários. Os músicos do período tocavam pela simples recompensa de tocar juntos numa fraterna e musical comunhão, característica esta presente até hoje entre os chorões.
Para alguns autores, o termo choro consiste na maneira chorosa da sonoridade dos instrumentos. A origem do nome possui inúmeras explicações, as quais nenhuma ainda realmente comprovada. Para o pesquisador Ary Vasconcelos, “os negros faziam bailes nas fazendas chamados de “xolo”. Com o passar do tempo, esse nome veio se transformando até chegar à palavra choro”. Conforme o músico e pesquisador Henrique Cazes, o nome se deve a “maneira chorosa de frasear o solo, gerando o termo chorão. Na verdade, se algo evocava a melancolia, era, com certeza, a maneira de se tocar a melodia”. Pode-se, também, verificar a explicação do historiador André Diniz:
“- Das várias versões, prefiro a do Maestro Baptista Siqueira, que afirma que o termo nasceu de uma colisão cultural entre o verbo chorar e chorus, “coro” em latim”.
Das controvérsias a respeito das origens da terminologia, vale ressaltar que o termo chorinho é considerado pejorativo para a maioria dos músicos que excutam o gênero. Ora, se não se denomina outros gêneros musicais no diminutivo; sambinha, jazzinho, sertanejozinho, então o gênero é choro e não chorinho[2].
Música popular genuinamente brasileira, o choro foi inicialmente propagado por meio das audições de pianistas como Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga nas salas de espera do teatro Odeon, na Cinelândia (RJ). Contudo, foi a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, sob a regência do maestro Anacleto de Medeiros, foi quem mais proporcionou visibilidade ao gênero, quando o incluiu ao seu repertório. Em 1896, Anacleto recrutou os melhores músicos populares da cidade para constituir sua banda. Para alguns, foi uma verdadeira escola onde puderam aprender com o grande maestro; para outros, era seu único meio de sobrevivência.
Normalmente, as bandas tocavam em festas de grande porte por sua capacidade sonora ser potente, já que, até então, não havia equipamentos para amplificação do som. Nessa época, as bandas forneciam músicos populares para o choro e para o Teatro de Revista[3]. Foi nesse contexto, que surgiu todo o talento de Pixinguinha, considerado um gênio da música popular brasileira e do choro. O músico foi arranjador do Teatro de Revista, no Rio de Janeiro e construiu para o choro sua identidade através de composições, como Naquele tempo, Um a Zero – ambas em parceria com Benedicto Lacerda -, dentre outras. Ao perceber a necessidade de não mais seguir à risca os arranjos europeus, seu grupo ‘Os Oito Batutas’ foi para o exterior apresentar o maxixe ao mundo; ritmo resultante da forma abrasileirada de tocar a polca com fortes elementos percussivos do lundu. Curiosamente, sua composição Carinhoso, de 1929, foi considerada um jazz ‘abrasileirado’, como tentativa de negar sua brasilidade. O maestro e exímio arranjador, nos seus últimos dias de vida, aceitava qualquer trabalho para sobreviver. Apesar das dificuldades, nunca mudou sua forma de orquestrar, arranjar e compor a música brasileira.
As primeiras gravações de choro que se tem registro são datadas de 1902 pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. A Casa Edison, em sua fase inicial, privilegiou as bandas nas suas gravações. O registro sonoro mecânico rusticamente acontecia a partir de um cone de metal que tinha em sua extremidade um diafragma, o qual comandava a agulha que cavava os sulcos na cera.
A gravação de músicas para venda em discos permitiu a profissionalização de numerosos músicos do gênero. As gravações mecânicas foram superadas e deixadas de lado em 1927 com o surgimento da gravação eletromagnética, que possibilitou captar vozes e instrumentos sem grandes esforços dos cantores e instrumentistas. Porém, com o advento do samba, as gravadoras perderam o interesse pelo choro. Tudo o que foi produzido do gênero circulava apenas no grupo dos chorões, tornando-se uma música de público restrito em rodas informais.
A ‘História dos Regionais’ tem início pelos anos de 1930 a 1940, quando o rádio se torna o meio de comunicação e entretenimento mais importante da época. Neste período havia uma ferrenha disputa pela audiência entre as rádios Mayrink Veiga e Nacional, ambas do Rio de Janeiro, e seus programas de auditório e apresentação de calouros. O ano de 1936 foi o auge dos ‘regionais’. O conjunto de chorões ficou conhecido por esse nome devido à instrumentação de dois ou três violões, cavaquinho, um ou dois instrumentos percussivos e um solista, muito semelhante aos grupos musicais regionais. O regional foi peça fundamental para o sucesso na programação das rádios. Para os músicos, uma grande escola, pois era preciso ser ágil para atender as necessidades de um programa transmitido ao vivo.
O músico e pesquisador Henrique Cazes em seu livro O Choro: do Quintal ao Municipal cita um depoimento que Dino Sete Cordas concedeu à pesquisadora Lilian Zaremba, onde ele relata como era a rotina de um músico no tempo dos regionais:
“- Foi acompanhando calouros, que eu aprendi a manejar o violão. O calouro quando canta, ele às vezes atravessa e a gente, que está acompanhando, tem que atravessar junto, senão vai atravessando até o final. A gente tem que pular junto para chegar junto e o ouvinte não perceber”.
O regional de maior sucesso foi o de Benedicto Lacerda, pela alta qualidade de seus músicos. Em 1951, surge, dentro deste panorama, o Regional do Canhoto, que entre seus componentes tinha o ilustre flautista Altamiro Carrilho.
