João Gilberto e o choro


Leonor Bianchi

Quando eu tinha seis anos meu pai, Fernando, já em outro plano astral hoje, colocou um LP na vitrola, me chamou para sentar em seu colo, e disse segurando a capa do disco, apontando pra outros dispostos sobre a mesa: Nozinha, tudo o que você ouvir na sua vida daqui pra frente nasceu do que esses três caras fizeram: tinham LPs de Pixinguinha, a coleção completa dos Beatles e do João Gilberto. Nessa hora tocava ‘Disse alguém’, com João Gilberto. Ele, então, me deu um beijo e me levantou do seu colo já dançando comigo. E é difícil dançar essa música! Dali pra frente está canção passou a ser a nossa música. Passei minha infância e o início da adolescência ouvindo e dançando João Gilberto com meu pai. Mas… chega de saudade… Hoje escrevo sobre João Gilberto e o choro para a Revista do Choro.

Quem pesquisa a história da música popular brasileira já conhece o capítulo que vou contar agora, mas é sempre bom relembrar, ainda mais hoje, dia em que fazemos o gurufim do nosso grande pai-mestre da MPB, João Gilberto, falecido ontem, aos 88 anos, no Rio de Janeiro.

A música ‘Chega de saudade’, composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, gravada por João Gilberto, e tida como marco fundador da bossa nova, foi composta como um choro e não como um samba, ou um samba-canção, tampouco uma bossa nova, que nesse tempo nem existia, ou se já existia não havia assumido ainda este pseudônimo, que viraria uma febre rapidamente depois de dela.

A música foi gravada pela primeira vez por Elizeth Cardoso no disco ‘Canção do amor demais’, de 1958, que proporcionou o encontro da dupla Tom e Vinicius, acompanhados de João Gilberto ao violão.

João também gravou :Chega de saudade’ duas outras vezes: em seu primeiro disco compacto, lançado em 1958, no qual gravou de um lado sua composição ‘Bim bom’ e do outro a música de Tom e Vinicius. E depois em 1959, em seu primeiro LP, ‘Chega de saudade’.

A gravação de João Gilberto para Chega de saudade nada tem de choro, como a gravada por Elizeth Cardoso, que inclusive é dedicada a um homem, enquanto que a gravada por João Gilberto tem a letra alterada em alguns momentos e é direcionada a uma mulher:

“Mas se ela voltar, se ela voltar… Que coisa linda!

Que coisa louca!…”

Ano passado, por ocasião dos 60 anos anos do LP Canção do amor demais’, o jornalista João Máximo comentou a participação de João Gilberto em um artigo para o jornal O Globo:

“O violão de João Gilberto. Pouco notado em quatro das seis canções em que acompanha Elizeth, mesmo na fina introdução que faz em “Eu não existo sem você”. João tinha voltado do exílio em Minas um ano antes, inteiramente reinventado, com um jeito de cantar e se acompanhar que, diferente do “crooner” que fracassara em seus cinco primeiros anos de Rio, causou mesmo uma revolução. Nas duas faixas de andamento mais ligeiro, “Chega de saudade” e “Outra vez” (a única não inédita, gravada por Dick Farney em 1954), ele leva ao disco a tal simplificação rítmica que seria a marca registrada da bossa nova. Dois meses depois, o próprio João Gilberto gravaria “Chega de saudade”, fazendo deste o momento em que toda uma brilhante geração de compositores e letristas decide se dedicar à música”.

Não encontramos referências de João Gilberto convivendo com muitos chorões tampouco gravando com eles, ou interpretando choros. O que a história nos deixou é uma interpretação memorável de João Gilberto tocando um choro clássico do maestro Pixinguinha com letra de Braguinha, João de Barro: Carinhoso.

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Author: imprensabr