A Flor Amorosa de Joaquim Callado


Leonor Bianchi

O dia estava quente naquele 20 de março de 1880. A família Callado se abraçava e chorava em um canto. Amigos, vizinhos, colegas, professores do Liceu de Artes e Ofícios, alunos e admiradores lembravam de suas qualidades à flauta e frente à família. “Um gigante no sopro”, “um ás da flauta”,” deixou muita música bonita”, bradavam entusiasmados muitos dos presentes aquele enterro. “Nunca esquecerão do Callado, podem anotar aí. Joaquim Callado nunca será esquecido”, afirmou um amigo com toda razão que o momento pedia.

De repente, um grupo de amigos músicos irrompe o ambiente do velório tocando suas músicas. Viriato, o flautista tão parceiro de Callado é visivelmente o mais emocionado do grupo. Em meio a tantas lembranças sonoras referentes à vida musical do morto, é tocada sua última composição: A Flor Amorosa. Todo aquele povo que ali estava chorando a morte do grande mulato carioca, que foi Joaquim Antonio da Silva Callado, num gesto de homenagem póstuma começou a voltar sua atenção para o que aquele grupo de músicos tocava. E foi naquele momento mágico em que sua última composição era interpretada com tanta emoção, que nasceu ali a terceira parte da música. A polca, que estava inacabada ganhou seus acordes finais na roda, no velório e em poucos dias era o maior sucesso na cidade do Rio de Janeiro. Assoviada pelas ruas, em um mês foi editada pela casa editora Narciso, Napoleão & Miguéz, tornando-se sucesso de vendas imediato nas lojas de partituras.

Ao contrário do que sempre foi afirmado em tudo que se escreveu sobre Callado, de que seu enterro não teve ninguém pois ele morreu de doença infecciosa, nós descobrimos em nossas pesquisas que o enterro de Joaquim Antonio da Silva Callado foi movimentado, com presenças numerosas de professores do Liceu de Artes e Ofícios, certamente familiares e músicos. O texto acima é uma criação mas em seu conteúdo estão as informações de diversas fontes que nos levam a crer que a despedida de Callado não foi nada sorumbática. Inclusive, a polca Flor amorosa foi finalizada em seu enterro e mandada publicar logo após sua morte como sua “última composição”.

enterro de callado DETALHE

A primeira gravação e importantes registros posteriores

A polca A Flor Amorosa, é, talvez a música mais conhecida de todo o repertório do choro. Composta num tempo em que não havia gravação sonora (1880), a composição de Callado apresenta os elementos necessários para os novos ares que o choro acabou ganhando após sua breve partida.

Sua primeira gravação foi feita em 1902 nos estúdios da Casa Edson, sendo lançada em 1904 quando a Casa Edson já se chamava Odeon. A primeira gravação tem a assinatura dos irmãos Eymard, que num andamento ligeiro apresentam a polca de Callado dando-nos uma trilha de como provavelmente esta musica ficou sendo tocada de 1880 até a entrada do século XX, quando teve este primeiro registro sonoro realizado e, logo, foi amolecida pelos versos de Catulo da Paixão Cearense.

O registro fonográfico de A Flor Amorosa naqueles primeiros meses de lançamento da gravação mecânica no Brasil, demonstra o quanto esta música era popular. Com andamento vivo e grupo instrumental de sopros, destacando-se flauta, requinta, bombardino, piston (trompete) e Tuba.

Irmãos Eymard 1902 – lançado 1904

Primeiro Registro com letra

A composição de Callado ganharia nos anos posteriores outras gravações instrumentais e em 1913 teve o primeiro registro em disco de sua versão com letra de Catulo. O cantor Aristarco Dias Brandão, pioneiro entre os cantores brasileiros, gravou Flor Amorosa em 1913.