Compreende-se a década de 1960 como o período em que grandes instrumentistas deram visibilidade e notoriedade ao choro, mas vale ressaltar, que muitos dos que serão citados aqui já faziam música, composições e gravações anos antes. O que houve nos anos de 1960 foi a notoriedade de seus talentos individuais.
Vale ressaltar, ainda, que nos anos 60 houve uma grande entressafra para os músicos que viviam de tocar choro. A ‘era da música eletrônica’, das discotecas, afastou sobremaneira o choro das gravadoras, do rádio e do público, fazendo com que muitos instrumentistas enfrentassem adversidades financeiras uma vez que não eram mais chamados para trabalhar.
Ao falar do bandolim, deve-se creditar a Luperce Miranda, pernambucano, músico e compositor de choro, o mérito de trazer o instrumento como solista para o gênero na década de 1920, como relata Hamilton de Holanda no prefácio que escreveu para o livro Luperce Miranda: O Paganini do Bandolim de Marília Trindade Barboza.
“Foi um dos primeiros a tocar o Bandolim em uma posição de solista de destaque no regional brasileiro. Deixou uma bela obra, entre discos, interpretações e composições. E o principal: contribuiu de forma definitiva para a formação de uma técnica sólida e virtuosística. Vendo Luperce tocar, até parecia fácil. Seus dedos passeavam pelo braço do instrumento.” (BARBOZA. 2004)
Até então, antes de Luperce Miranda, o bandolim era muito utilizado como instrumento de acompanhamento. Depois da velocidade e do mecanismo de Luperce Miranda, vamos conhecer o estilo e o som robusto de Jacob do Bandolim (1918 -1969), o qual está, sem dúvida, e por mérito, entre os maiores compositores e instrumentistas de choro que conhecemos. Músicas como Noites Cariocas, Doce de Coco, Vôo da mosca e Vibrações são composições que destacam seu imenso talento harmônico e melódico. Jacob Pick Bittencourt popularizou o bandolim em sua época e teve grande preocupação com a perpetuação do choro. São conhecidos os saraus e rodas de choro que organizava em sua casa, em Jacarepaguá (RJ). Entusiasta dos redutos mais populares para a produção musical, Jacob chegou a considerar o choro morto e reclamava a ausência de espaços para os encontros musicais, dizendo que ‘estavam faltando quintais’, como podemos ouvir no depoimento que deu ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS/ RJ), em 1967. O pesquisador André Diniz, em um de seus livros, lembra que o filho de Jacob, Sergio Bittencourt, contava em várias ocasiões um fato muito conhecido, de que o pai exigia um estado de contrição e silêncio absolutos e não admitia conversas enquanto o choro estivesse sendo executado. Sem cerimônias, convidava quem estivesse atrapalhando a audição a retirar-se do local. Seu regional, o Conjunto Época de Ouro, atuante até hoje com nova formação, busca manter o choro como nos tempos de Jacob e nunca fora chamado de ‘regional’. O bandolinista tinha verdadeira ojeriza ao termo, pois para ele ‘regional’ era um grupo de “peões do rádio”, músicos desleixados, que serviam para tapar buracos nos programas radiofônicos.
Com a primeira parte praticamente toda tocada na primeira corda do cavaquinho, o choro Brasileirinho marcaria a história do gênero para sempre. É impossível pensar em choro e não remeter-se a essa composição extremamente popularizada. Logo após vieram Delicado e Pedacinhos do Céu. Waldir Azevedo deu ao cavaquinho um status que ninguém havia dado até então. O instrumento virou febre. Pelas ruas, os garotos da época disputavam quem tocava mais rápido. Waldir tinha um som forte e muita musicalidade. Músico de fama internacional, segundo Henrique Cazes teve a chave de seu sucesso criando temas simples, sem muitos rebuscamentos, mas de nível técnico e musicalidade nunca vistos antes, aliados a um grande efeito sonoro.
Em 1970, com o surgimento dos festivais e a (re)valorização da música brasileira, o choro volta ao cenário musical e Joel Nascimento, bandolinista, cria uma versão de Suíte Retratos para os jovens músicos da antiga formação do grupo Os Carioquinhas, para que fizessem toda a parte da orquestra. O êxito na apresentação do grupo fez com que viajassem por vários estados brasileiros, mostrando uma nova possibilidade de se fazer choro: dois violões (um de seis, outro de sete cordas, ou outro violão de seis, porém respeitando as funções de dois violões trabalhando juntos), um bandolim solista, um cavaquinho e um pandeiro.
No final da década de 1980, a música instrumental brasileira novamente perde espaço para a música mecânica.
Hoje, pode-se afirmar que, embora a tradição das rodas de choro ainda seja mantida, o movimento do gênero não se resume apenas a elas, mas a palcos e casas de shows específicos para choro.
É importante frisar a presença de instrumentistas brasileiros em turnês pelo mundo mostrando ‘escola do bandolim brasileiro’, a exemplo dos bandolinistas Danilo Brito e Hamilton de Holanda.
Entretanto, atualmente, não se vive um momento como a década de 1970. Os músicos que viveram essa época áurea demonstram uma insatisfação ao espaço dado para choro no contexto cultural atual.
[1] Símbolo de riqueza e ostentação desta classe social, pois remetia à “civilização moderna”.
[2] Alguns usam o termo para anunciar que irá acontecer uma roda de choro menos informal, com um repertório mais conhecido. Sem muitos improvisos e arranjos elaborados.
[3] Um musical que trazia à cena os fatos ocorridos na cidade, como uma revista.