Aristarco Dias Brandão 1913

Outra importante gravação de A Flor Amorosa, aconteceu em 1929 pela soprano Abigail Parecis. A música havia recebido letra de Catulo da Paixão Cearense desde a entrada dos anos de 1900, figurando em seu Álbum de Modinhas como uma de suas principais criações. (ILUSTRAÇÃO Album de modinhas de Catulo com Flor amorosa). Esta gravação, considerada a primeira gravação da empresa Byington & Cia., representante da gravadora americana Columbia, no Brasil, apresenta a criação de Catulo da Paixão Cearense para a pola de Callado numa interpretação magistral e que permeou durante décadas o modo feminino de cantar esta música. O número da matriz do disco é 380023. No selo o nome de Joaquim Callado é omitido, saindo apenas Catulo como autor da música.

Acesse http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/121

Abigail Parecis 1929

Registro instrumental de Jacob do Bandolim

Em 1949 Jacob do Bandolim gravou a polca Flor Amorosa em registro lançado em seu quarto e último disco pela gravadora Continental (16011-B, matriz 1945), em março-abril de 1949. Na interpretação de Jacob ouvimos o quanto se modificou na interpretação desta música desde a gravação dos irmãos Eymard, passando pelas gravações cantadas e chegando de volta ao ambiente do Choro com Jacob já incorporando muitos maneirismos vindos das interpretações cantadas. Exemplo: a entrada da melodia. A primeira nota é pontuada e num diminuindo/acelerando Jacob insere exatamente a bossa que Aristarco Dias Brandão apresentou em sua gravação de 1913.

Interpretada por Jacob

A gravação que fez renascer A Flor Amorosa

Uma das gravações que mais contribuíram para popularizar a Flor Amorosa com letra foi a de Francisco Carlos, o El broto, em 1959 para o filme “Esse milhão é meu”. O produtor do filme sugeriu a Francisco Carlos que cantasse alguma música ‘bem da antiga’. Francisco Carlos procurou, então, Paulo Tapajós, diretor artístico da Rádio Nacional e profundo conhecedor do repertório da velha guarda para que ele sugerisse algo e recebeu a sugestão de inserir no filme a Flor Amorosa de Joaquim Callado com letra de Catulo. Naquele momento a música já estava caindo no esquecimento mais uma vez e a gravação de El broto e sua entrada no filme “Esse milhão é meu fez” com que ela retornasse á memória de todos e chegando a ser inserida numa novela anos depois como tema da protagonista Nina muito por conta desta gravação.

1959 Filme Esse Milhão é Meu com Altamiro Carrilho e sua bandinha acompanhando Francisco Carlos cantando Flor Amorosa.

Interpretação por Francisco Carlos 1958 choro-canção

A gravação de Luperce Miranda em 1969

Em 1969 o bandolinista Luperce Miranda realiza uma gravação com uma interpretação recheada de todas as características interpretativas que sempre marcaram suas gravações. Velocidade, mínimas e semínimas tarnsformadas em colcheias e semicolcheias e um novo ar. Quase que retornando a gravação dos Irmãos Eymard por conta da vivacidade do andamento.

Interpretada por Luperce Miranda

Uma das inúmeras interpretações instrumentais da famosa polka (assim mesmo, com k) de Joaquim Antônio da Silva Callado, tanto que os primeiros registros, de 1908/09, foram assim concebidos, e a primeira gravação com a letra famosa de Catulo só viria em 1913. Esta aqui é do LP do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, intitulado “Luperce Miranda de ontem e sempre”, e gravado em 1969.

A gravação de Maria Martha em 1977

Em 1977 a novela ‘Nina’ da Rede Globo trouxe em seu repertório diversos choros e entre tantos deu a Flor Amorosa de Callado e Catulo, interpretada pela cantora Maria Martha a primazia de ser o tema da protagonista da novela. O sucesso foi estupendo, a gravação de Maria Martha é impecável com uma leveza e clareza ímpares.

Interpretação por Maria Marta, que hoje mora em Paraty, no Rio de Janeiro.

Maria Martha – FLOR AMOROSA – Joaquim Callado e Catullo da Paixão Cearense.
Álbum: Maria Martha – Flor Amorosa.
Ano de 1977.

A letra da música.

Flor amorosa,compassiva,sensitiva,vem porque
É uma rosa orgulhosa,presunçosa, tão vaidosa
pois olha a rosa tem prazer em ser beijada, é flor, é flor
Oh, dei-te um beijo, mas perdoa, foi à toa, meu amor
Em uma taça perfumada de coral
Um beijo dar não vejo mal
É um sinal de que por ti me apaixonei
Talvez em sonhos foi que te beijei
Se tu pudesses extirpar dos lábios meus
Um beijo teu tira-o por Deus
Vê se me arrancas esse odor de resedá
Sangra-me a boca,é um favor, vem cá
Não deves mais fazer questão
Já perdi, queres mais, toma o coração
Ah, tem dó dos meus ais, perdão
Sim ou não, sim ou não
Olha que eu estou ajoelhado
A te beijar, a te oscular os pés
Sob os teus, sob os teus olhos tão cruéis
Se tu não me quiseres perdoar
Beijo algum em mais ninguém eu hei de dar
Se ontem beijavas um jasmim do teu jardim
A mim, a mim
Oh, por que juras mil torturas
Mil agruras, por que juras?
Meu coração delito algum por te beijar não vê, não vê
Só por um beijo, um gracejo, tanto pejo
Mas por quê?

‘Flor amorosa’ não foi o primeiro choro da história

Repetidamente, lemos e ouvimos através dos tempos, que a polca ‘A Flor Amorosa’, foi o primeiro choro de que se tem notícias na história. Estudando e pesquisando a vida e a obra dos pais do choro, observei que muitas informações nos levam a crer que esta afirmativa não está correta. Vamos aos fatos:

Callado já tinha uma obra que chegava a centenas de músicas e ali, entre polcas, valsas e quadrilhas tem muito material sonoro que podemos hoje chamar de Choro. A afirmativa de que a polca A Flor Amorosa é o primeiro Choro de que se tem notícia se dá muito por conta do recorte melódico dela, e com o andamento menos acelerado acaba obrigando o acompanhador a lançar mão do ritmo de Choro para acompanhar a melodia, tirando a música da ambientação original de polca.

Se formos pensar cronologicamente, a polca A Flor Amorosa tem sua data de criação em 1880, e é publicada um mês após a morte de Callado, que aconteceu em 20 de março deste mesmo ano. Antes disso temos a publicação de outra polca, do Viriato Figueira da Silva, que também apresenta um recorte melódico que pede um acompanhamento diferente da polca dura e quadrada do início do Choro. A polca é a Só Para Moer e sua edição é de 1877, três anos antes de A Flor Amorosa.

Certas afirmações precisam ter muito respaldo para serem proferidas.

O nascimento de um gênero musical ou a primeira composição de tal estilo são coisas impossíveis de se registrar numa só criação.

Gazeta de Notícias, 2 de abril de 1880. Detalhe do anúncio da partitura de Flor Amorosa

Gazeta de Notícias, 2 de abril de 1880. Detalhe do anúncio da partitura de Flor Amorosa

O lugar de Flor Amorosa na Obra de Callado

A obra de Joaquim Callado, hoje, compreende 75 composições, destacando-se suas 23 quadrilhas,45 polcas, duas valsas, dois lundús, uma polca lundú, uma mazurka e uma composição sem gênero definido e a Flor Amorosa, que está entre suas 45 polcas. É indiscutível que Flor Amorosa seja sua música mais conhecida, divulgada e reconhecida, nos dias de hoje, aos primeiros acordes. Callado apresenta suas primeiras composições com grande sucesso em 1867, e edita nos anos posteriores as polcas A Sedutora (1869), Querida por todos (1869), Linguagem do coração (1872), Ímã (1873), Cruzes minha prima (1875) e A Flor Amorosa (1880). Em 1873 apresenta sua composição Lundú característico, um lundu de concerto com 248 compassos.

polca ímã

a sedutora e cruzes

Joaquim Callado foi criado em ambiente de banda, seu pai foi mestre da Banda Sociedade União dos artistas, no Rio de Janeiro, e participou de muitos bailes e festas populares com sua flauta inseparável. Suas composições sempre frequentaram estes ambientes e foram pensadas para isto. Em 1880, por exemplo, pouco antes de seu falecimento estava lá com sua flauta e suas polcas e quadrilhas a animar o carnaval do imperador Pedro II, no Paço Imperial.

A polca Flor Amorosa é muitas vezes colocada como a primeira composição de Callado, quando na verdade ela é a última composição do flautista. Vejam que pelo menos 74 composições vieram antes dela e todas ambientadas no que depois viemos a chamar de Choro. Tanto é que em vida Callado não gozou o sucesso que a música provocou ao ser apresentada.

Analisando com mais acuidade a melodia de Flor Amorosa e comparando com as outras polcas anteriores a ela na obra de Joaquim Callado, percebemos que o discurso musical impresso em Flor Amorosa é completamente diferente de todas as outras polcas do compositor, sempre com ritmos intrincados, construções melódicas arabescas e harmonias avançadas. A polca A Flor Amorosa, ao contrário de tudo isto, é uma composição de melodia simples, com células simples e harmonia básica. Em nossas pesquisas encontramos muitas referências ao fato de A Flor Amorosa ter sido composta em duas partes, e isto ter sido comum entre os antigos Chorões, para que pudessem improvisar a terceira parte no calor das tocatas. Assim explica-se o fato de Flor Amorosa estar com duas partes no momento da morte de Callado. Talvez a despretensiosidade que moveu a composição e o descompromisso com as formas tenham gerado uma criação tão espontânea que explica o fato de ser A Flor Amorosa uma música com ares diferentes dentro na obra de Callado.

*Para saber mais ler “A verve melódica de Callado”, página 100 do livro ‘3 Vultos históricos da música brasileira’. Baptista Siqueira. MEC. 1969.

A obra de Joaquim Callado que temos conhecimento hoje:

A Dengosa – Polca

A Desejada – Polca

A Pagodeira – Quadrilha

A Sedutora – Polca

Adelaide – Quadrilha

Ai, que gozos – Polca

As clarinhas e as moreninhas – Polca

Aurora – Quadrilha

Carinho do malandro – Polca

Carnaval de 1867 – Quadrilha

Celeste – Polca

Cinco deusas – Quadrilha

Como é bom – Polca

Conceição – Polca

Cruzes, minha prima! – Polca

Ermelinda – Quadrilha

Ernestina – Polca

Família Meyer – Quadrilha

Flor Amorosa – Polca

Flores do Coração – Quadrilha

Florinda – Polca

Ímã – Polca

Improviso – Polca

Izabel – Polca

Júlia – Valsa

Laudelina – Quadrilha

Lembranças do Cais da Glória – Polca

Linguagem do coração – Polca

Lundú característico – Lundú de concerto

Manduca – Polca

Manuelita – Quadrilha

Manuella – Polca

Maria – Polca

Maria Carlota – Quadrilha

Mariquinhas – Polca

Marocas – Polca

Melancólico – Polca

Mimosa – Quadrilha

Murchou a flor da gente – Polca Lundu

Não digo – Polca

O que é bom – Quadrilha

O regresso de Chico Trigueira – Polca

Perigosa – Polca

Polca em dó maior numero 1 – Polca

Polca em dó maior número 2 – Polca

Polca em dó maior número 3 – Polca

Polca em ré maior – Polca

Polca em ré menor – Polca

Polca em si bemol maior – Polca

Polca em sol – Polca

Polca em sol  maior numero 1 – Polca

Polca em sol  maior numero 2 – Polca

Polca em sol  maior numero 3 – Polca

Polucena – Polca

Puladora/Mulatinha – Polca

Quadrilha – Quadrilha

Quadrilha em fá maior – Quadrilha

Quadrilha em ré maior numero 1 – Quadrilha

Quadrilha em ré maior número 2 – Quadrilha

Quem sabe? –

Querida por todos – Polca

Rosinha – Polca

Salomé – Polca

Saturnino – Quadrilha

Saudades de Valença / Hermenêutica – Quadrilha

Saudades do cais da Glória – Polca

Saudosa – Polca

Souzinha – Quadrilha

Suspiros de uma donzela – Quadrilha

Último Suspiro – Polca

Uma lágrima – Mazurca

Uma noite de folia – Quadrilha

Valsa – Valsa

Vinte e um de agosto – Polca

Vinte e um de junho – Polca

Discussões sobre o termo ‘Flor Amorosa’ na imprensa brasileira

O termo ‘Flor Amorosa’ esteve no centro de uma discussão muito em voga no Brasil no início do século XX: – “O Brasil é um país triste? Com um povo triste? Ou é feliz e fadado a alegria?”. Nesta discussão entravam as forças da nacionalidade, a mestiçagem, a formação de ‘nossa raça’, nossa música… E em relação a nossa música a frase mais citada e repetida era a que Olavo Bilac vaticinou em seu poema ‘Música Brasileira’: “Flor amorosa de três raças tristes”.

Música Brasileira – Olavo Bilac

Tens, às vezes, o fogo soberano

Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.

As discussões em torno deste termo podem ser lidas em diversos artigos jornalísticos conforme encontramos em O Malho de 21 de janeiro de 1933, em texto de Eduardo Frieiro, professor universitário e autor do livro ‘O brasileiro não é triste’, publicado em 1931:

“Flor amorosa de três raças tristes” disse Bilac da nossa música. Bonito verso que fez rápida fortuna. Mais certo parece dizer que a nossa música é a flor tristonha de duas raças voluptuosas. Há nela certa voluptuosidade lusitana e deleitosos queixumes de fado; Há nela a voluptuosidade do negro e vagas reminiscências de banzo.

Alguns espíritos inquietos armaram batalha contra a longa escravisação dos nossos musicistas às absorventes influências estrangeiras. Move-os o impaciente e sincero afan de apressarem o advento de uma arte musical genuinamente brasileira, de uma arte que seja o legítimo reflexo de nossa psyche e de nosso ambiente.

A gênese de qualquer arte é processada no mistério subjacente da alma coletiva: independe da caprichosa e frágil vontade individual. Ora, da alma da nossa gente desabrocha um folclore musical de ricos e variados ritmos. Não será, acaso, formosa realidade a melodia brasileira, que perfuma suavemente modinhas e cantigas? E, os ritmos, tão nossos, dos choros e sambas litorâneos e das toadas sertanejas? Neles, se afirma, em potencial, a música brasileira, livre de influências exóticas, despersonalizantes.

Nosso povo ignora Verdi, ignora Wagner, ignora Debussy. Felizmente. E não só os ignora: sua sensibilidade  musical, já distinta, repete os ritmos estrangeiriços. Exige os nossos: plangentes, exuberantes ou vivazes.A expressão dolente da nossa música – de acentos nostálgicos, umas vezes, ardentes e buliçosos, outras – não permite confusões: traz a marca da raça, é o legítimo produto da nossa sensibilidade afro-lusitana, tão rica de conteúdo musical.

A música brasileira existe, e é forçoso reconhecer a profunda, definitiva influência do negro na sua formação.

Gobineau, que considerava a arte como uma manifestação transcendental da vida, não a julga produto genuíno da raça branca (ariana, indo-germânica), para ele superior, senão que, pelo contrário, supõe que os povos são mais artistas quanto mais mesclados com o sangue negro. Tal pressuposto encontra cabal afirmação entre nós. Seria, mesmo, difícil contestá-lo.”

o malho 1933

Já em 1936, no mesmo jornal O Malho, numa matéria especial sobre Carlos Gomes e a música Brasileira escrita por Cristovam de Camargo, vemos o termo flor amorosa voltar ao centro da discussão para explicar a presença presença da música brasileira na obra de Carlos Gomes:

“Todo brasileiro que vive em contato com a terra é músico e cantor. As suas queixas, transforma-as em harmonias, que manda ao céu nas modulações nostálgicas da sua garganta.As suas mágoas, esconde-as no coração da viola.

Canta a alegria da vida e canta o desespero da morte.Canta a glória da terra verde, a insolência vegetal da mataria luxuriante, e chora saudades da morena ingrata, que partiu com outro, com o rival feliz, que ele nunca mais encontrará para abrir-lhe o peito com o punhal afiado e justiceiro. A sua vida é cantar o esplendor dos ambientes engrinaldados e chorar a tristeza das separações irreparáveis. Canta e chora. É lirico e é triste.E é feliz em sua tristeza e em seu lirismo.

Como diz o nosso grande Olavo Bilac, falando das músicas destas plagas: Flor amorosa de três raças tristes.

São as três raças tristes que nos formaram: o lusitano, que abandona o torrão natal, a casa pequenina e alegre, sombreada pelas vinhas que seus avós plantaram, a querencia do lar pobre e desfeito, demasiado pobre para a ambição da sua alma (…)”

As discussões avançavam e o termo Flor Amorosa era levado a todas as cátedras da sociologia para explicar a tristeza e a alegria brasileiras. No mesmo O Malho em 1952 temos um exemplo de como o termo continuava na cabeça da discussão e discutida no mundo inteiro. Com o título de O Brasileiro é um povo triste, conta sobre uma pesquisa … : “

o malho 1952 O Brasileiro é um povo triste Detalhe

As indagações do maestro Baptista Siqueira sobre A Flor Amorosa no livro: 3 Vultos históricos da Música Brasileira de 1969

O maestro Baptista Siqueira, em seu livro ‘3 vultos históricos da música brasileira’ apresenta um capítulo sobre a Flor Amorosa e faz diversas indagações e questionamentos acerca de sua história, edição e finalização póstuma de sua terceira parte:

“A Flor Amorosa. É este o título da composição ligeira publicada logo após o desaparecimento do “sempre chorado Callado”. O nome estava intimamente ligado às imagens poéticas que vinham florescendo no solo brasileiro, surgindo, ora no lirismo de um Casimiro de Abreu, ora na elegante e polida verve de um Olavo Bilac. Aquêle impressionado com as “flôres do coração”, êste com a música brasileira, “flor amorosa de três raças tristes”. Essas fantasias, êsses devaneios, que hoje estão sendo combatidos pelos modernistas, continuam a merecer nosso respeito, porque tiveram seu tempo, foram também atuais e representam, sem nenhuma dúvida, imagens repletas de ternura.

Mas o espírito do investigador é levado para outros planos menos idealistas: o fato de se tratar de uma obra singela, o canto do cisne de um homem genial. O observador quer saber, por exemplo, em que condições foi publicada essa peça deixada inédita, talvez até com outro título, bem como se houve ou não algum abuso no momento da publicação por interferência de elementos saudosistas ou interessados na repercussão popular do acontecimento.

Essas cogitações baseiam-se em dois fatos importantes: primeiro, ter sido a obra impressa logo depois da morte do artista; segundo, o encontro de uma polca, no caderno de flauta do ex-professor do Instituto Nacional de Música, Pedro de Assis, com a mesma música e nome diferente, copiada em 1893. Êsse conhecido mestre foi também professor de um neto de Callado, de nome João Damasceno.

São, parece-nos, casos insolúveis, mas que não deixam de representar um valor cultural digno de nota. (…)”

Logo adiante o maestro Baptista Siqueira apresenta o início da letra que o povão cantava com a melodia de Flor Amorosa:

“Dona Sinhá,

Oh! Venha cá

Não seja má

assim”…

Enfim, são perguntas que não calaram até hoje,e não foram respondidas a contento.

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Para ouvir mais A Flor Amorosa

 

Lysia Condé

 

 Ademilde Fonseca e Eimar Delvino Barreto

 

Altamiro interpreta

 

Flor Amorosa, por Kelly Rosa

 

 

Ceumar e Chorolê

 

Hermeto Pascoal

Interpretação por Gilberto Alves

Interpretação de Mario de Azevedo

 

Paulo Tapajós – FLOR AMOROSA – Catullo e Callado

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Author: imprensabr